A semântica de contornar a lei

Este tipo de raciocínio é uma verdadeira arte em Portugal: "Isso não é quebrar a lei, é contornar". Onde é que acaba a semântica e começa realmente a infracção?

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MelloBrambilla/Flickr

No outro dia discutia-se à mesa: "isso não é quebrar a lei, é contornar".

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No outro dia discutia-se à mesa: "isso não é quebrar a lei, é contornar".

Pensei para mim que este tipo de raciocínio é uma verdadeira arte em Portugal: a de fintar a ordem universal das coisas apenas e só com a semântica. Obviamente que a lei sente se a quebrarem; mas se a contornarmos já não, porque no acto de "ir à volta" não há embate algum e, tecnicamente, ninguém sai aleijado, inclusive a lei.

Nesta óptica, só quebramos a lei quando, para nosso benefício, prejudicamos activamente alguém. Só assim é que temos uma percepção real de dói-dói na lei. E para assim ser, há que haver um lesado concreto. Alguém que se sente no banco dos réus e outros tantos no banco das vítimas.

Imagino que será por isso que a evasão fiscal é uma questão de semântica. Os lesados não têm bem cara, são uma massa difusa de NIF's chamada cidadãos de Portugal.

Para além disso, os lesados também lesam. E ao repetirem o procedimento vezes sem conta acabam por normalizá-lo no seu ADN de rotinas, como se de lavar os dentes se tratasse; pensarão que se os outros "contornam" a lei e escapam incólumes é porque na realidade não é bem "quebrar" e, por conseguinte, não deve ser punível com mais do que uma carta ou duas das Finanças.

E eu pergunto: onde é que acaba a semântica e começa realmente a infracção? Senhores, poupem-me os jogos de palavras — tudo o que diga respeito a fazer coisas na lei que não seja sinónimo directo do seu cumprimento significa, regra geral, o seu oposto. "Fugir" da lei, "driblar" a lei ou  "interpretar" a lei são conceitos livres, abstractos, que contêm um enorme mar de possibilidades a nível de conduta fiscal. Como é um tabu saudável falar em "quebrar", valha-nos o dicionário Lello e as suas famílias de palavras.

Eu por exemplo acho que ainda podemos ir mais longe no sentido de atenuar a seriedade dos crimes apenas e só com semântica... indo ao encontro de conceitos mais leves, como o de fazer coceguinhas na lei. Ou de jogar às escondidas com a lei. Ou de dar um tau-tau na lei quando ela se porta mal a jogar à Linda Falua. Não pode haver maldade nisto.

Na realidade, é o mesmo que o assassino alegar "eu não o matei, ele simplesmente deixou de respirar por influência da pressão que lhe infligi na almofada." Ou "por sucessivas vezes o corpo dele se precipitou de forma voluntária de encontro à minha navalha e nada pude fazer para evitá-lo, senhor juiz". Ai, semântica, semântica.

É o mesmo que dizer que omitir não é mentir. "Eu não te menti, simplesmente não te disse." Ah, então está bem. Tecnicamente o Vítor Gaspar nunca mentiu sobre o assalto ao nosso vencimento, simplesmente nunca lhe ocorreu verbalizar.