Dalton, o miniaturista
Dalton Trevisan vê o que ninguém vê. E nós não o vemos, porque é assim que ele quer. Um escritor que se apequena para que a literatura tome a frente da cena. Um verdadeiro escritor.
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Mas se cruzar com Dalton pelas ruas da cidade - eu, que moro em Curitiba há 18 anos - não o reconheceria. Dalton Trevisan é um escritor invisível. Foge com fúria de fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas. Desaparece na neblina da cidade. Seus personagens de ficção parecem mais vivos do que ele. Não creio, porém, que essa estratégia de fuga seja o resultado de um traço de temperamento, ou de alguma fobia secreta. Dalton é invisível porque o invisível é o objeto de sua literatura. É invisível porque a Curitiba que ele narra e perpetua em seus relatos é invisível também. É este seu trabalho: Dalton Trevisan vê o que ninguém vê. Dalton Trevisan é um cirurgião que, manobrando um fino bisturi, mas com a necessária violência, rasga o corpo da Curitiba moderna, a cidade das torres imensas, dos ônibus em forma de serpentes, dos parques de arquiteto. Dilacera-a para arrancar de seu interior o que ela tem de menor, de mais oculto e, sobretudo, de mais inominável. Dalton persegue seres e histórias aos quais não parece corresponder nome algum. É uma espécie de Gulliver, o personagem de Jonathan Swift que, um dia, acorda em uma ilha de homens minúsculos que, apesar disso, o encarceram. Também Dalton é prisioneiro dessa cidade miúda que ele mesmo inventou. Cidade habitada por seres que se arrastam como fantasmas bizarros, cometem atrocidades em que não suportamos pensar e nas quais sequer eles mesmos conseguem pensar. Que, enfim, portam as partes mais desprezíveis, mais dolorosas do humano. Talvez por isso, eu - como a maioria dos habitantes de Curitiba - não consiga ver Dalton Trevisan. Porque, nivelando-se a seus extraordinários personagens, também ele, o escritor, se esquiva e se anula. Ronda pela cidade - para usar uma imagem que ele mesmo cunhou no célebre livro de 1965 - como um vampiro. Alimenta-se de seu sangue: sorve-o com uma escrita seca e cruel. Dalton devora a Curitiba moderna para, através de suas narrativas, digerir sua alma. Para entender Dalton Trevisan, é preciso entender Curitiba, bela e singular cidade localizada a 900 km ao sul do Rio de Janeiro. Fundada no ano de 1693, ela foi, durante longo tempo, só um lugar de passagem, uma espécie de largo e turbulento corredor para tropeiros, desbravadores, aventureiros e viajantes. Só dois séculos depois, ao se tornar a capital da província do Paraná, ganhou verdadeiros ares urbanos. Só se transformou na cidade que hoje conhecemos depois que o urbanista e ex-governador, o inspirado Jaime Lerner, tratou de reinventá-la. Localizada a quase mil metros de altura, Curitiba guarda, com grande recato, o espírito desse passado longínquo, em que foi uma rota de fuga, mas também de conquistas, para mercadores, traficantes, fugitivos e almas penadas. Essas características sobrevivem,submersas, na moderna Curitiba dos longos ônibus biarticulados, dos jardins impecáveis e das estações de cristal. Sobrevivem, mas são visíveis apenas aos olhos clínicos de Dalton, o grande miniaturista. Dalton as fisga com uma escrita, ela também, cada vez mais avara, mais contida, mais desconfiada, em que as palavras se poupam com a mesquinhez de um agiota. Seus personagens experimentam sofrimentos que não conseguem expor. Sofrem de dilemas internos a que não conseguem dar um nome. As palavras lhes falham e, por isso, só a escrita dura e cortante de Dalton - como socos desferidos sobre um desamparado leitor - é capaz de capturá-las. Dalton Trevisan sabe que a literatura - qualquer literatura - está muito além da ética. Não tem piedade de seus personagens. Não os desculpa, não os embeleza, nem ameniza seus horrores. Tampouco se dá ao trabalho de lhes poupar as aparências com o recurso das metáforas, ou dos paradoxos. Sua ficção caminha em direção oposta a de outra magnífica contista de sua geração, a paulista Lygia Fagundes Telles, que escreve movida pela delicadeza e por uma gritante intuição. Dalton não: ele trabalha aos golpes, com força e precisão, como um escultor - ou, talvez mesmo, como um boxeador. Fosse poeta (talvez seja um poeta e ainda não consigamos ver isso), estaria mais próximo de alguém como João Cabral de Melo Neto, que foi um homem apaixonado pelo concreto, pelos ossos e pelas sínteses. Dalton também é. Na última década, a literatura de Dalton tem se encolhido ainda mais, o que me leva a pensar nos buracos negros - regiões das quais nada, nem os mais sólidos objetos, escapa. Às vésperas dos 87 anos de idade, Dalton Trevisan se conserva um narrador afiado, de pulso firme e corte exato, nas mãos de quem toda nuance, toda delicadeza, toda elegância é simplesmente exterminada. Em suas histórias circulam ninfetas obscenas, anjos vingadores, tarados cheios de si, homens enlouquecidos pelas drogas, anões vigaristas e maníacos de todas as espécies. Sujeitos que lutam entre si e, mais que isso, que lutam, com desespero e raiva, para sobreviver. Pois é da sobrevida, e não propriamente da vida, que Dalton Trevisan trata. Como continuar a viver em um mundo sem sentido? Como continuar a amar depois das mais abomináveis traições? Como aceitar a si mesmo, enquanto o mundo o repele e o achata? Como insistir em ser em um universo no qual tudo aponta para o extermínio e a morte? Não é tão surpreendente que sob a elegante Curitiba contemporânea se esconda um mundo tão hediondo. A cidade de Dalton, na verdade, poderia ser qualquer cidade do nosso século 21. Ele não tem como objeto Curitiba, mas o mundo contemporâneo. Certas marcas curitibanas, contudo, nela se conservam com alguma nitidez. A capital do estado do Paraná é, ainda hoje, uma cidade sem identidade fixa - na qual se misturam polacos, ucranianos, japoneses, árabes, alemães, pessoas vindas de todas as partes do mundo. É uma cidade internacional e por isso, quanto mais se expande, mais enigmática se torna. Sob suas fachadas ultramodernas, se escondem guetos espirituais, que apenas se suportam, civilizadamente, mas sem abdicar do temor e da desconfiança. O curitibano típico é introvertido, não conversa com estranhos, não gosta de sair de casa e é, sobretudo, um desconfiado. Nesse sentido, os personagens de Dalton encarnam aspectos importantes da alma da cidade que nem mesmo as gerações mais jovens conseguiram, ainda, superar. Talvez por isso, Curitiba seja, ela também, uma cidade fria, não só na temperatura, mas nos temperamentos. Cidade de "estranhos", ainda assim, ou talvez por isso, é uma cidade - apaixonante cidade, introspectiva e tímida como uma dama - de seres esquivos e reticentes. Sob o manto verde dos parques, o casario exuberante e a majestade dos edifícios, Dalton, com sua lupa de escritor, enxerga esse mundo minúsculo, quase invisível que, apesar do avançar dos séculos, continua a resistir. Ele vê uma cidade que ninguém vê e, com sua escrita de gênio, a reinventa. Se Jaime Lerner é o inventor da Curitiba moderna, Dalton, seu contemporâneo, é o inventor (por retrospecto) da Curitiba mítica. Só Dalton a enxerga, só ele dá forma a essa nova Lilliput. Cidade que, mais que habitar o Brasil, habita sua fértil imaginação. Território de mitos cruentos, desagradáveis, indigestos, mas que, pelo que carregam de humano, falam a respeito das partes mais secretas de todos nós. Somos, todos, seres pequenos e angustiados. A realidade nos massacra. Somos, todos, personagens de Dalton Trevisan. Gostaria muito de conhecer Dalton Trevisan, de lhe apertar a mão e dizer o quanto o admiro. Não sei, porém, se terei, um dia, a chance de abraçá-lo. Dalton é mais invisível que o mais invisível de seus personagens. É um escritor que se esconde dentro de seus livros. Um escritor que se apequena para que a literatura tome a frente da cena. Um verdadeiro escritor. O justíssimo Prêmio Camões, contudo, lhe dá um forte abraço em nome de todos nós, seus leitores apaixonados. José Castello é escritor, crítico literário, cronista do diário brasileiro "O Globo" |