Uma visita ao atelier do Rio
Visita ao atelier de Niemeyer no Rio de Janeiro em 2006. Como quase sempre acontece a quem o visita, fala-nos ao mesmo tempo que desenha. Artigo publicado no Ípsilon a 14 de Dezembro de 2007
Ninguém apanha chuva, embora estejamos no exterior.
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Ninguém apanha chuva, embora estejamos no exterior.
Estamos todos na peça que foi baptizada de marquise e que é, na verdade, uma laje de betão com centenas de metros de comprimento, suportada por pilares, que se estende pelo parque, que abraça e se deixa abraçar por este, incorpora árvores e restaurantes, mas também vazios buracos por onde passa a luz e a chuva. É uma peça branca e polimórfica tão forte quanto a natureza transformada em paisagem que a rodeia, e une outras obras bem conhecidas do arquitecto Oscar Niemeyer.
Rio de Janeiro, 2006. Calor tórrido a poucos dias do Carnaval de 2006. A estrutura que vai albergar o concerto dos Rolling Stones na praia de Copacabana está praticamente pronta. O encontro estava marcado para as três da tarde no atelier com vista para o oceano do arquitecto Oscar Niemeyer. O arquitecto, recentemente convidado para novas intervenções no Parque de Ibirapuera, havia proposto a demolição parcial da marquise construída em 1951, não porque já não acreditasse na obra, mas porque acreditava torná-la ainda mais consequente com o novo edifício que havia desenhado. A sua convicção na transformação permanente do real está espelhada por todo o atelier.
É o último andar de um edifício. Um espaço sem grande detalhe arquitectónico, próximo do banal, inscrito com desenhos nas paredes e, sobretudo, aforismos que se foram colando à sua arquitectura ao longo do século XX.
Niemeyer recebe-nos e, como quase sempre acontece a quem o visita, fala-nos ao mesmo tempo que desenha, como que para reforçar essa visão do mundo, que, para não ser pessimista, imprime à arquitectura o papel de uma beleza redentora. "A vida é fodida" e por isso o seu trabalho partiu em busca de uma possibilidade poética consciente do artifício absoluto que é pensar e fazer arquitectura. Escutamos, sentados nas cadeiras que nunca abandonam esta sala, porque são muitos os que o visitam e o arquitecto gosta de conversar, enquanto fuma as suas cigarrilhas que um dos netos arquitectos vai acendendo.
Sentado num banco alto, os desenhos feitos a marcador preto registam apenas o essencial de cada projecto, o seu gesto primordial. A arquitectura de Niemeyer desde muito cedo abdicou, por vontade própria e constrangimento do contexto onde trabalhou, de outra coisa que não fosse o gesto, a forma adequada a um problema e um lugar. É uma arquitectura que prescinde de mediações, é directa e emocional. Os desenhos são oferecidos como memória da conversa e isso quase faz esquecer que quem os ofereceu é um dos maiores arquitectos do século XX, cujas mãos magras revelam a sua longevidade, mas também a vitalidade de quem continua a acreditar no lugar da arquitectura no mundo.
Lisboa, 2007. Se alguma dúvida existisse sobre a capacidade da arquitectura moderna ter criado a sua própria tradição cultural, e ser capaz de se tornar tão natural ou anónima como as arquitecturas do passado que nos habituámos a olhar sem preconceitos, então esta seria a arquitectura de Niemeyer. Uma das características da sua obra é habitar em simultâneo o território erudito e ser reconhecida pela comunidade como tradução dos traços de uma cultura democrática facilmente identificável. Quem quiser pode reduzir a sua obra à paixão pelo corpo feminino ou pela topografia dramática do Brasil (e do Rio em particular). Mas será sempre mais surpreendente pensar na obra de Niemeyer como aquela que, vinda de uma tradição de radicalidade herdada das vanguardas históricas, parte livremente para um lugar de invenção avassalador que consegue fazer cidade com edificios, consegue afrontar a natureza sem agressividade, consegue diluir o público e o privado sem esforço e, sendo inevitavelmente moderna, atravessar o tempo e estabilizar-se na serenidade da arquitectura clássica.