O poema negro de João Onofre
João Onofre está cansado e contente. Acabou de chegar de Bruxelas onde mostrou A Box-sized DIE featuring..., o cubo no interior do qual uma banda de death-metal toca no limite do suportável. A apresentação da performance decorreu no centro de artes Netwerk (no âmbito da colectiva Watch that Sound) e é apenas mais uma das que têm levado o artista português num périplo pela Europa. "Faltam em Portugal lugares para mostrar o meu trabalho e por isso vou apostando no circuito internacional. Os convites têm surgido", diz animado. A peça inspirada numa escultura de Tony Smith não é inédita entre nós, pois teve a sua estreia na Galeria Cristina Guerra em 2007. Não podemos dizer o mesmo do vídeo Untitled (Original orchestrated ersatz light version): realizado em colaboração com Adelaide Ferreira e exibido em Julho na Fundação Miró, em Barcelona, permanece invisível no circuito nacional. E até há poucos dias essa seria também a condição de Untitled (N'en Finit Plus) (que já passou pela Galeria Toni Tàpies, Barcelona ), não fosse a iniciativa do Festival Temps d'Images e do Museu do Chiado. Quem quiser já o pode contemplar e ouvir na sala polivalente do museu lisboeta.
A emoção e o conceito
Seguimos, suspensos no movimento circular da câmara, o corpo de uma rapariga. Primeiro o chão terroso que os seus pés pisam, depois o corpo num contre-plongé até ser revelado o espaço que o rodeia: uma vala escavada na superfície verde da relva. Nesse instante, percebemos o isolamento e a impossibilidade de libertação. O movimento da câmara prossegue entretanto e empurra o nosso olhar para o fundo negro do céu. Da adolescente, agora fora de campo, só resta a voz enfraquecida antes do silêncio tumular. Antes de novo recomeço.
Acrescente-se um dado sem o qual este vídeo não existe: a adolescente canta à capela La nuit n'en finit plus, de Petula Clark, e são as letras do tema, um lamento provocado pela solidão e mortalidade, que despertam sentidos para além do simples exercício tautológico. Não é a primeira vez que o artista usa canções pop como material dos seus trabalhos, mas a história de La nuit n'en finit plus, pelas camadas que a constituem, merece ser contada.
"É uma versão de Needles and pins, dos The Searchers, que depois foi tomada por outros intérpretes [entre os quais, os Ramones]", revela Onofre. "Quando é o homem a cantar, sofre por ver a amada com outro e a situação inverte-se quando é a mulher quem interpreta. Acontece que a Petula Clark não se limitou a fazer uma versão. Reescreveu a canção com a sonoridade do yé-yé e o francês e retirou-lhe o género. Ficou apenas o tempo e o lugar."
No ano do lançamento de La nuit n'en finit plus, a cantora inglesa tinha 35 anos, facto que despertou a admiração e a curiosidade do artista e que se articula de modo inesperado com a presença de Beatriz Mateus, a jovem cantora. "Ao trabalhar sobre a canção com essa idade, [a Petula Clark] transformou-a numa confissão de desespero e a presença da Beatriz não contraria isso. É uma pré-adolescente e na pré-adolescência sofremos um forte embate da realidade. E isso percebe-se pela letra, pelo lugar fechado, pelo huis-clos da situação. Esta canção é um poema negro."
Aproveitamos a boleia para uma pergunta que se advinha. Pela relação que enceta com a história e os materiais da música pop, João Onofre é um caso único na arte portuguesa. O que motiva essa relação? "Pertencem ao universo da cultura popular, parto do princípio de que fazem parte do imaginário das pessoas e interessa-me trabalhar com as pessoas. É como se fosse uma língua, há um dado cultural que reconhecemos e que depois é truncado com a minha intervenção."
Os encontros com as canções dão-se no atelier, entre discos ou música encontrada na Internet, e são desencadeados pela emoção do som. "É assim que o processo começa. Na maioria dos casos, o gosto pessoal é determinante. Por exemplo, em Leap into the street (Boombox Travelling) foi isso que aconteceu. Mas a par do gosto ou da intuição há também um lado conceptual, uma pesquisa à volta da linguagem. Nesse trabalho é da música [She's lost control, dos Joy Division] que decorre a acção [a queda de uma radiogravador na rua]". De Instrumental Version, de 2001, a Untitled (I See a Darkness), de 2007, passando por Catriona Shaw sings Baldessari singles..., Onofre tem vindo a formar um corpo de obras que lidam com os signos, a interpretação e a experiência da música pop. Abordam questões diferentes mas, admite o artista, "se um dia alguém fizer uma antológica do [seu] trabalho, pode perfeitamente organizar um núcleo à volta desse tema."
Voltemos ao vídeo patente no Museu do Chiado. Pela definição da imagem, pelos meios de produção que terá exigido, pelo recurso à linguagem cinemtográfica, Untitled (N'en Finit Plus), com seus três minutos, parece apontar a outra escala em termos de recepção. Uma sala de cinema? Pelas palavras de João Onofre, nem tanto. "Esta foi uma das peças mais ambiciosas. Trabalhei com 30 pessoas e embora a filmagem só tenha durado um dia, a preparação foi muito longa. Mas este filme não se adapta ao formato de um screening, tem de ser visto várias vezes, repetidamente, até para reforçar a ideia de lugar fechado, sem escapatória, de uma vala profunda."
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João Onofre está cansado e contente. Acabou de chegar de Bruxelas onde mostrou A Box-sized DIE featuring..., o cubo no interior do qual uma banda de death-metal toca no limite do suportável. A apresentação da performance decorreu no centro de artes Netwerk (no âmbito da colectiva Watch that Sound) e é apenas mais uma das que têm levado o artista português num périplo pela Europa. "Faltam em Portugal lugares para mostrar o meu trabalho e por isso vou apostando no circuito internacional. Os convites têm surgido", diz animado. A peça inspirada numa escultura de Tony Smith não é inédita entre nós, pois teve a sua estreia na Galeria Cristina Guerra em 2007. Não podemos dizer o mesmo do vídeo Untitled (Original orchestrated ersatz light version): realizado em colaboração com Adelaide Ferreira e exibido em Julho na Fundação Miró, em Barcelona, permanece invisível no circuito nacional. E até há poucos dias essa seria também a condição de Untitled (N'en Finit Plus) (que já passou pela Galeria Toni Tàpies, Barcelona ), não fosse a iniciativa do Festival Temps d'Images e do Museu do Chiado. Quem quiser já o pode contemplar e ouvir na sala polivalente do museu lisboeta.
A emoção e o conceito
Seguimos, suspensos no movimento circular da câmara, o corpo de uma rapariga. Primeiro o chão terroso que os seus pés pisam, depois o corpo num contre-plongé até ser revelado o espaço que o rodeia: uma vala escavada na superfície verde da relva. Nesse instante, percebemos o isolamento e a impossibilidade de libertação. O movimento da câmara prossegue entretanto e empurra o nosso olhar para o fundo negro do céu. Da adolescente, agora fora de campo, só resta a voz enfraquecida antes do silêncio tumular. Antes de novo recomeço.
Acrescente-se um dado sem o qual este vídeo não existe: a adolescente canta à capela La nuit n'en finit plus, de Petula Clark, e são as letras do tema, um lamento provocado pela solidão e mortalidade, que despertam sentidos para além do simples exercício tautológico. Não é a primeira vez que o artista usa canções pop como material dos seus trabalhos, mas a história de La nuit n'en finit plus, pelas camadas que a constituem, merece ser contada.
"É uma versão de Needles and pins, dos The Searchers, que depois foi tomada por outros intérpretes [entre os quais, os Ramones]", revela Onofre. "Quando é o homem a cantar, sofre por ver a amada com outro e a situação inverte-se quando é a mulher quem interpreta. Acontece que a Petula Clark não se limitou a fazer uma versão. Reescreveu a canção com a sonoridade do yé-yé e o francês e retirou-lhe o género. Ficou apenas o tempo e o lugar."
No ano do lançamento de La nuit n'en finit plus, a cantora inglesa tinha 35 anos, facto que despertou a admiração e a curiosidade do artista e que se articula de modo inesperado com a presença de Beatriz Mateus, a jovem cantora. "Ao trabalhar sobre a canção com essa idade, [a Petula Clark] transformou-a numa confissão de desespero e a presença da Beatriz não contraria isso. É uma pré-adolescente e na pré-adolescência sofremos um forte embate da realidade. E isso percebe-se pela letra, pelo lugar fechado, pelo huis-clos da situação. Esta canção é um poema negro."
Aproveitamos a boleia para uma pergunta que se advinha. Pela relação que enceta com a história e os materiais da música pop, João Onofre é um caso único na arte portuguesa. O que motiva essa relação? "Pertencem ao universo da cultura popular, parto do princípio de que fazem parte do imaginário das pessoas e interessa-me trabalhar com as pessoas. É como se fosse uma língua, há um dado cultural que reconhecemos e que depois é truncado com a minha intervenção."
Os encontros com as canções dão-se no atelier, entre discos ou música encontrada na Internet, e são desencadeados pela emoção do som. "É assim que o processo começa. Na maioria dos casos, o gosto pessoal é determinante. Por exemplo, em Leap into the street (Boombox Travelling) foi isso que aconteceu. Mas a par do gosto ou da intuição há também um lado conceptual, uma pesquisa à volta da linguagem. Nesse trabalho é da música [She's lost control, dos Joy Division] que decorre a acção [a queda de uma radiogravador na rua]". De Instrumental Version, de 2001, a Untitled (I See a Darkness), de 2007, passando por Catriona Shaw sings Baldessari singles..., Onofre tem vindo a formar um corpo de obras que lidam com os signos, a interpretação e a experiência da música pop. Abordam questões diferentes mas, admite o artista, "se um dia alguém fizer uma antológica do [seu] trabalho, pode perfeitamente organizar um núcleo à volta desse tema."
Voltemos ao vídeo patente no Museu do Chiado. Pela definição da imagem, pelos meios de produção que terá exigido, pelo recurso à linguagem cinemtográfica, Untitled (N'en Finit Plus), com seus três minutos, parece apontar a outra escala em termos de recepção. Uma sala de cinema? Pelas palavras de João Onofre, nem tanto. "Esta foi uma das peças mais ambiciosas. Trabalhei com 30 pessoas e embora a filmagem só tenha durado um dia, a preparação foi muito longa. Mas este filme não se adapta ao formato de um screening, tem de ser visto várias vezes, repetidamente, até para reforçar a ideia de lugar fechado, sem escapatória, de uma vala profunda."