Regina Pessoa: “Estar nomeada para os Annie Awards já é muito bom para o meu trabalho”

"Kali, o Pequeno Vampiro" é a curta-metragem que valeu à realizadora a nomeação para os mais importantes prémios norte-americanos do cinema de animação. O filme encerra uma trilogia sobre a infância, e foi o primeiro em que a animadora desenhou directamente no computador. “No início, foi uma violência, mas depois funcionou”, confessa Regina Pessoa.

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Inpiração de Kali, o Pequeno vampiro vem da biografia da autora, Regina Pessoa Rui Farinha

Estreado no último Indie Lisboa e já com um palmarés de dezena e meia de prémios e citações por todo o mundo – o Libération descreveu-o como “uma obra visual e plástica que vai além da narração ou ilustração de uma história” –, o novo filme de Regina Pessoa (n. Cantanhede, 1969) surge, assim, como uma lança do cinema de autor em pleno território da indústria americana. A realizadora não tem grandes ilusões quanto às suas possibilidades de competir com produções da Walt Disney ou da Sony Pictures, mas nota que a nomeação é já uma grande vitória.

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Estreado no último Indie Lisboa e já com um palmarés de dezena e meia de prémios e citações por todo o mundo – o Libération descreveu-o como “uma obra visual e plástica que vai além da narração ou ilustração de uma história” –, o novo filme de Regina Pessoa (n. Cantanhede, 1969) surge, assim, como uma lança do cinema de autor em pleno território da indústria americana. A realizadora não tem grandes ilusões quanto às suas possibilidades de competir com produções da Walt Disney ou da Sony Pictures, mas nota que a nomeação é já uma grande vitória.

Com Kali, o Pequeno Vampiro, Regina Pessoa encerra uma trilogia sobre o tema da infância. Entretanto, tem compensado a dificuldade de viver da animação no nosso país trabalhando também para a publicidade. Depois de um vinho do Porto, acaba de fazer o rótulo para uma cerveja italiana, a que o produtor decidiu mesmo atribuir o seu nome, “Regina d’Inverno”.

Temas para uma conversa demorada na nova casa da realizadora numa aldeia de Lousada, ao lado do seu companheiro e produtor Abi Feijó – que também nos apresenta o projecto de um Museu da Imagem Animada.

  

A nomeação para os Annie Awards foi uma surpresa? Sabia que o filme tinha sido candidatado?
Sim, mas foi uma surpresa. Eu tenho a vantagem de ter coprodutores canadianos, que têm acesso a outra rede de distribuição e de festivais, e que têm outros canais que nós não temos cá. Sabia que eles tinham candidatado aos Annie Awards alguns dos filmes que produziram, e que o Kali era um deles. Mas não estava à espera de ele ser nomeado.

 
O filme está nomeado numa lista de oito produções, que tem títulos da Walt Disney, da Sony Pictures, de Bill Plympton... Tem alguma expectativa de vencer?
Os Annie Awards fazem parte da indústria americana, e esta privilegia as suas produções, tal como os Óscares. Terei mesmo poucas hipóteses de ganhar. Mas estar nomeada já é muito bom para o meu trabalho. O facto de esse núcleo duro da indústria americana ter seleccionado o meu filme é uma grande honra.


A nomeação poderá ter reflexos na distribuição do filme na América?
O filme ganhou, claro, outra visibilidade e receptividade nos festivais e nos circuitos próprios das curtas-metragens, que têm uma distribuição muito limitada. Os nomeados vêm, grande parte deles, da indústria americana, que valoriza mais o humor, a narrativa mais infantil. O meu sai um bocadinho dessa lógica.

Pode-se dizer que Kali, o Pequeno Vampiro é um filme de autor no território da indústria.
Exacto. É um filme de autor no meio daquela selecção. É claro que eles vão premiar o filme que está dentro dos seus cânones. Isso verifica-se sempre. Mas é muito bom estar nomeado.

Vai à cerimónia de entrega dos prémios?
São os produtores canadianos que têm apoiado toda a promoção do filme. Infelizmente, desta vez, não tivemos apoio à promoção, de Portugal. Assim não tenho meios para fazer a viagem e assistir à cerimónia. Estamos em negociações com os nossos produtores canadianos para ver essa hipótese de ir lá.

Mas já esteve na América a fazer a promoção do filme.
Sim. Fiz uma pequena tournée de cerca de uma semana na Califórnia. Fiz sessões em S. Francisco, no Walt Disney Family Museum, na Universidade San Jose, em Silicon Valley, e também em Hollywood, para a associação dos animadores da Califórnia, onde está a massa pesada dos profissionais da animação nos Estados Unidos.

O filme foi bem acolhido?
Foi muito bem acolhido. Eles não estão habituados a ver este tipo de curta-metragem, vêem mais os cartoonsThat’s all folks! [risos]. As sessões foram promovidas pelos produtores canadianos: apresentávamos os meus três filmes, mais dois de outra realizadora, a canadiana Michèle Lemieux – que ganhou o Grande Prémio do Cinanima 2012, com Le Grand Ailleurs et le Petit Ici –, e fazíamos uma palestra sobre o nosso processo criativo e de trabalho. O facto de irmos a esses sítios, ao Walt Disney Family Museum – a sua história fala por si... São pessoas que se dedicam mesmo à animação, e verem filmes que não entram dentro do cânone americano também despertava muita curiosidade.

O facto de a história do seu filme ser sobre um vampiro, um personagem e um tema que estão de novo na moda, terá tido alguma influência na sua boa aceitação?
Foi uma coincidência. Esta ideia surgiu-me imediatamente a seguir a História Trágica com Final Feliz [2005], mas depois demorou tempo a conseguir os financiamentos e a arrancar com o projecto. Mas o facto de os vampiros estarem na moda não me parece que traga qualquer benefício, nem malefício, ao filme. Podia até ter acontecido o contrário: “Lá vem mais um filme de vampiros…”

Está prevista a entrada de Kali, o Vampiro no circuito comercial português, como aconteceu com os filmes anteriores?

O Abi [Feijó] já falou com a Atalanta, para ver se o nosso filme poderá sair com uma longa. Mas agora, com a crise, as coisas complicaram-se para toda a gente. A Noite saiu com O Quadro Negro, de Samira Makhmalbaf, História Trágica com Final Feliz saiu com O Caimão, de Nanni Moretti. Temos de voltar a falar com eles para ver com que filme é que o Kali se adaptaria.

Ter a voz de Christopher Plummer e música dos Young Gods facilita a afirmação internacional do filme?
Permite atingir outros públicos – há gente que quando sabe que o filme tem música dos Young Gods dispõe-se a ir vê-lo –, facilita o cruzamento de audiências, e isso é interessante. É isso que tentamos sempre fazer, mesmo quando organizamos uma exposição. A curta-metragem já tem uma vida tão… curta, e um mercado inexistente, que nós tentamos criar outros circuitos – uma exposição, uma edição… – para prolongar a vida do filme.

Depois das exposições realizadas com os filmes anteriores, já está a montar uma nova com Kali
Sim. E já temos duas exposições anunciadas para França, na zona de Paris, em Fevereiro, e depois – se tudo correr bem –, no Rio de Janeiro, em Julho.

Como é que conseguiu Christopher Plummer e os Young Gods?
Os Young Gods... Eu estava a trabalhar no story board e a ouvir música, como sempre faço quando desenho. E quando passava um tema dos Young Gods, achava que a música deles ia mesmo bem com a história do filme, porque ele tem momentos mais de reflexão, mais intimistas, e outros de acção, como quando o comboio passa... Os Young Gods também têm esse tipo de temas, uns mais esotéricos e espaciais, outros de rock industrial. Essa música ficava mesmo bem com as imagens. Mas eu não tinha qualquer ilusão. Depois, no festival de Zagreb, encontrei uma amiga suíça e falei-lhe do meu projecto, e de como gostaria de poder trabalhar com os Young Gods. Ela disse que isso seria fantástico, e que me ia arranjar os contactos deles. E assim foi: falei com eles, e eles foram muito receptivos; pediram-me para eu enviar o material, e aceitaram. Como eles são, apesar de tudo, uma banda bastante conhecida, o orçamento do filme não dava para lhes pagar o cachet. Perguntámos a uns amigos suíços, que também são produtores e realizadores – entre eles o Georges Schwizgebel –, se não seria possível conseguir uma pequena coprodução para pagar a música. Ele disse que era uma boa ideia, e entrou nessa loucura. E arranjou-se, de facto, dinheiro na Suíça para ter a música dos Young Gods.

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A música que eles compuseram correspondeu àquilo que sonhava?
Completamente. E foi muito bom conhecê-los, principalmente o líder, o Franz Treichler. Depois que acabou o filme, ficámos amigos.

E a voz de Christopher Plummer?...
Eu queria uma voz de alguém de idade, que desse a sensação de sabedoria, para dar a ideia de que o personagem não morreu, que continua a viver algures, que encontrou o seu lugar. Os produtores canadianos trabalham com actores muito bons, do país. Falei com a minha coprodutora, e ela achou boa ideia que tivéssemos uma voz canadiana. Havia três ou quatro opções – a primeira não resultou…

Quem era?
O Leonard Cohen. Mas ele andava em tournée, e não estava disponível. A seguir era o Christopher Plummer. A minha produtora contactou-o e ele aceitou muito naturalmente.

E a voz de Fernando Lopes para a versão portuguesa?
Um dia estávamos a ouvir rádio e ouvimo-lo numa entrevista, ou a fazer a leitura de um texto. Gostámos muito. Ele tinha também uma voz que reflectia sabedoria. O Abi falou com ele, e ele ofereceu a sua voz, não quis dinheiro nenhum. Já estava doente; gravámos em Outubro de 2011...

Kali, o Pequeno Vampiroencerra a sua trilogia sobre o tema da infância. Isto vem resolver alguma questão psicológica consigo própria?
Não posso falar deste filme sem falar dos anteriores. No caso do primeiro, A Noite [1999], a ideia era muito simples, e não foi intencional falar de mim, embora, de facto, eu tivesse muito medo do escuro quando era pequena. O Abi arranjou um estágio de formação com o estúdio francês Lazennec Bretagne, que tinha praticamente os mesmos problemas de formação que nós, no Filmógrafo. E uma das etapas era criar uma história. Todos nós, praticamente, vínhamos do meio do desenho artístico e não tínhamos experiência de como contar ou escrever uma história, e tivemos muitas dificuldades. Aí o Abi disse-nos algo, que me continuou a ajudar sempre: “Não se preocupem em escrever, em procurar as palavras numa estrutura clássica; falem de algo que seja importante para vocês, que vos diga algo; se se empenharem, isso vê-se nas imagens, e quem vir essas imagens também o sente”. Eu pensei que quando era pequena tinha medo do escuro, e isso criava boas imagens. Pensei que seria um bom começo. Não era preciso propriamente criar uma história, era mais criar uma situação e passar uma emoção. Foi assim que comecei o meu primeiro filme. Não foi intencionalmente para falar de mim e dos meus medos. Foi a solução fácil para falar de algo que conhecia. Também aprendi que, quando falamos de algo que conhecemos, somos mais credíveis, as coisas saem mais facilmente. Com essa experiência, fiz o meu segundo filme, a História... e quando o acabei, dei-me conta de que havia temas em comum: a infância, a diferença, o medo... E achei que havia um problema por resolver. Decidi então criar este filme, Kali, o Pequeno Vampiro, mais uma vez abordando o tema da diferença, mas permitindo ao personagem encontrar o seu lugar e fazer as pazes com a infância.


Isso tirou-lhe o medo do escuro?
De facto, já não tenho medo do escuro, agora [risos].

 
Significa que o seu próximo projecto seguirá um caminho diferente? Quer revelar-nos algo sobre ele?
Sim. Já tenho um novo projecto, com o título provisório que é A Contabilidade dos Dias. Queria abordar o tema do que é ser adulto. Baseei-me num tio meu, de que gostava muito, que saía completamente das normas que a sociedade hoje exige a um adulto: ser bem sucedido, ter uma família, filhos, uma casa, um emprego... O Tio Tomás era completamente fora disto: não era casado, não tinha filhos, nem família, nem emprego fixo. E, no entanto, ele era importante para mim. A ideia que eu gostaria de passar – vou ver se consigo – é que não é preciso fazer nada de extraordinário para se ser excepcional para alguém. Foi com esse tio que aprendi a desenhar. Eu era pequenina, nós éramos muito pobres, mas morávamos numa aldeia, onde há espaço, e paredes em casas abandonadas. Ele ensinava-nos a desenhar nessas paredes, com carvão.
 

Em Kali, utilizou pela primeira vez o computador, mas conseguiu manter a imagem e a marca estética dos filmes anteriores. Foi difícil adaptar-se às novas tecnologias?
No início, sim. Eu sempre fiz desenhos à mão. O trabalho físico, o contacto com os materiais, sempre foi muito importante. Isso foi uma imposição dos produtores. Disseram-me: “Regina, os tempos evoluíram, desta vez tens que tentar outra solução, que não seja tão morosa”… E, lá está, com a parte financeira sempre implícita. No início, foi uma violência. Eu não gostava mesmo nada, até mesmo o interface era desagradável. Até que conseguimos. Alguém falou de uma nova versão do Photoshop, que seria mais aconselhável para o meu tipo de desenho. Experimentei, tive algumas “dicas”, e depois há um momento em que se dá um clique. E percebi que aquilo podia funcionar. E funcionou. Escrevi mesmo um manual para uso pessoal, porque sabia que ia ter dois ou três colaboradores e, tal como eu, eles usavam o Photoshop para corrigir uma imagem mas não para criar um desenho do início ao fim. Então achei que era bom, pelo menos, dar nota de como eu queria que se usassem os tools do Photoshop. A equipa acabou por se adaptar e correu muito bem.

 
Neste filme usou cor pela primeira vez, apesar de ser só o vermelho…
E é uma grande cor [risos].

O próximo também vai ser a cores?
Ainda não sei. Kali saiu e tenho andado ocupada com a sua promoção, e com a exposição. Além disso, ainda não recebi o subsídio de apoio ao desenvolvimento do projecto. Sofro do mesmo problema do resto do país. Foram-me atribuídos fundos em 2011, mas ainda não recebemos.

Qual é a expectativa relativamente a este ano, com o anúncio da abertura dos concursos?
Espero que os concursos só abram depois de pagarem os subsídios atribuídos em 2011. Mas o facto de anunciarem a sua abertura já é muito bom. É sinal de que pode haver continuidade na produção. Eu e toda uma geração temos assistido a um crescimento na produção de filmes, e os resultados estão aí. Eu tenho feitos alguns filmes, e outros realizadores também. É bom sabermos que vai haver uma continuidade da política de apoios. Espero, e desejo, que isso possa acontecer. Os meus filmes têm sido feitos em coproduções com outros países, porque o dinheiro que recebemos em Portugal – cerca de um terço do orçamento – não chega. No caso do Kali, a França é o produtor maioritário, depois Portugal, o Canadá e a Suíça. O dinheiro que nos é atribuído em Portugal não dá para fazer o filme, mas dá-me acesso, e credibilidade, para ir ter com outros produtores estrangeiros e dizer: “Já tenho um pequeno apoio”. E isso ajuda a que outros países entrem na produção.


É possível viver da animação, ainda por cima numa situação de crise como a que actualmente vivemos?
Até à data, eu tenho vivido só da animação. Por exemplo, todas estas palestras que fiz nos Estados Unidos são pagas. Por outro lado, tenho feito alguns trabalhos paralelos de publicidade. E vivo com o que consegui também economizar durante a produção do Kali.

Já uma vez disse que não gosta de dar aulas...
Se calhar, vou ter que pôr esse cenário. Mas não sinto grande motivação. Ou não tenho à-vontade – é mais isso –, não reajo bem em frente de uma multidão. Acho que não sou boa comunicadora, e isso é fundamental. Prefiro desenhar. Mas – lá está: é um paradoxo – gosto de ensinar, individualmente.

Como disse, tem sido convidada a fazer trabalhos de publicidade e, curiosamente, na área das bebidas: primeiro foi um vinho do Porto, agora uma cerveja, em Itália…
Foi uma surpresa. Em 2010, o Dick e a Verena Niepoort viram os meus filmes e pediram-me para eu fazer um livro em que se explicasse a diferença entre os dois principais vinhos do Porto, o Ruby e o Tawny. Essa foi a minha experiência de entrada neste ramo dos álcoois [risos]. Depois, como gostaram muito da minha proposta, resolveram pedir-me para eu criar também os rótulos a partir das personagens que eu tinha criado para o livro. Entretanto, fiz uma exposição e uma retrospectiva em Bérgamo [em Abril de 2011], e uma companhia de cerveja italiana, não sei como, viu o meu trabalho; pelos vistos gostou e contactou-me para eu criar um rótulo para uma cerveja para o Inverno, que eles queriam lançar na altura do Natal. Enviei-lhes uma proposta, e fiquei muito surpresa quando vi que eles decidiram chamar à cerveja “Regina d’Inverno”. Além de me pedirem para eu fazer o rótulo, e pagarem, ainda deram o meu nome à cerveja!

Quando trabalha para a publicidade, fá-lo com o mesmo entusiasmo que dedica aos filmes?
É muito divertido. Não tenho assim tanta experiência como isso, mas as propostas que tenho tido têm-me dado liberdade total. Algumas, não aceitei por falta de tempo, mas as que tenho aceite são um bocado malucas [risos], como fazer rótulos para uma cerveja... E permitem-me continuar a criar e manter uma ligação com o meu trabalho.