Gabriele Basilico, o fotógrafo de quem a luz era amiga
A arquitectura portuguesa foi um dos temas privilegiados na carreira deste autor considerado um expoente mundial da fotografia de arquitectura e de urbanismo. Morreu quarta-feira
Grande referência mundial da fotografia de arquitectura, Basilico manteve uma relação especial com Portugal e com a arquitectura portuguesa, que ajudou a divulgar internacionalmente através de exposições e livros.
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Grande referência mundial da fotografia de arquitectura, Basilico manteve uma relação especial com Portugal e com a arquitectura portuguesa, que ajudou a divulgar internacionalmente através de exposições e livros.
“Ele era o grande fotógrafo da arquitectura. Tinha o que une estas duas artes: o domínio do espaço e da luz”, diz Teresa Siza, crítica e historiadora da fotografia, comissária da exposição que Basilico apresentou no Arquivo Distrital do Porto, no ano da Capital Europeia da Cultura (2001), no âmbito do projecto Cityscapes.
“Basilico disse-me uma vez: ‘A luz é sempre amiga’”, acrescenta a ex-directora do Centro Português de Fotografia (CPF), em cuja colecção a obra do fotógrafo italiano está representada. E acrescenta que Basilico “fotografava com qualquer luz, mesmo nas situações mais difíceis, como acontecia junto à Cadeia da Relação, no Porto”.
“Ele tinha a capacidade de captar a arquitectura das cidades sem tentar embelezá-las, sem disfarçar os seus acidentes – os postes de iluminação, os carros estacionados junto aos edifícios, a degradação dos materiais... –, assumia a cidade como ela é, como uma entidade viva”, acrescenta Teresa Siza.
Formado em Arquitectura em Milão, onde nascera em 1944, Gabriele Basilico começou a usar a fotografia, logo após ter terminado o curso (1973), para documentar a situação política e social da sua cidade. Daí nasceu uma primeira exposição marcante, Milão, retratos de fábricas, realizada em 1983 no Pavilhão de Arte Contemporânea milanês. Uma experiência que haveria de o levar a optar pela fotografia, sem no entanto abandonar a arquitectura, como a sua obra viria depois a confirmar.
A seguir ao projecto de Milão, Basilico recebeu um convite para integrar a missão D.A.T.A.R. (Délégation Interministérielle à l'Aménagement du Territoire et à l'Attractivité Régionale, 1984), de levantamento da paisagem francesa.
Beirute depois da guerra
No início da década de 1990, Basilico está em Beirute, noutra missão fotográfica de teor bem diferente, para fotografar a capital do Líbano após o final da guerra, ao lado de Robert Frank, Josef Koudelka e Raymond Depardon, entre outros, e da qual resultou a publicação Beyrouth Centre Ville e uma posterior exposição no Palais Tokio, em Paris (1993).
Em 1995, chega pela primiera vez a Portugal para participar nos Encontros de Fotografia de Coimbra e depois, no Porto, no projecto Alfândega Nova, o Sítio e o Signo, ao lado de Jorge Molder e José Manuel Rodrigues, entre outros, que também deu uma exposição e um livro. O mesmo aconteceria com o projecto seguinte, também dirigido por Teresa Siza, em Matosinhos: Uma Cidade Assim (1996), um levantamento da realidade física e humana, a partir das objectivas de Basilico mas também de Larry Fink, Bruno Sequeira e Augusto Alves da Silva, e de que resultaria uma publicação incluindo também desenhos do arquitecto Álvaro Siza
Foi durante a realização deste projecto que o arquitecto Camilo Rebelo – co-autor, com Tiago Pimentel, do Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa – conheceu Basilico. “Acompanhei esse trabalho e, quando avançámos para a construção do Museu do Côa, entendi que ele era a pessoa indicada para registar esse projecto”, recorda agora Camilo Rebelo. Esse registo foi realizado, mas a sua publicação em livro – que deveria integrar a colecção One, lançada em 2009 pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura – não chegou a concretizar-se, por falta de meios.
Camilo Rebelo recorda um episódio vivido com o fotógrafo italiano, quando em Janeiro de 2011 se deslocou de novo a Portugal para fotografar o museu, na companhia de Souto de Moura. “Mal chegou a Foz Côa, pegou na câmara, subiu para a cobertura do museu e começou a fotografar a paisagem”, diz o arquitecto. “Ele percebeu claramente o nosso objectivo ao projectar o museu naquele contexto e na integração com o espaço envolvente, que era o de valorizar precisamente a paisagem”, acrescenta o autor do Museu do Côa, que classifica Basilico como um homem de “um rigor extremo, um olhar muito científico e uma clara intuição do sítio”.
Camilo Rebelo conta ainda que o fotógrafo italiano percorria o plateau do seu trabalho com uma grande preocupação em estudar o lugar e a luz, que registava não só com o olhar mas também com o fotómetro. “E quando montava o tripé, o seu trabalho surgia com uma consequência exacta daquilo que ele tinha visto e projectado.”
Depois de três dias no Museu do Côa, Gabriele Basilico foi com Souto de Moura fotografar o Estádio de Braga. Camilo Rebelo recorda outro episódio que testemunhou junto de ambos, quando o fotógrafo italiano atrasou o início de um jogo de futebol, entre o Braga e o Setúbal, porque “estava dentro da baliza, no lugar do guarda-redes, a querer fotografar o estádio em pleno funcionamento”.
“Ele tinha o sentido e a intuição do momento”, acrescenta Rebelo, que acompanhou também Basilico naquela que foi a sua última visita a Portugal, em Setembro de 2011, para fazer uma conferência na Casa da Música, no Porto, no ciclo Mesa Talks, a pretexto dos 30 anos de carreira de Eduardo Souto de Moura.
Basilico publicou ainda um roteiro da arquitectura portuguesa (Dafne Editora, 2006), a acompanhar a exposição Desenhos nas Cidades, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, comissariada por Álvaro Siza e outros arquitectos. No mesmo ano, saiu um livro sobre o Museu Gulbenkian e a Arquitectura dos anos 60.
Teresa Siza recorda Basilico como “um homem solidário e de grande sabedoria”, que sempre associou a sua arte e a sua actividade a preocupações sociais. Um tema documentado nas exposições e livros que dedicou, por exemplo, às áreas urbanas de Berlim, Valência ou da região italiana de Emilia Romagna. Mas fotografou também a paisagem tecnológica de Silicon Valley, as cores de Roma e a vertigem de Moscovo.
No palmarés de Gabriele Basilico, contam-se, entre outros, o Prémio do Mês de Fotografia de Paris (1996), os prémios de Fotografia de Arquitectura da Bienal de Veneza (1996) e da Fundação Astroc, de Madrid (2007), e o prémio do livro de fotografia do ano na Photo España (2002).