O Natal na Guiné é “corda de batata”

A batata larga as suas raízes na terra e cria ligações extensas e complexas, é o mesmo que acontece com os guineenses. Mesmo os muçulmanos festejam o Natal.

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Comemora a tradição católica como se fosse o Tabaski ou o Ramadão, as duas maiores festas muçulmanas. Este ano ainda não sabe como vai ser, um conhecido hotel onde era motorista não lhe pagou os cinco últimos meses de trabalho, as poupanças são curtas e a cabra ainda custa uns 25 mil francos CFA (cerca de 38 euros). “Os meus amigos já estão habituados a que seja eu a organizar tudo. Encontram-me na rua e perguntam: ‘Então, Domingos, como é que vai ser este ano?’ Eu digo que não sei, que logo se vê, também não pode ser sempre o mesmo, façam eles!”

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Comemora a tradição católica como se fosse o Tabaski ou o Ramadão, as duas maiores festas muçulmanas. Este ano ainda não sabe como vai ser, um conhecido hotel onde era motorista não lhe pagou os cinco últimos meses de trabalho, as poupanças são curtas e a cabra ainda custa uns 25 mil francos CFA (cerca de 38 euros). “Os meus amigos já estão habituados a que seja eu a organizar tudo. Encontram-me na rua e perguntam: ‘Então, Domingos, como é que vai ser este ano?’ Eu digo que não sei, que logo se vê, também não pode ser sempre o mesmo, façam eles!”

“Qual é o problema? Não estou a ver qual é o problema, não há mal nenhum, os católicos também vêm às nossas festas”, responde Quebá Indjai, também muçulmano, quando o PÚBLICO lhe pergunta o porquê de celebrar uma festa tradicional de uma religião que não é a sua. Por ele, não comprava prendas para os filhos nem fazia árvore de Natal, é a mulher quem o obriga. “Há dois anos traí-a e tive um filho ilegítimo, fiquei tão, mas tão mal naquela fotografia, que agora faço tudo o que ela quer. Quase todos os anos é uma árvore de Natal nova: a minha mulher empresta-as aos vizinhos para tirarem fotografias com a família e nunca mais voltam”, queixa-se.

Para ele, o Natal é acima de tudo sinónimo de futebol. Quebá tem 40 anos e os olhos brilham-lhe quando fala dos tempos em que era jogador profissional. É nesta altura que organiza em Tite, uma região no interior Sul da Guiné-Bissau, um torneio de bola com os amigos que vêm da capital para as festas. “Não perco isto nem por nada, somos só adultos a partir dos 16 anos. O Natal na tabanca é muito melhor do que o dos djinton da Praça [a expressão significa classe alta e é usada com um tom depreciativo e de gozo] do centro de Bissau.”

Na Guiné-Bissau, o Natal e a Páscoa não são uma festa para católicos tal como o Ramadão e o Tabaski não são uma festa para muçulmanos. São uma festa e ponto. De acordo com o World Fact Book da CIA, 50% da população é muçulmana, 40% crente em práticas indígenas (destes a maioria é animista) e 10% cristã. “Não há um fundamentalismo islâmico, todos confraternizamos uns com os outros até porque na mesma família existem crentes de várias religiões. E isto é o melhor de ser guineense, pode haver pouco, mas esse pouco é sempre partilhado com os amigos e os vizinhos”, analisa o poeta e antigo jornalista da Rádio Nacional da Guiné-Bissau Agnello Regalla. 

E acrescenta: “O Natal aqui é aquilo que em crioulo se chama “corda de batata”. A batata larga as suas raízes na terra e cria ligações extensas e complexas, é o mesmo que acontece com o nosso povo. Além da mestiçagem entre africanos e europeus, existem casamentos entre diferentes etnias, vai chegar um momento em que perderemos a identidade étnica e teremos uma identidade nacional mais forte. É por isso que será muito difícil vermos na Guiné-Bissau guerras étnicas, como acontecem noutros países de África.” 

Para Sambel Baldé, 58 anos na realidade e 53 no bilhete de identidade – porque para conseguir a bolsa de estudo para ir para Portugal fez-se passar por mais jovem –, só há um problema com esta mescla de tradições: o dinheiro. O engenheiro agrónomo é muçulmano, tem cinco filhos e queixa-se que estes o levam à falência. “Nesta altura, sobretudo nas tabancas, os miúdos aproveitam para pedir dinheiro. Os meus filhos já não querem roupa nova só no Tabaski mas também no Natal. E os pais não dizem que não. São cerca de 10 mil francos CFA [15 euros] por peça, para pagar o tecido e o costureiro, levo logo um arrombo de 50 mil.”

Em Bissau, o Natal é quase invisível

Na casa de Amiga o bacalhau para a noite de Natal é cozinhado na rua num pequeno fogareiro de carvão e a consoada faz-se à luz de velas e lanternas a pilhas. É uma assoalhada que faz de quarto e sala de jantar (a cabeceira da cama tanto serve para guardar os bonecos dos filhos como os pratos e o azeite) coberta por um telhado de zinco, sem electricidade nem gás. Água canalizada só às vezes e é no quintal, quando a rede de abastecimento pública funciona.  À mesa são sempre seis: a mãe, os dois filhos, o irmão mais novo e a sobrinha, todos católicos, mas depois há outros familiares, vizinhos e amigos sempre a entrar e a sair.  Para a noite de 24 de Dezembro, cozinham bacalhau, cozido de peixe e adoçam a refeição com uma sobremesa de papaia moída e açúcar caramelizado. No dia seguinte, comem o que sobra.

Amiga Santy tem 27 anos, estuda no 10.º ano e trabalha como empregada de limpeza e professora de educação física em Bissau. No ano passado ofereceu uns sapatos ao irmão e recebeu em troca umas calças de ganga. Com os dois trabalhos, ganha pouco mais de 90 euros por mês, mas na sua casa não são só as crianças que recebem prendas (na maioria das famílias guineenses só os mais novos têm direito a presentes, não há o hábito de ofertar os adultos nem sequer no dia do aniversário). “Este ano ainda não comprei nada, estou à espera que haja dinheiro.” O que gostava de receber? “Um cabelo postiço, sapatos e roupa.” O cabelo já o tem, resta saber se os seus outros desejos serão realizados.

Passeando pelas ruas de Bissau, nem parece que é Natal. O calor faz suar os corpos  e contam-se pelos dedos as lojas enfeitadas com luzes ou pais-natais. Não há montras vestidas de verde e vermelho, nem vidros polvilhados de purpurinas douradas e prateadas. Dentro das lojas, onde habitualmente se compram produtos não perecíveis como enlatados, bolachas ou detergentes quase ao dobro do preço da Europa (os supermercados não vendem frutas, legumes ou congelados), aumenta a quantidade de brinquedos nas prateleiras e cria-se um expositor para os entusiastas da árvore de Natal que não dispensam as bolas, as pinhas e as fitas.  

Mas nem sempre foi assim. Durante o colonialismo o comércio da capital guineense era igual ao de Lisboa, conta o jornalista Agnello Regalla. “Depois instalou-se um extremismo ideológico que fez com que fossem desaparecendo certas tradições como as montras iluminadas e os presépios. A pequena burguesia que estava ligada ao colonialismo foi ostracizada. Por exemplo, as pessoas que compravam bacalhau e grão passaram a ser olhadas de lado, por estarem a reproduzir um costume português. Agora isso já não acontece, mas certos hábitos perderam-se.”

O dono do supermercado Bonjour, um dos poucos da cidade que vende brinquedos, diz que este ano nem se preparou para o Natal. As vendas baixaram mais de 60% desde o golpe de Estado de 12 de Abril e Fernando Escada não teve vontade de enfeitar a loja. “Já vendi alguns bonecos e enfeites de Natal, mas não se compara a outros anos. Em Dezembro facturava-se mais de 300% relativamente aos meses anteriores, trabalhávamos durante o ano para o lucro ser quase todo produzido na altura das festas. A crise que agora se vive fez com a classe média enfraquecesse ainda mais e que as pessoas possam cada vez menos comprar estes luxos”, analisa.

Ementa de Natal

Aldina de Moura, 38 anos, não se deixa levar pela depressão generalizada dos guineenses que temem um novo golpe de Estado e uma derradeira derrapagem na economia do país. Quando o PÚBLICO chega a sua casa está a fazer o que faz todos os anos por esta altura: a prepará-la para o Natal. Pinta as paredes, faz uma limpeza generalizada e desinfecta todos os cantos com Baygon, para que nada falhe na noite da Consoada. É com a irmã Idília que começa logo no dia 23 a preparar os rissóis de camarão e os croquetes de peixe para congelar. A ementa é variada: para entrada os salgadinhos e o Galinha Cafriela  (com limão, piri-piri e cebola), para o jantar o bacalhau pode ser cozinhado à Brás ou à Gomes de Sá (nunca cozido) e no almoço de Natal a caldeirada é de cabra, cabrito ou borrego, conforme a carne que estiver disponível no mercado. As sobremesas vão da torta com creme de morangos ao doce de bolacha ou ao pudim, dependendo da inspiração e do tempo.

O marido de Aldina trabalha como advogado do Governo o que lhe permite levar uma vida mais desafogada do que a maioria dos guineenses. Vive na Praça, o centro de Bissau, perto dos três supermercados principais da cidade – Bonjour, Bodem e Darling – mas tenta controlar ao máximo o espírito consumista e só compra prendas para os três filhos. “Os brinquedos são muito caros. Uma boa boneca chega a custar 30 mil francos [cerca de 45 euros], em vez de comprar mais presentes, prefiro aprimorar na comida e termos todos roupas novas a estrear, isso é que não falha”, conta. 

Aldina e a irmã Idília são católicas, o marido muçulmano. Ídilia, como quase todos os católicos guineenses, vai sempre à Missa do Galo e leva consigo a sobrinha Jihane de 11 anos. Ninguém se zanga por causa disso. “Dizem que na Guiné não há dinheiro mas quando se fala em festa ninguém falta, graças a Deus!”, resume Aldina.