Mo Yan homenageia mãe analfabeta e confessa que mal aguentou polémica com Nobel
Prémio Nobel da Literatura chinês diz que um escritor deve falar da sua escrita. Mo Yan, como era esperado, não falou de política.
“Pode até acontecer que tenham visto o meu pai, um senhor de 90 anos, ou os meus irmãos, a minha mulher, a minha filha e a minha neta de 14 meses. Mas há alguém para quem, neste instante, vão todos os meus pensamentos: é a minha mãe, que vocês nunca verão. Muitas pessoas partilharam comigo a honra deste prémio, mas, para a minha mãe, isso é uma coisa impossível”.
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“Pode até acontecer que tenham visto o meu pai, um senhor de 90 anos, ou os meus irmãos, a minha mulher, a minha filha e a minha neta de 14 meses. Mas há alguém para quem, neste instante, vão todos os meus pensamentos: é a minha mãe, que vocês nunca verão. Muitas pessoas partilharam comigo a honra deste prémio, mas, para a minha mãe, isso é uma coisa impossível”.
A mãe de Mo Yan, o primeiro escritor chinês a receber o Nobel da Literatura, autor de Mudanças (ed. Divina Comédia) e de Peito Grande, Ancas Largas (ed. Babel), morreu em 1994 e era analfabeta. Foi a ela que o Nobel da Literatura, de 57 anos, dedicou o discurso de agradecimento pelo prémio que lhe foi atribuído em Outubro. Um discurso que, tal como tinha dito na conferência de imprensa de quinta-feira, foi dedicado a contar a sua própria história e intercalado com as suas memórias.
Falou da sua primeira recordação (quando pequeno, frágil por causa da fome partiu o único termos que existia em sua casa e a mãe, em vez de o castigar, fez-lhe uma festa na cabeça e suspirou longamente); da sua recordação mais amarga (quando viu a expressão de desespero da mãe ao ser esbofeteada por um homem); da recordação que nunca mais apagou da memória (a discussão com um velho mendigo numa festa de Outono) e do que lamenta mais na sua vida (ter feito a mãe sentir vergonha dele por causa de ter cobrado mais dinheiro do que devia a um velho homem a quem vendiam couves no mercado). Contou também do medo que teve que a mãe se matasse quando ficou tuberculosa e a família estava numa situação difícil, "sem nenhuma luz, nem nenhuma esperança no horizonte".
Mo Yan afirmou que se a sua infância foi "cruelmente marcada pelo abandono da escolaridade, pela fome, pela solidão e pela ausência de livros", tal como aconteceu com o escritor chinês de uma geração anterior à sua, Shen Congwen, cedo começou "a ler o grande livro da vida". E quando abandonou a escola e se viu no meio do mundo dos adultos iniciou um "longo percurso de 'leitura auditiva', de aprender ouvindo".
O escritor chinês referiu como foi inspirado pelo escritor norte-americano William Faulkner e pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez. "A minha experiência diz-me que a razão fundamental que faz com que um escritor seja influenciado por um outro escritor é que existe no fundo da alma dos dois protagonistas neste tipo de relação qualquer coisa de parecido. E é precisamente isso o que significa a expressão: 'estar em comunhão de ideias'".
No final do seu discurso, explicou o que quis fazer com o romance Peito Grande, Ancas Largas, que escreveu depois da morte da mãe, e explicou também qual o seu processo de criação. Disse que é um "homem que conta histórias" e por essa razão recebeu o prémio Nobel da Literatura. “A atribuição do prémio Nobel da Literatura criou alguma polémica. No princípio, pensei que as coisas me diziam respeito pessoalmente, mas, pouco a pouco, fui tendo o sentimento de que eu não era a pessoa visada. Senti-me um espectador de uma peça de teatro de que eu próprio fazia parte. Via que ao protagonista, vencedor de um prémio, ofereciam flores, mas, ao mesmo tempo, atiravam pedras e água suja. Temi que não conseguisse aguentá-lo. Apesar disso, sujo de flores e pedras, [o protagonista] limpou as manchas de água suja, saiu tranquilamente sorrindo e declarou: 'Para um escritor, a melhor forma de falar é a escrita. Tudo o que eu tenho a dizer, já o disse nas minhas obras'.”