Uma arquitectura feliz
Artigo originalmente publicado no Ípsilon a 14 de Dezembro de 2007
À maneira do movimento brasileiro "antropofágico", dos anos 1920, dir-se-ia que Oscar Niemeyer devorou a arquitectura moderna. Ou como dizia outro Oscar famoso, Oscar Wilde, "o talento pede emprestado, o génio rouba". Niemeyer apropria-se de tal forma da arquitectura moderna, no essencial uma criação das primeiras décadas do século XX europeu, que chega a acreditar que de facto a inventou. Na verdade, acrescenta-lhe um novo sentido de aventura.
O betão, o "concreto", surge em superfícies deslizantes, curvas e reviradas; o "poema do ângulo recto" é curto; a "funcionalidade" não deve atrapalhar. Aonde Le Corbusier é mediação entre a Arquitectura e a Era da Máquina, Niemeyer segue uma linha directa. Simplifica a construção; concentra-se na criação de um espaço radioso. Criando uma linguagem de puro gozo dá à arquitectura moderna uma dimensão erótica, lúdica e popular, às vezes quase kitsch. (Como quando Caetano Veloso canta cantores "comerciais").
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À maneira do movimento brasileiro "antropofágico", dos anos 1920, dir-se-ia que Oscar Niemeyer devorou a arquitectura moderna. Ou como dizia outro Oscar famoso, Oscar Wilde, "o talento pede emprestado, o génio rouba". Niemeyer apropria-se de tal forma da arquitectura moderna, no essencial uma criação das primeiras décadas do século XX europeu, que chega a acreditar que de facto a inventou. Na verdade, acrescenta-lhe um novo sentido de aventura.
O betão, o "concreto", surge em superfícies deslizantes, curvas e reviradas; o "poema do ângulo recto" é curto; a "funcionalidade" não deve atrapalhar. Aonde Le Corbusier é mediação entre a Arquitectura e a Era da Máquina, Niemeyer segue uma linha directa. Simplifica a construção; concentra-se na criação de um espaço radioso. Criando uma linguagem de puro gozo dá à arquitectura moderna uma dimensão erótica, lúdica e popular, às vezes quase kitsch. (Como quando Caetano Veloso canta cantores "comerciais").
Veja-se a "nave espacial" que é o Museu de Niterói. Quebrando a ideia do moderno como um "método" afirma um "estilo"; talvez por isso faz sucesso entre nós, já nos anos 1950. Dir-se-á: empresta-nos alguma felicidade.
Se a arquitectura moderna tenta historicamente criar uma mediação entre a arte e a indústria, se arrasta consigo dilemas culturais de grande complexidade, a obra de Niemeyer, demiúrgica e encantada, surge de rompante. Como num "samba de uma nota só", as curvas instalam-se, as rampas sucedem-se. Tratando-se de refundar o país, o essencial deve ser repetido: "outras notas vão entrar, mas a base é uma só." A arquitectura nunca é tão livre e próxima, tão alheada do acessório como a de Niemeyer.
Normalmente é resultado de compromissos que a distanciam da natureza, da própria vida. Em Niemeyer só há proximidade e usufruto. Se na Europa, a arquitectura moderna toma a forma do "ensaio" a explanação, por vezes muito bela, de um pensamento, a arquitectura de Niemeyer surge na condição de "poesia", está apenas amarrada à sua inevitabilidade. Onde a Villa Savoye (Poissy, 1929), de Le Corbusier, se implanta numa clareira, em prudente distância face à envolvente, a extraordinária Casa das Canoas (Rio de Janeiro, 1952) pertence à ordem da natureza e é radicalmente moderna.
A "marquise" no Parque Ibirapuera (São Paulo, 1954), um passeio coberto com as obrigatórias curvas e "pilotis" em organização livre, é o mais comovente espaço público que a arquitectura moderna construiu. A definição de "espaço" moderno visita-se na sala do Itamaraty (Brasília, 1962). Com a possível excepção de Frank Lloyd Wright nos Estados Unidos, não há exemplo, no século XX, de um arquitecto tão decisivo na construção da identidade de um país como Niemeyer.
Entre os anos 1960 e os anos 1980, no entanto, a arquitectura moderna brasileira saiu do mapa. A cidade de Brasília, inaugurada em 1960, surge num momento em que a cultura arquitectónica se vira para outros lados. Como uma Versalhes democrática, não exactamente uma "cidade" mas um "monumento" a um certo século XX (socialista, modernista, voluntarioso), Brasília permanece um belo e terrível enigma. Ainda antes da história se fazer, no momento em que era inaugurada, Brasília era já um "monumento".
Este é também o problema do legado de Niemeyer que o ilimitado orgulho brasileiro não tem permitido "criticar". O que sobrevive do gesto livre, da monumentalidade, e da "fundação"? Trata-se de uma arquitectura feliz, sem dúvida, mas como canta João Gilberto: "tristeza não tem fim, felicidade, sim...".