A cor da indiferença
Quando se chega à nova exposição de Catarina Dias, a primeira imagem que recebemos é a de um cortinado pintado em tons de cinza, em frente da porta de entrada. Na realidade, há dois cortinados, dois panos nitidamente tingidos à mão, que separam os espaços de exposição de outros que não foram ocupados pela artista. Fixamo-nos na função destes tecidos: separar, proteger, mas também ligar, ou seja, delimitar uma área específica na casa onde a galeria funciona.
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Quando se chega à nova exposição de Catarina Dias, a primeira imagem que recebemos é a de um cortinado pintado em tons de cinza, em frente da porta de entrada. Na realidade, há dois cortinados, dois panos nitidamente tingidos à mão, que separam os espaços de exposição de outros que não foram ocupados pela artista. Fixamo-nos na função destes tecidos: separar, proteger, mas também ligar, ou seja, delimitar uma área específica na casa onde a galeria funciona.
Tal como este pormenor que citámos, toda a exposição se articula sobre o conceito da ligação. Catarina Dias não considera nunca, e bem, a arte como estando isolada de todo o tecido social, político, económico e, claro, artístico, que a suporta. As duas peças já mencionadas, com as sedutoras gradações de cinza que revelam, inscrevem-se também numa longa tradição da pintura moderna que se dá a si própria como tema e assunto, e da pintura contemporânea que não se cansa de citar a modernidade. Em duas outras salas da galeria esta evocação torna-se mais longínqua e menos directa. Aí, a artista pendurou do tecto quatro painéis de tecido para onde transferiu composições de imagens encontradas na imprensa: um macaco de olhos vazados, uma batata semi-descascada (mas como não pensar aqui também nos Comedores de batatas de Van Gogh, uma pintura sobre os camponeses miseráveis dos Países Baixos do século XIX?) e uma montagem de proveniência diversa, dos conflitos na Palestina a uma mulher indiana carregando uma pedra à cabeça, sobre fundo de folhas de jornal com cotações de acções e notícias sobre a Goldman Sachs. Estas peças, que evitam a montagem na parede colada ao lugar tradicionalmente atribuído à pintura, sintetizam-se numa espectacular reprodução em patchwork da fotografia do Costa Concordia afundado: paraíso perdido num lugar paradoxalmente calmo e aparentemente inofensivo.
As conexões que se estabelecem entre as diversas imagens, das quais a mais directa é a do símio que, como máscara, nos devolve a nossa própria condição animal, desenvolvem-se noutras obras: de um texto sobre fundo negro pintado, que clarifica a intenção da autora, a pequenos tracejados cosidos sobre reproduções, e mesmo numa sala dedicada a desenhos, onde a mancha útil do papel é enegrecida, deixando ver palavras ou caracteres transferidos que introduzem sentido em cada peça. A mais inquietante de todas não deixa de ser a que apenas apresenta um rectângulo negro enquadrado por dois pares de aspas. Uma última peça, por fim, um vídeo, mostra uma personagem em luta sobre a qual o deslocar de acetatos quase transparentes produze a ilusão de movimento.
A exposição é acompanhada por um texto de Isabel do Carmo, médica com um passado mítico ligado à luta dos tempos de transição entre a ditadura e a democracia. O texto acentua a presença do cinza, atribuindo-lhe o lugar entre o branco e o negro dos extremos, uma tonalidade entre a ausência total e a luz perfeita que se pode também considerar no seu lado metafórico de uma certa postura perante o mundo. Há contudo outras constantes na obra de Catarina Dias que se salientam no seu trabalho, e que consistem na atenção com que considera as ligações históricas. Entre elas, está a actualização de um dos trabalhos femininos por excelência, a costura, considerado aqui na sua literalidade de uma linha que é inserida entre duas realidades diferentes. Inclusive aquela que retrata outro trabalho feminino: o da mulher indiana carregando um peso absurdo, espécie de Sísifo castigado pelo simples facto de ter nascido.
As ligações de Catarina Dias, enfim, replicam a própria condição contemporânea. Estamos em ligaç? ?o permanente com tudo, via todos os gadgets que enchem as nossas casas e os nossos bolsos. O cinzento é a cor da indiferença, como a artista parece querer alertar-nos. Tudo se equivale, tudo é pardo na condição em que vivemos. Na atenção que a artista dedica às imagens que escolhe, e no modo como as combina, reside a diferença que é possível fazer.