Abdulateef Al-Mulhim: “O inimigo não é Israel – está entre os árabes”
Os massacres na Síria impeliram o oficial da Marinha e comentador político saudita a reexaminar a história do Médio Oriente.Abdulateef Al-Mulhim explicou por que escreveu um artigo que surpreendeu o mundo ao ilibar o “regime sionista”
Já sem controlo sobre áreas estratégicas do país, incluindo metade de Aleppo, a maior cidade, e com grupos armados às portas da capital, Assad voltou a exigir que a oposição aceite um “plano de paz”, que inclui uma conferência de reconciliação nacional, eleições e uma nova Constituição, mas que, sobretudo, o mantenha no poder. As suas palavras, com referências a terroristas, conspiradores estrangeiros e à Al-Qaeda, evocaram, segundo comentadores na região, “os delírios” do coronel Khadafi antes de ser derrubado e morto, na Líbia, há dois anos.
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Já sem controlo sobre áreas estratégicas do país, incluindo metade de Aleppo, a maior cidade, e com grupos armados às portas da capital, Assad voltou a exigir que a oposição aceite um “plano de paz”, que inclui uma conferência de reconciliação nacional, eleições e uma nova Constituição, mas que, sobretudo, o mantenha no poder. As suas palavras, com referências a terroristas, conspiradores estrangeiros e à Al-Qaeda, evocaram, segundo comentadores na região, “os delírios” do coronel Khadafi antes de ser derrubado e morto, na Líbia, há dois anos.
Observou Richard Spencer, correspondente do jornal britânico The Telegraph, “o que mais interessa saber não é se os rebeldes aceitarão estas propostas modestas, mas por que hão-de negociar se estão convencidos de que Assad está perdido.” Na Ópera de Damasco, uma plateia dominada por membros da minoria alauita que tem detido o exclusivo do poder desde há mais de três décadas, aplaudiu o herdeiro da primeira dinastia republicana árabe (filho do defunto Hafez al-Assad). Estariam a exprimir amor pelo seu líder, questionou Spencer, ou era sinal de pânico face à tomada de consciência de que Bashar se estava a despedir deles?
Numa conversa telefónica com o PÚBLICO, para actualizar uma entrevista que dera em Dezembro último, o saudita Abdulateef Al-Mulhim mostrou-se demasiado perturbado para analisar o vocabulário de Bashar, mas relembrou que foram os massacres no país levantino (Mediterrâneo oriental) que o levaram a publicar, no passado dia 6 de Outubro, um artigo intitulado Arab Spring and the Israeli enemy / “A Primavera Árabe e o inimigo israelita”, em que iliba o outrora renegado “regime sionista”.
“Fico com o coração partido ao ver a força aérea síria chacinar crianças [2300, informa o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, de um total de 60 mil vítimas contabilizadas este mês pela ONU]; ao ver a mortandade no Iraque causada pelo sectarismo religioso entre xiitas e sunitas; ao ver inocentes morrerem de fome no Iémen…”, disse-nos o influente analista no Golfo Pérsico. “A destruição e as atrocidades que vejo não são culpa de um inimigo externo. São cometidas por aqueles que deveriam proteger as suas populações. O mundo árabe tem muitos inimigos, mas Israel deveria estar no fim da lista. Os principais inimigos são internos: corrupção, falta de liberdade e desrespeito pelos direitos humanos. Os crimes dos ditadores árabes são muito piores do que todas as guerras israelo-árabes. Veja-se o Egipto: em vez de reconstruírem um país após a queda de Hosni Mubarak, salafistas querem destruir as Pirâmides.”
Foi na coluna de opinião, que semanalmente publica no jornal Arab News, que o comodoro (patente superior à de capitão de mar e guerra e inferior à de contra-almirante) graduado em 1979 na State University of New York Maritime College se interrogou: “Por que é que os Estados árabes não gastaram os seus fundos em educação, saúde e infraestruturas e optaram por guerras? Mas a questão mais dura que nenhum árabe quer ouvir é por que é que Israel é o inimigo real do mundo árabe e do povo árabe?”
Uma solução do conflito com Israel “tem de começar com a resolução do problema dos refugiados palestinianos”, precisou Abdulateef Al-Mulhim, na entrevista. “Só podem ser reconhecidos os refugiados de 1948 e não os de 1967; estes terão um lar na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Pior estão os refugiados que se encontram no Líbano, no Iraque, na Síria, na Jordânia, mas é necessário que os palestinianos aceitem um compromisso.” Porque os árabes, assegura, “já não têm tempo e vontade de lutar contra Israel. Os Estados do Golfo, por exemplo, estão a modernizar-se; não lhes interessa outra guerra que possa destruir as suas infraestruturas.”
Uma nova Primavera
Al-Mulhim confessou surpresa com a gigantesca onda de elogios e críticas que recebeu após o artigo em que culpa os árabes pelos seus males. “Já havia escrito textos mais polémicos, todos eles traduzidos para outras línguas, mas talvez esta reacção se possa explicar pelo difícil momento que vivemos.” Como exemplo de dois artigos “ainda mais maldizentes”, menciona What if the Arabs had recognized Israel in 1948?/ “E se os árabes tivessem reconhecido Israel em 1948?”; e Is Visiting Jerusalem a recognition of Israel? / “Visitar Jerusalém é reconhecer Israel?”.
No primeiro, o militar que vive em Khobar, a primeira cidade saudita atacada por Osama bin-Laden, em 1996, lamentou a falta de visão dos árabes quando a ONU propôs a divisão da Palestina do Mandato Britânico. Se a existência de Israel não tivesse sido negada, “os palestinianos teriam conseguido libertar-se das promessas ocas dos ditadores árabes que insistem em dizer-lhes que os refugiados irão regressar às suas casas, que todos os territórios árabes serão libertados e que Israel será lançado ao fundo do mar. Alguns líderes árabes têm usado os palestinianos para suprimir os seus próprios povos e se manterem no poder. Cada político árabe, desde 1948, queria ser um herói e era fácil conseguir isso, só tinha de gritar bem alto a sua intenção de destruir Israel, sem mobilizar um único soldado (falar não custa nada).”
Na coluna provocatória sobre Jerusalém, por outro lado, aplaudiu Anwar Sadat, o Presidente egípcio que pagou com a vida a audácia de visitar, em 1977, uma capital disputada por dois povos, antes de assinar o primeiro tratado de paz israelo-árabe. “O Egipto conseguiu o que nunca conseguiria com uma guerra: a devolução da península do Sinai”. Al-Mulhim também exortou a que fosse seguido o exemplo do Grande Mufti do Egipto que se deslocou à Mesquita de Al-Aqsa, em 18 de Abril de 2012: “Só assim se pode pôr fim ao conflito.”
No passado dia 5, na sua mais recente coluna, Republic of Iraq – Rich and fractured / “República do Iraque – Rica e fracturada”, Al-Mulhim adverte para um inevitável banho de sangue se os iraquianos se revoltarem contra os actuais líderes, que ele considera estarem demasiado dependentes do Irão. É implacável, em particular, com o primeiro-ministro Nouri al-Maliki, “que desconhece o significado de democracia”. A chamada “Primavera Iraquiana” tem mobilizado particularmente os sunitas, protegidos da Arábia Saudita, mas também os xiitas mais pobres, nas localidades de Ramadi, Mossul e Samara.
Retomar a marcha
Para Al-Mulhim, uma revolução como a que começou no Magrebe (Tunísia) e se alastrou ao Mashreq, designadamente ao Bahrein, emirado para onde a Casa de Saud enviou tropas e armas para esmagar uma sublevação xiita, arrisca-se a dividir ainda mais – e “por muito tempo” – um país já fracturado e “dos mais corruptos”. Deixou um conselho a Maliki: “Não deve ignorar as reivindicações populares, porque o Irão não estará lá [para o amparar] se ele cair.”
Há um provérbio no Médio Oriente – “O inimigo do meu inimigo é meu amigo” – que, talvez, justifique a formação e dissolução de várias alianças regionais, como a que uniu a Síria de Hafez al-Assad ao Irão do ayatollah Khomeini contra o Iraque de Saddam Hussein em 1980 – Damasco e Bagdad governados à época por facções rivais do partido Baas. No entanto, se a criação do Estado de Israel em 1948 fez com que fosse ostracizado pelos vizinhos árabes como “O inimigo” que jamais poderia ser amigo, as recentes revoltas que derrubaram autocratas vitalícios estão, aparentemente, a mudar mentalidades.
O mundo há muito que está habituado à imensa capacidade de autocrítica dos israelitas. Historiadores, como Benny Morris ou Tom Segev, foram os primeiros a revelar segredos escondidos em arquivos, reconhecendo “limpezas étnicas” e massacres, cometidos em nome do sonho sionista de Theodor Herzl e que contribuíram para o êxodo palestiniano.
Do lado árabe, essa reflexão tem sido feita, mas de forma lenta, e provavelmente, ninguém ousou ir tão longe como Abdulateef Al-Mulhim. Embora as suas críticas ao Iraque de Maliki sejam partilhadas pela monarquia saudita, hostil à teocracia iraniana, o facto de ele poder exprimir – e publicar – opiniões que não são as da realeza em Riad, “sem correr o risco de ser preso”, é um sinal de que “o comboio árabe parado desde 1948” retomou finalmente a viagem, esperando ainda alcançar o progresso que Israel atingiu nos últimos 65 anos.