Crítica de música: mais um triunfo para os Músicos do Tejo
Il Trionfo d’Amore vem confirmar que Almeida foi um compositor notável, não só no plano português, mas também europeu
Depois do sucesso da ópera cómica La Spinalba, em palco e em disco, Os Músicos do Tejo lançaram-se numa nova aventura em torno da produção dramática de Francisco Antónico de Almeida (c. 1702-1755). Desta vez escolheram a serenata Il Trionfo d’Amore, estreada no Paço da Ribeira a 27 de Dezembro de 1729, dia de São João Evangelista, santo onomástico de D. João V. A primeira audição moderna em 1994, sob a direcção de Jorge Matta, foi uma revelação pela qualidade da obra, pelo que é estranho que tenham passado quase 20 anos até surgir uma nova interpretação.
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Depois do sucesso da ópera cómica La Spinalba, em palco e em disco, Os Músicos do Tejo lançaram-se numa nova aventura em torno da produção dramática de Francisco Antónico de Almeida (c. 1702-1755). Desta vez escolheram a serenata Il Trionfo d’Amore, estreada no Paço da Ribeira a 27 de Dezembro de 1729, dia de São João Evangelista, santo onomástico de D. João V. A primeira audição moderna em 1994, sob a direcção de Jorge Matta, foi uma revelação pela qualidade da obra, pelo que é estranho que tenham passado quase 20 anos até surgir uma nova interpretação.
Il Trionfo d’Amore vem confirmar que Almeida foi um compositor notável, não só no plano português, mas também europeu. Graças a várias iniciativas recentes (das quais se destacam a primeira gravação do Te Deum, dirigida por João Paulo Janeiro e a estreia moderna da serenata L’Ippolito pela Orquestra Barroca Casa da Música) conhecemos hoje muito melhor o legado do compositor, revelador de uma considerável versatilidade. A comparação desta obra de 1729, escrita pouco depois de terminar os estudos em Roma, com L’Ippolito (1752) mostram como Almeida evoluiu artisticamente em conformidade com os estilos do seu tempo e o contexto envolvente. Enquanto Il Trionfo d’Amore, designado como “scherzo pastorale”, se aproxima mais do divertimento cortesão de natureza privada apresentado nos aposentos do rei ou da rainha D. Maria Ana de Áustria (responsável pela instituição da prática das serenatas na corte de Lisboa), L’Ippolito parece aspirar à condição da ópera séria através de um outro fôlego dramatúrgico, mas consentâneo com o modelo da ópera como representação de poder do reinado de D. José.
A meio caminho entre a cantata e a ópera, Il Trionfo d’Amore não tem um grande enredo dramático, apenas um conjunto de peripécias que conduzem a uma apologia do amor verdadeiro em detrimento dos planos arquitectados pelos deuses ou pelo poder vigente. No século XVIII as serenatas eram normalmente apresentadas em versão de concerto. A sua natureza alegórica e os códigos inerentes a este tipo de repertório constituem um grande desafio no momento de idealizar uma versão cénica, mas o actor e encenador Luca Aprea conseguiu criar um espectáculo pleno de teatralidade e movimento com grande simplicidade de meios.
Duas plataformas oblongas repletas de almofadas de vários tamanhos e cores servem de camas no sentido literal, mas também figurado: são espaço de amor, mas também de sonho, evasão e representação. Luca Aprea subverte com ironia as convenções do texto barroco, assumindo uma postura de distanciamento e levando para além dos limites a ideia do scherzo. Perto do final joga com a ambiguidade da troca de pares — ausente do libreto — num crescendo de delírio e antes da segunda parte, o próprio maestro (Marcos Magalhães) se estende na cama a estudar as partituras e troca uns passos de dança com Adraste (Fernando Guimarães), que acaba de cantar uma ária, que foi deslocada de sítio em relação ao original. A proposta, ousada mas eficaz, assume-se como uma recriação do nosso tempo (sem pretensões de reconstituição histórica), que respeita ao mesmo tempo o ritmo e o carácter da música.
Ao contrário das óperas e serenatas mais tardias, Il Trionfo d’Amore tem recitativos curtos (alguns acompanhados pela orquestra), que contribuem para a fluidez da acção. As inspiradas árias e duetos traduzem a variedade de affetti do texto e tiram partido da variedade tímbrica da orquestração (incluindo eloquentes intervenções dos oboés, flautas e trompetes). Dirigida por Marcos Magalhães, a orquestra Os Músicos do Tejo teve um desempenho atento à variedade expressiva da partitura, e o elenco soube combinar a desenvoltura teatral com a vitalidade musical da escrita de Almeida. O timbre denso da meio-soprano Cátia Moreso e a sua verve dramática nas árias de coloratura são ideais para o papel de Giano, enquanto as sopranos Joana Seara (Nerina) e Raquel Camarinha (Termosia) se distinguiram pela agilidade e expressividade. O contratenor Clint van der Lindt (Arsindo) foi seguro e convincente, Luís Rodrigues compensou as exigências do papel de baixo de Mirenio em termos de extensão e flexibilidade através dos seus óptimos dotes de actor e o tenor Fernando Guimarães explorou com graça a vertente cómica de Adraste, cantando com elegância e sentido de estilo as belas árias da personagem.
No final, quase todo o público que enchia o Pequeno Auditório do CCB aplaudiu de pé, revelando o seu entusiasmo pela música de Francisco António de Almeida e por mais uma bem sucedida produção de Os Músicos do Tejo, que têm vindo a realizar um consistente trabalho em torno da ópera setecentista e da música portuguesa.