“Grândola, Vila Morena”: a coerência é uma arma
Parece-me óbvio que estamos a pisar a linha que separa a democracia da anarquia
Escrever sobre política agasta-me. O presente é, no entanto, demasiado denso para conseguir evitá-lo. Todos cantam a “Grândola, Vila Morena”. Um “novo” hino de um país em convulsão. A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais de uma democracia e é salutar ver os cidadãos a usufruir desse direito, cantando. Já os tínhamos visto a falar, a gritar, a arremessar pedras da calçada e a vandalizar.
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Escrever sobre política agasta-me. O presente é, no entanto, demasiado denso para conseguir evitá-lo. Todos cantam a “Grândola, Vila Morena”. Um “novo” hino de um país em convulsão. A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais de uma democracia e é salutar ver os cidadãos a usufruir desse direito, cantando. Já os tínhamos visto a falar, a gritar, a arremessar pedras da calçada e a vandalizar.
Numa primeira análise, prefiro que cantem. E que cantem afinados. Mas existe o outro lado da questão. Segundo o ponto 2 do Artigo 37.º da Lei Constitucional nº 1/92, “O exercício destes direitos (de liberdade de expressão) não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura."
Parece-me óbvio que estamos a pisar a linha que separa a democracia da anarquia. Vivemos num país democrático, por enquanto. Irrita ouvir falar de pensões milionárias, de cortes orçamentais, de erros dos governos, de penalties roubados, irrita ouvir conversas desmioladas nos transportes públicos, opiniões sobre o tempo ou sobre aquele fungo que nunca mais desaparece. Tudo isso irrita. Mas em 1974 conquistou-se o direito de falar sobre o que se quer. E, desde então, andamos a aprender a digerir as opiniões contrárias às nossas.
É claro que sempre existirão os “doentes” com quem não se consegue conversar. Mas, infelizmente, mesmo esses têm direito a pronunciar o seu discurso gravado e as suas opiniões (leia-se opiniões dos outros). E isso é democracia. Todos sabemos e aceitamos. O que realmente me leva a questionar a actual caminhada para o abismo anárquico é pensar nos direitos pessoais. Quero com isto dizer: Se todos temos o direito de dizer o que queremos, quem é que tem o direito de me interromper quando falo? Há alguma entidade omnipotente que me possa mandar calar?
Se estou farto de ouvir a senhora que está sentada ao meu lado no autocarro, interrompo-a e mando-a parar de falar do que fazem os seus oito gatos? Ou se continuo a ouvir que o meu clube ganhou com um golo irregular mando calar o tipo? Que direito tenho eu de silenciar alguém? Já agora, que direito têm vocês de me silenciarem? Estas últimas manifestações musicais são importantes para atestar o verdadeiro estado do país. Portugal está a perder a noção de democracia. E de quem é a culpa? De todos. Os governos dos últimos anos foram maus, más opções de "casting".
Mas o governo é um conjunto de pessoas eleitas pelo povo para desempenhar um cargo público em representação desse mesmo povo. O problema surge quando o dia do acto eleitoral é um dia solarengo com temperatura amena ou alta. A praia ainda não tem salas de voto. E, depois, muitos desses veraneantes gritam e mandam calar (orgulhosamente) os representantes eleitos pelos outros, os papalvos que perderam alguns minutos a fazer uma cruz e colocar o voto numa urna.
E, seguindo a mesma linha orgulhosa, bradam com a mão no peito inchado de ar que não votaram! Cantem a “Grândola, Vila Morena”, mas não usem a liberdade de expressão como desculpa para cortar essa mesma liberdade aos outros. Eles podem até ser ignorantes, mas são indivíduos que vivem numa democracia. Não podemos ser paladinos da democracia em "part-time".