A infância do cinema português

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O autor descobre na geração dos modernistas uma ideia positiva de cinema Miguel Manso

Quando Jorge Leitão Ramos publicou o Dicionário do Cinema Português 1962-1988 em finais dos anos 80, a ideia era que fosse uma obra única, um livro que apresentasse ao mundo os actores, técnicos, realizadores e filmes portugueses. À altura, não existia nenhuma referência desse tipo e a Internet estava longe de ser o que é hoje ou o autor teria preferido criar um IMDb português que compilasse toda essa informação. É o próprio que o confessa, ao mesmo tempo que revela a sua paixão pela recolha de dados e factos.

"Torna-se uma coisa obsessiva, a gente não pensa em mais nada." Essa obsessão e vontade de dar a conhecer os que fizeram o cinema português levou-o às outras artes. "Como não há cinema português que dê emprego a actores, não há actores de cinema português, há actores que também fazem uns filmes de vez em quando. Portanto, escolhi carreiras teatrais, livros que as pessoas tivessem escrito e, no caso dos compositores, discos. O Sérgio Godinho tinha lá a discografia toda dele."

Mal sabia que o seu editor, Zeferino Coelho, lhe iria pedir o resto, o que estava para trás. Ou seja, mais de 60 anos de datas, filmografias e fichas técnicas. Leitão Ramos passou muito tempo a folhear jornais na Hemeroteca Municipal, a rever filmes (os que não se perderam por incúria) para se certificar das informações que encontrou em Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949 de Félix Ribeiro ou O Cais do Olhar de José de Matos-Cruz (referências de que se socorreu). Um trabalho concretizado nos tempos livres entre a profissão de professor do secundário e a de crítico de cinema no Expresso e que demorou mais de vinte anos a acabar. O resultado, o Dicionário do Cinema Português 1895-1961, é agora editado, já depois de um outro volume, que abarcava o período entre 1989 e 2003, ter saído em 2006.

Escolheu encetar um dicionário pois era um registo que lhe era grato: "A única forma que tínhamos de nos documentar sobre cinematografias era através de histórias do cinema, evidentemente, mas os dicionários eram elementos muito importantes. Estou-me a lembrar do célebre dicionário sobre cinema americano do Bertrand Tavernier e do [Jean-Pierre] Coursodon [50 ans de cinèma américain], que é um modelo." De qualquer modo, afirma que nunca pretendeu escrever uma história do cinema português ou um livro de crítica pura ao jeito do de Tavernier e Coursodon ou do A Biographical Dictionary of Film de David Thomson. Em França e nos EUA, o trabalho de sapa já estava feito, o que permitiu a estes autores serem mais "ambiciosos" (principalmente no caso dos franceses) ou "delirantes" (no caso do anglo-americano). Ainda assim, cruzando-se a informação das diferentes entradas, consegue-se descobrir um "fio narrativo" no Dicionário de Leitão Ramos.



Os comediantes e os modernistas

Se o panorama actual do cinema português preocupa, a história ensina que a situação nunca foi muito diferente. Nos anos 20, a Invicta Film, sediada no Porto, foi a primeira tentativa de criar uma indústria em Portugal. A Invicta "é uma empresa industrial, feita com capitalistas a sério, que labora durante uma série de anos e faz uma série de filmes que constitui o esteio central do cinema mudo português e que depois vai à falência exactamente pela mesma razão que hoje os filmes portugueses precisam de ser subsidiados", diz. Os motivos são a falta de mercado interno que sustente até os maiores sucessos e a dificuldade de penetração noutros mercados. Nem mesmo a vinda de estrangeiros como George Pallu e Rino Lupo - "cineastas de segunda ordem" - e a busca de um selo de qualidade nas adaptações literárias permitiram cumprir o desejo de exportação. "Participei em debates na televisão e em mesas-redondas, e continuo a participar, cujos argumentário e questões são os mesmos que se discutiam nas revistas dos anos 20 sobre o problema da Invicta", admite Leitão Ramos.

Com o advento do sonoro - o primeiro filme sonoro inteiramente produzido em Portugal seria A Canção de Lisboa, de Cottinelli Telmo ("um meteoro" que não voltaria a filmar) -, dá-se uma ruptura. No início dos anos 30, já não restava nenhum dos estrangeiros do mudo, substituídos por realizadores portugueses: um jovem grupo urbano, intelectual e modernista, composto por António Lopes Ribeiro, Jorge Brum do Canto e Leitão de Barros. Mudava o registo, visto que o cinema ia buscar os escritores do teatro de comédia e das Revistas, e mudava a representação. "Os velhos actores pomposos que fizeram o cinema mudo português desaparecem praticamente todos. No princípio do sonoro vão buscar a gente do Parque Mayer, o António Silva, a Beatriz Costa, o Vasco Santana. É isso que dá grande dinamismo à comédia portuguesa na altura", diz. Releva o fascínio que esses filmes ainda exercem sobre o público português, que continua a identificar-se com eles. Apesar de considerar que escondiam uma realidade diferente da que apresentavam, encontra uma comédia divertidíssima e muito bem feita em O Pai Tirano, por exemplo.

Contudo, os filmes históricos e as adaptações literárias "de obras de qualidade indiscutida" haveriam de voltar a marcar a cinematografia portuguesa. "O António Ferro odiava a ‘comédia à portuguesa', chamava-lhe o cancro do cinema nacional, detestava os filmes de saloios. Achava que o que se devia fazer era Camilo e [os realizadores] tiveram de ir com o que o regime ia encomendado e foram fazendo aqueles pastelões, os Camões, os Bocage". António Ferro teve influência determinante no cinema português nas décadas seguintes, ao chefiar o Secretariado de Propaganda Nacional (depois Secretariado Nacional de Informação). É uma figura que Leitão Ramos considera ter tido uma ascendência nefasta, por não compreender os diversos caminhos possíveis para o cinema português

O autor descobre na geração dos modernistas uma ideia positiva de cinema e encontra prazer em determinados filmes: Maria do Mar, A Revolução de Maio, A Aldeia da Roupa Branca, para lá do Pai Tirano ou das longas e curtas de Manoel de Oliveira (figura que percorre os três volumes do Dicionário e que parece fazer sempre um caminho à parte), como Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bobó. Já a geração seguinte, formada pelos assistentes da anterior, a que chama "serventuários", suscita-lhe bem menos simpatia. A responsabilidade dos dramalhões insossos e as comédias requentadas da década de 50 pertence-lhes - Henrique de Campos e Armando de Carvalho são os principais alvos, mas nem Manuel Guimarães, levado ao colo pelos neo-realistas na altura, lhe parece merecedor de elogios.

Leitão Ramos considera que o período de 1895 a 1961 engloba maior percentagem de filmes maus - embora ressalve que não houve época pior do que a do cinema comercial dos anos 60 ("verdadeiramente abominável"), numa altura em que o Cinema Novo já dava cartas - mas não lhe custou vê-los. "Aborreço-me mais a ver o Hobbit do que pastelões portugueses dos anos 30", diz.

Para o autor do Dicionário do Cinema Português, não há grandes descobertas a fazer nesta época do cinema português. "A cinematografia é pequena, faziam-se três, quatro, cinco filmes por ano, não há nada nos baús." Posta a hipótese de uma reedição do segundo volume, o de 1962 a 1988, admite reavaliações: "Se o chegar a fazer, haverá algumas coisas de que eu direi afinal não era tanto assim, ou tanto mal ou tanto bem." No entanto, não pretende rasurar a sua anterior opinião, antes criar adendas como Tavernier e Coursoson fizeram na sua obra. Quanto a um novo dicionário, que abarque os filmes de 2004 até hoje, pode lançá-lo com mais prontidão, já que vem coligindo a informação necessária à medida que os filmes se vão estreando.

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Quando Jorge Leitão Ramos publicou o Dicionário do Cinema Português 1962-1988 em finais dos anos 80, a ideia era que fosse uma obra única, um livro que apresentasse ao mundo os actores, técnicos, realizadores e filmes portugueses. À altura, não existia nenhuma referência desse tipo e a Internet estava longe de ser o que é hoje ou o autor teria preferido criar um IMDb português que compilasse toda essa informação. É o próprio que o confessa, ao mesmo tempo que revela a sua paixão pela recolha de dados e factos.

"Torna-se uma coisa obsessiva, a gente não pensa em mais nada." Essa obsessão e vontade de dar a conhecer os que fizeram o cinema português levou-o às outras artes. "Como não há cinema português que dê emprego a actores, não há actores de cinema português, há actores que também fazem uns filmes de vez em quando. Portanto, escolhi carreiras teatrais, livros que as pessoas tivessem escrito e, no caso dos compositores, discos. O Sérgio Godinho tinha lá a discografia toda dele."

Mal sabia que o seu editor, Zeferino Coelho, lhe iria pedir o resto, o que estava para trás. Ou seja, mais de 60 anos de datas, filmografias e fichas técnicas. Leitão Ramos passou muito tempo a folhear jornais na Hemeroteca Municipal, a rever filmes (os que não se perderam por incúria) para se certificar das informações que encontrou em Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949 de Félix Ribeiro ou O Cais do Olhar de José de Matos-Cruz (referências de que se socorreu). Um trabalho concretizado nos tempos livres entre a profissão de professor do secundário e a de crítico de cinema no Expresso e que demorou mais de vinte anos a acabar. O resultado, o Dicionário do Cinema Português 1895-1961, é agora editado, já depois de um outro volume, que abarcava o período entre 1989 e 2003, ter saído em 2006.

Escolheu encetar um dicionário pois era um registo que lhe era grato: "A única forma que tínhamos de nos documentar sobre cinematografias era através de histórias do cinema, evidentemente, mas os dicionários eram elementos muito importantes. Estou-me a lembrar do célebre dicionário sobre cinema americano do Bertrand Tavernier e do [Jean-Pierre] Coursodon [50 ans de cinèma américain], que é um modelo." De qualquer modo, afirma que nunca pretendeu escrever uma história do cinema português ou um livro de crítica pura ao jeito do de Tavernier e Coursodon ou do A Biographical Dictionary of Film de David Thomson. Em França e nos EUA, o trabalho de sapa já estava feito, o que permitiu a estes autores serem mais "ambiciosos" (principalmente no caso dos franceses) ou "delirantes" (no caso do anglo-americano). Ainda assim, cruzando-se a informação das diferentes entradas, consegue-se descobrir um "fio narrativo" no Dicionário de Leitão Ramos.



Os comediantes e os modernistas

Se o panorama actual do cinema português preocupa, a história ensina que a situação nunca foi muito diferente. Nos anos 20, a Invicta Film, sediada no Porto, foi a primeira tentativa de criar uma indústria em Portugal. A Invicta "é uma empresa industrial, feita com capitalistas a sério, que labora durante uma série de anos e faz uma série de filmes que constitui o esteio central do cinema mudo português e que depois vai à falência exactamente pela mesma razão que hoje os filmes portugueses precisam de ser subsidiados", diz. Os motivos são a falta de mercado interno que sustente até os maiores sucessos e a dificuldade de penetração noutros mercados. Nem mesmo a vinda de estrangeiros como George Pallu e Rino Lupo - "cineastas de segunda ordem" - e a busca de um selo de qualidade nas adaptações literárias permitiram cumprir o desejo de exportação. "Participei em debates na televisão e em mesas-redondas, e continuo a participar, cujos argumentário e questões são os mesmos que se discutiam nas revistas dos anos 20 sobre o problema da Invicta", admite Leitão Ramos.

Com o advento do sonoro - o primeiro filme sonoro inteiramente produzido em Portugal seria A Canção de Lisboa, de Cottinelli Telmo ("um meteoro" que não voltaria a filmar) -, dá-se uma ruptura. No início dos anos 30, já não restava nenhum dos estrangeiros do mudo, substituídos por realizadores portugueses: um jovem grupo urbano, intelectual e modernista, composto por António Lopes Ribeiro, Jorge Brum do Canto e Leitão de Barros. Mudava o registo, visto que o cinema ia buscar os escritores do teatro de comédia e das Revistas, e mudava a representação. "Os velhos actores pomposos que fizeram o cinema mudo português desaparecem praticamente todos. No princípio do sonoro vão buscar a gente do Parque Mayer, o António Silva, a Beatriz Costa, o Vasco Santana. É isso que dá grande dinamismo à comédia portuguesa na altura", diz. Releva o fascínio que esses filmes ainda exercem sobre o público português, que continua a identificar-se com eles. Apesar de considerar que escondiam uma realidade diferente da que apresentavam, encontra uma comédia divertidíssima e muito bem feita em O Pai Tirano, por exemplo.

Contudo, os filmes históricos e as adaptações literárias "de obras de qualidade indiscutida" haveriam de voltar a marcar a cinematografia portuguesa. "O António Ferro odiava a ‘comédia à portuguesa', chamava-lhe o cancro do cinema nacional, detestava os filmes de saloios. Achava que o que se devia fazer era Camilo e [os realizadores] tiveram de ir com o que o regime ia encomendado e foram fazendo aqueles pastelões, os Camões, os Bocage". António Ferro teve influência determinante no cinema português nas décadas seguintes, ao chefiar o Secretariado de Propaganda Nacional (depois Secretariado Nacional de Informação). É uma figura que Leitão Ramos considera ter tido uma ascendência nefasta, por não compreender os diversos caminhos possíveis para o cinema português

O autor descobre na geração dos modernistas uma ideia positiva de cinema e encontra prazer em determinados filmes: Maria do Mar, A Revolução de Maio, A Aldeia da Roupa Branca, para lá do Pai Tirano ou das longas e curtas de Manoel de Oliveira (figura que percorre os três volumes do Dicionário e que parece fazer sempre um caminho à parte), como Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bobó. Já a geração seguinte, formada pelos assistentes da anterior, a que chama "serventuários", suscita-lhe bem menos simpatia. A responsabilidade dos dramalhões insossos e as comédias requentadas da década de 50 pertence-lhes - Henrique de Campos e Armando de Carvalho são os principais alvos, mas nem Manuel Guimarães, levado ao colo pelos neo-realistas na altura, lhe parece merecedor de elogios.

Leitão Ramos considera que o período de 1895 a 1961 engloba maior percentagem de filmes maus - embora ressalve que não houve época pior do que a do cinema comercial dos anos 60 ("verdadeiramente abominável"), numa altura em que o Cinema Novo já dava cartas - mas não lhe custou vê-los. "Aborreço-me mais a ver o Hobbit do que pastelões portugueses dos anos 30", diz.

Para o autor do Dicionário do Cinema Português, não há grandes descobertas a fazer nesta época do cinema português. "A cinematografia é pequena, faziam-se três, quatro, cinco filmes por ano, não há nada nos baús." Posta a hipótese de uma reedição do segundo volume, o de 1962 a 1988, admite reavaliações: "Se o chegar a fazer, haverá algumas coisas de que eu direi afinal não era tanto assim, ou tanto mal ou tanto bem." No entanto, não pretende rasurar a sua anterior opinião, antes criar adendas como Tavernier e Coursoson fizeram na sua obra. Quanto a um novo dicionário, que abarque os filmes de 2004 até hoje, pode lançá-lo com mais prontidão, já que vem coligindo a informação necessária à medida que os filmes se vão estreando.