Julião Sarmento faz a sua maior retrospectiva em Serralves
Todas as galerias do museu, a capela, a antiga Casa de Serralves e até alguns espaços exteriores: Noites Brancas, a maior retrospectiva de sempre de um dos mais importantes artistas contemporâneos portugueses, é uma exposição imponente. Mais de 160 obras marcando praticamente todo o território de Serralves, incluindo um conjunto de performances que o artista quer manter em segredo até à inauguração marcada para esta noite. Só se sabe, como ele contou ao Ípsilon durante a montagem da exposição, que são uma espécie de tableaux vivants: encenações de fragmentos e situações das suas pinturas e esculturas. João Fernandes antecipa que essas "representações são o próprio alfabeto da obra de Julião Sarmento" - figuras que "estão sempre a reaparecer: na pintura, na escultura e agora na performance". "Isto pelo pouco que sei delas. Porque só na sexta-feira [hoje] as vou ver", acrescenta o director do Museu de Serralves e comissário, com o britânico James Lingwood, destas Noites Brancas.
Não é a primeira vez que Julião Sarmento expõe neste museu do Porto, mas já se passaram mais de 20 anos e se o trabalho de Sarmento, no essêncial, se mantém idêntico, "Serralves mudou muito": "Está maior, mais glamoroso e tornou-se num dos museus mais importantes de Portugal, com fama internacional", diz o artista quando o encontramos, a alguns dias da inauguração, numa tarde em que o Ípsilon foi assistir à montagem da exposição. Julião Sarmento concordou com a visita, mas não deixou de advertir que não iria "ter muito tempo para falar": "A montagem está muito atrasada e não sei bem o que vai acontecer."
Quem por aqueles dias chegasse a Serralves iria encontrar o artista a correr de um lado para o outro, a olhar para tudo, a falar com toda a gente, movido por um entusiasmo semelhante ao de um jovem artista nas vésperas da sua primeira exposição. Curioso, expectante, nervoso, olha para cada pormenor e sabe que cada decisão é fundamental para o resultado final: a altura das pinturas nas paredes, a calibração do monitor onde vão passar os vídeos, a afinação do som dos filmes, a escolha das pessoas para as performances. No caso de Julião Sarmento, todos estes detalhes são vistos obsessivamente, porque para ele a montagem das obras no espaço do museu é determinante: "Sou maníaco com todos os detalhes da montagem das minhas obras. Vejo a tabela, meço milimetricamente o espaço, vejo tudo. É preciso não esquecer que estudei arquitectura", nota, como que a tentar explicar a sua tão grande atenção à relação das obras com o espaço. Na primeira peça da exposição, a arquitectura é aliás o tema dominante: Seven houses and six flats [Sete casas e seis apartamentos] é um conjunto de desenhos que revelam as casas e os apartamentos onde o artista viveu. E este entrelaçar de obra, vida e ficção é o mote depois desenvolvido em todas as galerias.
Aparato e escala à parte, Noites Brancas não é a exposição de consagração de Julião Sarmento. Apesar do sucesso crítico da sua obra e da sua grande circulação internacional, Sarmento não se reconhece nesse patamar: "Os artistas consagrados estão mortos para o trabalho. São aqueles dos quais não se espera mais nada; eles próprios também já não querem mais nada. Eu, pelo contrário, não quero ficar refém do passado sem mais futuro. Em boa verdade, estou sempre a pensar nas coisas que hão-de vir, nos projectos futuros. Esta exposição ainda nem inaugurou e já estou a pensar nas próximas exposições na Cristina Guerra [galeria do artista em Lisboa] e no Sean Kelly [galeria do artista em Nova Iorque]." O sucesso que conhece não foi planeado ou ambicionado. A sua única ambição, afirma, foi "ser um bom artista e construir um trabalho relevante": "Não me preocupa o sucesso, só me interessa o sistema da imortalidade e fazer um trabalho que me sobreviva. Ser bem sucedido é para mim poder confrontar-me com os artistas que admiro e eles acharem que o que eu fiz é bom. Essa é a única parte do sucesso de me importa. Não me move o dinheiro. Gosto de viver bem, mas essa não é a minha inquietação."
Onde está o Julião?
Faltam poucos dias para a inauguração de Noites Brancas e em Serralves há uma frase recorrente: "O Julião? Alguém sabe onde está o Julião?". Segundos depois lá vem o Julião com cara de urgência ter com a Paula Fernandes (a produtora do museu que ficou encarregue desta exposição): "Julião, é assim que queres?" E lá se vão subindo coisas à parede, desempacotando as obras acabadas de chegar e testando se o lugar para onde tinham sido pensadas pelos comissários é o melhor. No meio da confusão de centenas de metros de papel de bolhas, das luvas de latex com que se manipulam as obras, dos pregos e das tintas para retocar as paredes, cada obra que acaba de ser montada é motivo de orgulho. "Venham cá ver isto", diz de cada vez Sarmento, com uma admiração genuína ao ver os trabalhos na parede. Até porque desta vez, confessa o artista, não teve "qualquer interferência" na escolha das obras: "Habitualmente sou muito controlador do meu trabalho e das minhas exposições e, por vezes, tomo o lugar dos curadores. Desta vez deixei o James Lingwood e o João Fernandes escolherem o que queriam." Um processo que não significa a ausência do artista na exposição, mas a ausência de perguntas sobre as obras que não estavam ou sobre as que, sem ele perceber bem porquê, acabaram por fazer parte do elenco final: "Claro que há um ou outro caso em que fiquei surpreso", confessa Sarmento. Não interferiu nas escolhas, mas construiu uma maqueta gigante que reproduz fiel e rigorosamente o museu e a disposição das suas obras ao longo das galerias; cada peça foi produzida à escala da maqueta e fixada à micro-parede do museu com magnetos. É olhando para esse museu em miniatura que Julião percebe o ritmo expositivo, a coerência da sucessão das obras, as relações entre as salas.
São muitos os intervenientes neste processo, mas Paula Fernandes, que tem no seu currículo a produção de exposições como as de Francis Bacon (2003) e Robert Rauschenberg (2007), é quem sabe tudo: sabe os segredos do museu, a localização dos equipamentos, como fazer para acender e apagar luzes, abrir e fechar portas. "A minha principal angústia", diz ao Ípsilon, "é que a exposição esteja pronta na data da inauguração. Claro que até chegar aí há um processo longo e demorado, e muitas vezes a coisa não corre da forma mais fluida. Há muitas coisas que acontecem." Paula é a mulher que domina todos os acontecimentos: a chegada das obras de outros museus que vêm acompanhadas por funcionários (na gíria dos museus, os couriers) que não arredam pé até verem as peças que vigiam seguras na paredes; a escolha dos participantes das performances que o artista vai mostrar na Casa de Serralves, e também dos electricistas, dos carpinteiros e dos pintores. Um trabalho enorme, empreendido não só para fazer as vontades do artista, mas também para "fazer a melhor exposição possível." Esta, confessa, foi particularmente difícil, "não só pelo contexto económico que não ajuda em nada, mas também porque há muita arquitectura, o que obriga a uma adaptação grande do museu."
"Eu não sou pintor"
No caso da retrospectiva Noite brancas, as exigências são grandes também porque o conjunto de obras é muito diferenciado e exige muitas soluções diferentes: fotografias, vídeos, performances, instalações têm necessidades distintas e tempos muito próprios. Mas esta variedade está no coração do trabalho de Julião Sarmento: é a sua marca. Percorrer a sua obra é surpreender um universo que não é dominado por uma ideia única, ainda que se consigam detectar linhas de força comuns a todos os trabalhos, sobrepondo-se às continuas variações de técnicas, interesses, cores, formas, materiais. São mudanças provocadas não pela insatisfação ou pelo esgotamento, mas pela curiosidade de experimentar. Por isso, Julião é peremptório quando afirma que não é um pintor: "Podem dizer o que quiserem, mas essa é uma designação errada. Olham para mim como pintor porque utilizo a pintura, mas aquelas coisas na parede só aparentemente são pinturas. Pintor era o Cézanne. Para mim a pintura é um meio."
Para João Fernandes, o reconhecimento de Julião Sarmento como pintor acontece porque "qualquer artista que use significativamente a pintura será visto como pintor, pois a pintura corresponde a uma ideia feita do mercado da arte". E, acrescenta, "acontece que o Sarmento tem exposições muito regulares de pintura e é a linguagem que mais o acompanha - mas na pintura dele convergem a literatura, o cinema, a arquitectura, configurando uma enciclopédia muito particular do mundo." Que a pintura seja um lugar de convergência significa que, apesar das diferenças entre cada um dos meios que sucessivamente o artista usa ou usou, as suas pinturas não se fecham sobre si mesmas, são antes os lugares onde se juntam todas as questões, todos os temas e todos os interesses do artista.
A pintura é, por isso, apenas mais um elemento no corpo da sua grande e elaborada obra. "Desde o inicio, os media com que trabalho não foram um fim em si mesmos. Sou um artista conceptual, ou seja, a matéria do meu trabalho ela serve-me de meio para veicular uma ideia", explica-se o artista. Neste contexto, a sua prática quotidiana está mais ligada ao pensar do que ao fazer das obras: "99% do meu trabalho faz-se na cabeça, só 1% é feito pela mão. Passam-se dias sem eu fazer nada. Sou muito indisciplinado com a parte física do trabalho, mas vou todos os dias ao atelier."
João Fernandes subscreve esta ideia e sublinha que um dos elementos notáveis na obra de Julião é a coerência que consegue manter, apesar da diversidade de recursos: "É muito interessante ver a maneira como ele aproveita aquilo que o mundo da arte lhe oferece. Não há nada nas diferentes linguagens do mundo da arte que seja estranho ao seu trabalho. Ele experimenta sempre tudo e usa uma grande diversidade de suportes a que correspondem as diferentes épocas em que trabalhou. É muito curioso ver que, apesar dessa heterogeneidade, a obra é coerente e obsessivamente singular. A linguagem é estruturada, mas a obra é um caleidoscópio de possibilidades."
Um mundo cartografado
É certo que Julião Sarmento fez parte do grande movimento do regresso à pintura na arte contemporânea do pós-guerra e esteve presente na importante e histórica Documenta 7 de Kassel, comissariada em 1982 por Rudi Fuchs - justamente o acontecimento que marca esse regresso, Mas para o artista essa presença "foi uma contingência". Depois do abandono "fundamentalista" da pintura, há um retomar da tela e surgem as famosas telas de fundo branco de Julião, que ficam entre a pintura e o desenho. Trabalhos famosos talvez porque "constituam um momento de síntese" e por pertencerem a uma época em que o artista português teve "muita visibilidade", mas cuja popularidade ele "na verdade" não sabe explicar: "Talvez essas telas sejam muito reconhecidas porque não é normal um artista trabalhar sobre tela e fazer pinturas que não são pinturas, mas desenhos." Nesses trabalhos, Sarmento abandona a cor, a mancha e o modo de composição que até então tinha usado; no seu lugar surgem desenhos de mulheres em diferentes situações.
Esta retomar da pintura marca igualmente uma forma mais económica, e sintética, de pintar. "Percebi que não era preciso aquilo tudo [cor, fotografias, muitos elementos pictóricos] e comecei a ser mais minimal. A partir dai preferi o preto e branco." Uma redução que não significa simplificação: ao desaparecimento dos elementos visuais e cromáticos corresponde o aparecimento da citação literária ou filosófica como elemento central, gerando uma massa de pensamento mais complexa.
Esta exposição do universo literário e filosófico tem uma expressão grande não só nas citações que o artista passa a pintar nas telas, mas numa obra [Biblioteca, de 2011] constituída por enormes cartazes de capas de livros. Martin Amis, Céline, Jorge Luis Borges, Wittgenstein ou Raymond Carver, entre outros, são os autores que constroem a "biblioteca" heterodoxa de Sarmento - uma biblioteca que denuncia não um princípio de organização ou um método, mas a maneira como o artista foi percorrendo territórios tão diferentes. "O meu trabalho resulta do que sou, do que li, do que vivi, dos filmes que vi. Nesse sentido, nem é muito doméstico nem muito tecnológico. Trabalho sobre a minha memória e as coisas cruzam-se."
É essa memória que Noites Brancas tenta cartografar numa "visão trans-histórica", segundo João Fernandes: "Esta exposição vai permitir aferir como é que esta obra é um modo muito particular de assunção de uma teatralidade que tem como espaço de configuração, como palco, a casa." E há muitas casas aqui: as casas do artista [Seven houses and six flats, de 2006], as duas casas populares alentejanas que construiu em conjunto com o seu amigo Juan Muñoz [Beja, de 1993], a casa de Wittgenstein reproduzida no museu para servir de suporte aos desenhos e pinturas de Sarmento e, claro, a Casa de Serralves, onde actores e modelos irão durante uma única noite dar carne e sangue aos corpos de Sarmento.
Do arquivo à ficção
Para o artista, a pertinência desta exposição está, sobretudo, na possibilidade de fazer uma espécie de revisão da matéria dada: "Não de uma maneira saudosista, mas porque tenho uma necessidade importante de arrumar as coisas." Ainda assim, não se trata verdadeiramente de uma retrospectiva: "Comecei a expor em 1967 e estamos em 2012. São muitos anos a trabalhar, seria impossível fazer verdadeiramente uma retrospectiva. Esta exposição toca lugares importantes do meu trabalho em determinado momento, mas são só alguns." Julião Sarmento não precisa de acertar contas com o passado, porque lembra-se de todos os trabalhos: "Há várias obras que não vejo há bastante tempo, mas não vou ficar surpreendido. Tenho um arquivo muito completo e uma memoria visual prodigiosa. Consigo descrever em pormenor uma pintura que fiz nos anos de 1970."
A esta poderosa memória junta-se a mania da organização que Sarmento diz ser genética e ter herdado do pai. Fazer um enorme arquivo com as suas obras foi uma ambição quase fundadora: "Em 1974-1975, quando comecei a trabalhar com fotografia, tinha um carimbo que dizia: ‘Julião Sarmento coleccionador. Arquivos da vida animal.' Porque sempre tratei os meus trabalhos como fichas de arquivo. [Tenho] um lado de paciente guarda-livros sempre a arrumar o seu trabalho." Essa obsessão foi ampliada por acontecimentos traumáticos em que o artista perdeu todas as suas obras: "Houve três alturas na minha vida em que perdi tudo o que fiz. A primeira foi logo a seguir à tropa: tinha um estúdio/casa na Estefânia onde estavam todas as minhas coisas, imensos trabalhos feitos a meias com o Fernando Calhau, discos, livros, tudo. Fui para a tropa, fiquei sem dinheiro para pagar a renda e deixei de lá ir. Passados uns dez anos voltei lá e, claro, havia outro inquilino e já lá não estava nada. Portanto, existe algures um acervo meu e do Calhau que ou alguém deitou fora ou tem muito bem guardado. A segunda vez foi quando trabalhava na Secretaria de Estado da Cultura [SEC], final dos anos 1970 e inícios dos anos 1980. O espaço era gigantesco e como eu só trabalhava com fotografias e vídeo levei para lá tudo: os meus arquivos, os negativos, as fotos, os filmes. Em 1981 a SEC ardeu e, com a SEC, o meu trabalho dessa altura. Algumas coisas escaparam porque estavam espalhadas e havia um conjunto guardado na casa onde eu vivia, no Chiado. Mas, mais uma vez, essas coisas arderam todas no grande incêndio de 1988. É incrível, voltei a ficar sem nada."
Não é importante saber se esta história é totalmente verdade ou se é uma das ficções tão ao gosto do artista. A sua obra, da qual o discurso é uma parte inalienável, está repleta destes acontecimentos localizados entre a realidade e a ficção, entre o relato exacto e a narrativa romanceada ou ficcionada. O artista não esconde estas ficções biográficas que com o seu trabalho vai criando acerca de si próprio e do seu processo criativo - aliás, quando passa pela instalação 1947, feita em 1978, comenta: "Todas as pessoas acham que este é o quarto onde fui concebido, mas se fizerem bem as contas..". Ri-se como quem está indeciso entre revelar ou não uma história, contar ou não um segredo. E descobre-se que as suas imagens não são transposições directas da vida, do desejo, das pulsões, mas encenações e possibilidades de acontecimentos.
Se a teatralização da vida e do desejo é uma das marcas fortes da obra de Sarmento, outra é a animalidade. O artista recorda as suas telas da década de 1970 sobre a pele dos animais (leopardos, tigres, cobras), o conjunto de fotografias em que uma mulher veste e despe casacos de pele e a obra que abre a exposição, o registo fotográfico de uma acção no Jardim Zoológico de Lisboa em que se colocou no interior da jaula de um tigre e documentou o ponto de vista do animal [Jaula, de 1975-1976].
Há uma certa permanência desta animalidade, não como tema artístico, mas no modo como o artista olha para o mundo. Não se trata só de ver na animalidade uma boa metáfora para a condição do artista, mas de reconhecer através dela o contacto directo, originário, primitivo que ele estabelece com as experiências fundamentais do humano. E das quais fazem parte a celebração do prazer, a descoberta do corpo, do sexo, mas também a tristeza, a perda, o sofrimento. Esta animalidade expressa-se na irreverência e na rudeza que caracteriza muitas das suas obras. Uma rudeza que é sinónimo de força bruta e inesgotável. Tudo isto se expressa nas palavras e no olhar fixo e emocionado do artista enquanto guia a visita por Noites Brancas.
Julião Sarmento é nestes dias um homem impaciente: porque ainda não está tudo pronto e não pode mostrar as peças "na perfeição", porque quer mostrar todas as obras e elas ainda não chegaram, ou ainda estão em caixas ou ainda não se pode ligar o projector e ver o filme com a cor certa. Fala demoradamente sobre cada uma, como se fosse uma filha única e não houvesse mais dezenas para ver. "Conseguem imaginar que demorei mais de dez anos a fazer esta pintura?", pergunta, apontando para uma tela monocromática [Dez anos 1986-1996, de 1996] feita com o lixo que pacientemente varreu e juntou ao longo de uma década.
Sarmento tem em si profundamente gravada a consciência de cada peça. Trata-se de um saber a própria obra que confere singularidade e irrepetibilidade aos diferentes gestos, ideias, sentimentos e pensamentos que fixou numa tela, num desenho, num filme. Quando fala deixa ver que para ele não há "obras": cada obra tem um nome próprio e contém um tempo e uma vida de que não se quer libertar, que não quer esquecer.
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Todas as galerias do museu, a capela, a antiga Casa de Serralves e até alguns espaços exteriores: Noites Brancas, a maior retrospectiva de sempre de um dos mais importantes artistas contemporâneos portugueses, é uma exposição imponente. Mais de 160 obras marcando praticamente todo o território de Serralves, incluindo um conjunto de performances que o artista quer manter em segredo até à inauguração marcada para esta noite. Só se sabe, como ele contou ao Ípsilon durante a montagem da exposição, que são uma espécie de tableaux vivants: encenações de fragmentos e situações das suas pinturas e esculturas. João Fernandes antecipa que essas "representações são o próprio alfabeto da obra de Julião Sarmento" - figuras que "estão sempre a reaparecer: na pintura, na escultura e agora na performance". "Isto pelo pouco que sei delas. Porque só na sexta-feira [hoje] as vou ver", acrescenta o director do Museu de Serralves e comissário, com o britânico James Lingwood, destas Noites Brancas.
Não é a primeira vez que Julião Sarmento expõe neste museu do Porto, mas já se passaram mais de 20 anos e se o trabalho de Sarmento, no essêncial, se mantém idêntico, "Serralves mudou muito": "Está maior, mais glamoroso e tornou-se num dos museus mais importantes de Portugal, com fama internacional", diz o artista quando o encontramos, a alguns dias da inauguração, numa tarde em que o Ípsilon foi assistir à montagem da exposição. Julião Sarmento concordou com a visita, mas não deixou de advertir que não iria "ter muito tempo para falar": "A montagem está muito atrasada e não sei bem o que vai acontecer."
Quem por aqueles dias chegasse a Serralves iria encontrar o artista a correr de um lado para o outro, a olhar para tudo, a falar com toda a gente, movido por um entusiasmo semelhante ao de um jovem artista nas vésperas da sua primeira exposição. Curioso, expectante, nervoso, olha para cada pormenor e sabe que cada decisão é fundamental para o resultado final: a altura das pinturas nas paredes, a calibração do monitor onde vão passar os vídeos, a afinação do som dos filmes, a escolha das pessoas para as performances. No caso de Julião Sarmento, todos estes detalhes são vistos obsessivamente, porque para ele a montagem das obras no espaço do museu é determinante: "Sou maníaco com todos os detalhes da montagem das minhas obras. Vejo a tabela, meço milimetricamente o espaço, vejo tudo. É preciso não esquecer que estudei arquitectura", nota, como que a tentar explicar a sua tão grande atenção à relação das obras com o espaço. Na primeira peça da exposição, a arquitectura é aliás o tema dominante: Seven houses and six flats [Sete casas e seis apartamentos] é um conjunto de desenhos que revelam as casas e os apartamentos onde o artista viveu. E este entrelaçar de obra, vida e ficção é o mote depois desenvolvido em todas as galerias.
Aparato e escala à parte, Noites Brancas não é a exposição de consagração de Julião Sarmento. Apesar do sucesso crítico da sua obra e da sua grande circulação internacional, Sarmento não se reconhece nesse patamar: "Os artistas consagrados estão mortos para o trabalho. São aqueles dos quais não se espera mais nada; eles próprios também já não querem mais nada. Eu, pelo contrário, não quero ficar refém do passado sem mais futuro. Em boa verdade, estou sempre a pensar nas coisas que hão-de vir, nos projectos futuros. Esta exposição ainda nem inaugurou e já estou a pensar nas próximas exposições na Cristina Guerra [galeria do artista em Lisboa] e no Sean Kelly [galeria do artista em Nova Iorque]." O sucesso que conhece não foi planeado ou ambicionado. A sua única ambição, afirma, foi "ser um bom artista e construir um trabalho relevante": "Não me preocupa o sucesso, só me interessa o sistema da imortalidade e fazer um trabalho que me sobreviva. Ser bem sucedido é para mim poder confrontar-me com os artistas que admiro e eles acharem que o que eu fiz é bom. Essa é a única parte do sucesso de me importa. Não me move o dinheiro. Gosto de viver bem, mas essa não é a minha inquietação."
Onde está o Julião?
Faltam poucos dias para a inauguração de Noites Brancas e em Serralves há uma frase recorrente: "O Julião? Alguém sabe onde está o Julião?". Segundos depois lá vem o Julião com cara de urgência ter com a Paula Fernandes (a produtora do museu que ficou encarregue desta exposição): "Julião, é assim que queres?" E lá se vão subindo coisas à parede, desempacotando as obras acabadas de chegar e testando se o lugar para onde tinham sido pensadas pelos comissários é o melhor. No meio da confusão de centenas de metros de papel de bolhas, das luvas de latex com que se manipulam as obras, dos pregos e das tintas para retocar as paredes, cada obra que acaba de ser montada é motivo de orgulho. "Venham cá ver isto", diz de cada vez Sarmento, com uma admiração genuína ao ver os trabalhos na parede. Até porque desta vez, confessa o artista, não teve "qualquer interferência" na escolha das obras: "Habitualmente sou muito controlador do meu trabalho e das minhas exposições e, por vezes, tomo o lugar dos curadores. Desta vez deixei o James Lingwood e o João Fernandes escolherem o que queriam." Um processo que não significa a ausência do artista na exposição, mas a ausência de perguntas sobre as obras que não estavam ou sobre as que, sem ele perceber bem porquê, acabaram por fazer parte do elenco final: "Claro que há um ou outro caso em que fiquei surpreso", confessa Sarmento. Não interferiu nas escolhas, mas construiu uma maqueta gigante que reproduz fiel e rigorosamente o museu e a disposição das suas obras ao longo das galerias; cada peça foi produzida à escala da maqueta e fixada à micro-parede do museu com magnetos. É olhando para esse museu em miniatura que Julião percebe o ritmo expositivo, a coerência da sucessão das obras, as relações entre as salas.
São muitos os intervenientes neste processo, mas Paula Fernandes, que tem no seu currículo a produção de exposições como as de Francis Bacon (2003) e Robert Rauschenberg (2007), é quem sabe tudo: sabe os segredos do museu, a localização dos equipamentos, como fazer para acender e apagar luzes, abrir e fechar portas. "A minha principal angústia", diz ao Ípsilon, "é que a exposição esteja pronta na data da inauguração. Claro que até chegar aí há um processo longo e demorado, e muitas vezes a coisa não corre da forma mais fluida. Há muitas coisas que acontecem." Paula é a mulher que domina todos os acontecimentos: a chegada das obras de outros museus que vêm acompanhadas por funcionários (na gíria dos museus, os couriers) que não arredam pé até verem as peças que vigiam seguras na paredes; a escolha dos participantes das performances que o artista vai mostrar na Casa de Serralves, e também dos electricistas, dos carpinteiros e dos pintores. Um trabalho enorme, empreendido não só para fazer as vontades do artista, mas também para "fazer a melhor exposição possível." Esta, confessa, foi particularmente difícil, "não só pelo contexto económico que não ajuda em nada, mas também porque há muita arquitectura, o que obriga a uma adaptação grande do museu."
"Eu não sou pintor"
No caso da retrospectiva Noite brancas, as exigências são grandes também porque o conjunto de obras é muito diferenciado e exige muitas soluções diferentes: fotografias, vídeos, performances, instalações têm necessidades distintas e tempos muito próprios. Mas esta variedade está no coração do trabalho de Julião Sarmento: é a sua marca. Percorrer a sua obra é surpreender um universo que não é dominado por uma ideia única, ainda que se consigam detectar linhas de força comuns a todos os trabalhos, sobrepondo-se às continuas variações de técnicas, interesses, cores, formas, materiais. São mudanças provocadas não pela insatisfação ou pelo esgotamento, mas pela curiosidade de experimentar. Por isso, Julião é peremptório quando afirma que não é um pintor: "Podem dizer o que quiserem, mas essa é uma designação errada. Olham para mim como pintor porque utilizo a pintura, mas aquelas coisas na parede só aparentemente são pinturas. Pintor era o Cézanne. Para mim a pintura é um meio."
Para João Fernandes, o reconhecimento de Julião Sarmento como pintor acontece porque "qualquer artista que use significativamente a pintura será visto como pintor, pois a pintura corresponde a uma ideia feita do mercado da arte". E, acrescenta, "acontece que o Sarmento tem exposições muito regulares de pintura e é a linguagem que mais o acompanha - mas na pintura dele convergem a literatura, o cinema, a arquitectura, configurando uma enciclopédia muito particular do mundo." Que a pintura seja um lugar de convergência significa que, apesar das diferenças entre cada um dos meios que sucessivamente o artista usa ou usou, as suas pinturas não se fecham sobre si mesmas, são antes os lugares onde se juntam todas as questões, todos os temas e todos os interesses do artista.
A pintura é, por isso, apenas mais um elemento no corpo da sua grande e elaborada obra. "Desde o inicio, os media com que trabalho não foram um fim em si mesmos. Sou um artista conceptual, ou seja, a matéria do meu trabalho ela serve-me de meio para veicular uma ideia", explica-se o artista. Neste contexto, a sua prática quotidiana está mais ligada ao pensar do que ao fazer das obras: "99% do meu trabalho faz-se na cabeça, só 1% é feito pela mão. Passam-se dias sem eu fazer nada. Sou muito indisciplinado com a parte física do trabalho, mas vou todos os dias ao atelier."
João Fernandes subscreve esta ideia e sublinha que um dos elementos notáveis na obra de Julião é a coerência que consegue manter, apesar da diversidade de recursos: "É muito interessante ver a maneira como ele aproveita aquilo que o mundo da arte lhe oferece. Não há nada nas diferentes linguagens do mundo da arte que seja estranho ao seu trabalho. Ele experimenta sempre tudo e usa uma grande diversidade de suportes a que correspondem as diferentes épocas em que trabalhou. É muito curioso ver que, apesar dessa heterogeneidade, a obra é coerente e obsessivamente singular. A linguagem é estruturada, mas a obra é um caleidoscópio de possibilidades."
Um mundo cartografado
É certo que Julião Sarmento fez parte do grande movimento do regresso à pintura na arte contemporânea do pós-guerra e esteve presente na importante e histórica Documenta 7 de Kassel, comissariada em 1982 por Rudi Fuchs - justamente o acontecimento que marca esse regresso, Mas para o artista essa presença "foi uma contingência". Depois do abandono "fundamentalista" da pintura, há um retomar da tela e surgem as famosas telas de fundo branco de Julião, que ficam entre a pintura e o desenho. Trabalhos famosos talvez porque "constituam um momento de síntese" e por pertencerem a uma época em que o artista português teve "muita visibilidade", mas cuja popularidade ele "na verdade" não sabe explicar: "Talvez essas telas sejam muito reconhecidas porque não é normal um artista trabalhar sobre tela e fazer pinturas que não são pinturas, mas desenhos." Nesses trabalhos, Sarmento abandona a cor, a mancha e o modo de composição que até então tinha usado; no seu lugar surgem desenhos de mulheres em diferentes situações.
Esta retomar da pintura marca igualmente uma forma mais económica, e sintética, de pintar. "Percebi que não era preciso aquilo tudo [cor, fotografias, muitos elementos pictóricos] e comecei a ser mais minimal. A partir dai preferi o preto e branco." Uma redução que não significa simplificação: ao desaparecimento dos elementos visuais e cromáticos corresponde o aparecimento da citação literária ou filosófica como elemento central, gerando uma massa de pensamento mais complexa.
Esta exposição do universo literário e filosófico tem uma expressão grande não só nas citações que o artista passa a pintar nas telas, mas numa obra [Biblioteca, de 2011] constituída por enormes cartazes de capas de livros. Martin Amis, Céline, Jorge Luis Borges, Wittgenstein ou Raymond Carver, entre outros, são os autores que constroem a "biblioteca" heterodoxa de Sarmento - uma biblioteca que denuncia não um princípio de organização ou um método, mas a maneira como o artista foi percorrendo territórios tão diferentes. "O meu trabalho resulta do que sou, do que li, do que vivi, dos filmes que vi. Nesse sentido, nem é muito doméstico nem muito tecnológico. Trabalho sobre a minha memória e as coisas cruzam-se."
É essa memória que Noites Brancas tenta cartografar numa "visão trans-histórica", segundo João Fernandes: "Esta exposição vai permitir aferir como é que esta obra é um modo muito particular de assunção de uma teatralidade que tem como espaço de configuração, como palco, a casa." E há muitas casas aqui: as casas do artista [Seven houses and six flats, de 2006], as duas casas populares alentejanas que construiu em conjunto com o seu amigo Juan Muñoz [Beja, de 1993], a casa de Wittgenstein reproduzida no museu para servir de suporte aos desenhos e pinturas de Sarmento e, claro, a Casa de Serralves, onde actores e modelos irão durante uma única noite dar carne e sangue aos corpos de Sarmento.
Do arquivo à ficção
Para o artista, a pertinência desta exposição está, sobretudo, na possibilidade de fazer uma espécie de revisão da matéria dada: "Não de uma maneira saudosista, mas porque tenho uma necessidade importante de arrumar as coisas." Ainda assim, não se trata verdadeiramente de uma retrospectiva: "Comecei a expor em 1967 e estamos em 2012. São muitos anos a trabalhar, seria impossível fazer verdadeiramente uma retrospectiva. Esta exposição toca lugares importantes do meu trabalho em determinado momento, mas são só alguns." Julião Sarmento não precisa de acertar contas com o passado, porque lembra-se de todos os trabalhos: "Há várias obras que não vejo há bastante tempo, mas não vou ficar surpreendido. Tenho um arquivo muito completo e uma memoria visual prodigiosa. Consigo descrever em pormenor uma pintura que fiz nos anos de 1970."
A esta poderosa memória junta-se a mania da organização que Sarmento diz ser genética e ter herdado do pai. Fazer um enorme arquivo com as suas obras foi uma ambição quase fundadora: "Em 1974-1975, quando comecei a trabalhar com fotografia, tinha um carimbo que dizia: ‘Julião Sarmento coleccionador. Arquivos da vida animal.' Porque sempre tratei os meus trabalhos como fichas de arquivo. [Tenho] um lado de paciente guarda-livros sempre a arrumar o seu trabalho." Essa obsessão foi ampliada por acontecimentos traumáticos em que o artista perdeu todas as suas obras: "Houve três alturas na minha vida em que perdi tudo o que fiz. A primeira foi logo a seguir à tropa: tinha um estúdio/casa na Estefânia onde estavam todas as minhas coisas, imensos trabalhos feitos a meias com o Fernando Calhau, discos, livros, tudo. Fui para a tropa, fiquei sem dinheiro para pagar a renda e deixei de lá ir. Passados uns dez anos voltei lá e, claro, havia outro inquilino e já lá não estava nada. Portanto, existe algures um acervo meu e do Calhau que ou alguém deitou fora ou tem muito bem guardado. A segunda vez foi quando trabalhava na Secretaria de Estado da Cultura [SEC], final dos anos 1970 e inícios dos anos 1980. O espaço era gigantesco e como eu só trabalhava com fotografias e vídeo levei para lá tudo: os meus arquivos, os negativos, as fotos, os filmes. Em 1981 a SEC ardeu e, com a SEC, o meu trabalho dessa altura. Algumas coisas escaparam porque estavam espalhadas e havia um conjunto guardado na casa onde eu vivia, no Chiado. Mas, mais uma vez, essas coisas arderam todas no grande incêndio de 1988. É incrível, voltei a ficar sem nada."
Não é importante saber se esta história é totalmente verdade ou se é uma das ficções tão ao gosto do artista. A sua obra, da qual o discurso é uma parte inalienável, está repleta destes acontecimentos localizados entre a realidade e a ficção, entre o relato exacto e a narrativa romanceada ou ficcionada. O artista não esconde estas ficções biográficas que com o seu trabalho vai criando acerca de si próprio e do seu processo criativo - aliás, quando passa pela instalação 1947, feita em 1978, comenta: "Todas as pessoas acham que este é o quarto onde fui concebido, mas se fizerem bem as contas..". Ri-se como quem está indeciso entre revelar ou não uma história, contar ou não um segredo. E descobre-se que as suas imagens não são transposições directas da vida, do desejo, das pulsões, mas encenações e possibilidades de acontecimentos.
Se a teatralização da vida e do desejo é uma das marcas fortes da obra de Sarmento, outra é a animalidade. O artista recorda as suas telas da década de 1970 sobre a pele dos animais (leopardos, tigres, cobras), o conjunto de fotografias em que uma mulher veste e despe casacos de pele e a obra que abre a exposição, o registo fotográfico de uma acção no Jardim Zoológico de Lisboa em que se colocou no interior da jaula de um tigre e documentou o ponto de vista do animal [Jaula, de 1975-1976].
Há uma certa permanência desta animalidade, não como tema artístico, mas no modo como o artista olha para o mundo. Não se trata só de ver na animalidade uma boa metáfora para a condição do artista, mas de reconhecer através dela o contacto directo, originário, primitivo que ele estabelece com as experiências fundamentais do humano. E das quais fazem parte a celebração do prazer, a descoberta do corpo, do sexo, mas também a tristeza, a perda, o sofrimento. Esta animalidade expressa-se na irreverência e na rudeza que caracteriza muitas das suas obras. Uma rudeza que é sinónimo de força bruta e inesgotável. Tudo isto se expressa nas palavras e no olhar fixo e emocionado do artista enquanto guia a visita por Noites Brancas.
Julião Sarmento é nestes dias um homem impaciente: porque ainda não está tudo pronto e não pode mostrar as peças "na perfeição", porque quer mostrar todas as obras e elas ainda não chegaram, ou ainda estão em caixas ou ainda não se pode ligar o projector e ver o filme com a cor certa. Fala demoradamente sobre cada uma, como se fosse uma filha única e não houvesse mais dezenas para ver. "Conseguem imaginar que demorei mais de dez anos a fazer esta pintura?", pergunta, apontando para uma tela monocromática [Dez anos 1986-1996, de 1996] feita com o lixo que pacientemente varreu e juntou ao longo de uma década.
Sarmento tem em si profundamente gravada a consciência de cada peça. Trata-se de um saber a própria obra que confere singularidade e irrepetibilidade aos diferentes gestos, ideias, sentimentos e pensamentos que fixou numa tela, num desenho, num filme. Quando fala deixa ver que para ele não há "obras": cada obra tem um nome próprio e contém um tempo e uma vida de que não se quer libertar, que não quer esquecer.