As duas caras de Timor-Leste

Dez anos depois da independência, Timor-Leste continua por construir. Quase metade da população vive abaixo do nível de pobreza, a corrupção não pára de subir, os manuais não chegam às escolas. Há quem diga que Timor não está a “semear” o dinheiro do petróleo, está a enterrá-lo. E quem lamente: “Em Díli, os grandes não se entendem. Não se amam e o povo sofre.” Reportagem publicada a 20 de Maio de 2012.

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Timor-Leste tem duas caras. Estão frente a frente. Olham-se olhos nos olhos todos os minutos do dia. De um lado, a cara gorda dos poucos mas cada vez mais fartos por onde circulam os milhões de dólares do petróleo e gás natural, do luxo asiático, das mãos sujas pela corrupção que já ninguém nega. Do outro, a cara magra de milhares que continuam a viver em condições indignas e de reformas de um dólar por dia [0,78 euros] pagas por um Estado que, com um estalar de dedos, gasta seis milhões de dólares para remendar à pressa a estrada por onde hoje vão passar os chefes de Estado convidados para as celebrações dos dez anos da restauração da independência, mas não faz chegar às muitas escolas que construiu o material básico necessário para educar os mais novos.

Depois de vários sobressaltos, a segurança parece estar estabelecida. As cidades, ainda que de forma desordenada e caótica, foram reerguidas dos escombros, mas quando se sai das estradas de Díli e se entra nos bairros é a miséria que reina. Quando se viaja pelo interior, depara-se com a mesma pobreza que se via há dez anos, onde os milhões de dólares do petróleo ainda não chegaram. É um país de crianças subnutridas, sem condições de vida. Um país em que quase metade da população ainda vive abaixo da chamada linha de pobreza. Um país onde as pessoas ainda dizem passar fome.

Durante quase um quarto de século, os timorenses lutaram contra o invasor e pela independência em nome do povo. Alcançada a liberdade, o combate à pobreza foi apontado como a primeira prioridade, mas essa luta ainda mal começou. Os principais dirigentes políticos admitem que deveria ter sido feito mais. Viagem por um país que ainda vive cercado pela pobreza.

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A chuva miudinha parece não incomodar as centenas de idosos que enchem quase por completo o pátio do Banco Nacional de Comércio de Timor-Leste de Díli, na beira da estrada de Comoro, que liga o aeroporto ao centro da capital. Homens e mulheres com rostos marcados pela idade esperam em silêncio em filas compactas. Alguns amparam-se entre si, já agastados pela espera. Para muitos, dura há mais de três horas.

De cada vez que um daqueles homens e mulheres da frente entra no edifício, a fila dá um pequeno passo, sempre em silêncio. À volta, circulam os milhares de veículos ruidosos que, naquela manhã de segunda-feira, entopem uma das principais vias de Díli, junto ao bairro Mandarim, a poucas centenas de metros do centro da cidade.

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Junto ao balcão do banco, os gestos repetem-se como se tivessem sido ensaiados. Entregam os papéis que trazem na mão ao funcionário da instituição bancária pública e, passado um nada, recebem 180 dólares, que vão saindo de enormes maços de notas que, à vista de todos, se espalham em algumas mesas. A maioria nem confirma o valor que lhe é entregue. Guarda o dinheiro vagarosamente e sai em direcção a um qualquer bairro de Díli.

Dentro de seis meses voltarão para receber o subsídio criado pelo Governo de Timor-Leste no final do ano passado para apoiar os maiores de 60 anos e os inválidos do país. É a segunda vez nos dez anos de independência do país que estes pobres recebem esta ajuda do Estado. Cento e oitenta dólares. Um dólar por dia durante seis meses.

Délia Gonçalves, que se apresenta à revista 2 como a principal responsável do banco presente no edifício, faz as contas e revela que nos 13 distritos do país serão cerca de 47 mil com direito a esta pensão, numa população geral de Timor estimada hoje em cerca de um milhão e cem mil pessoas. “É um dólar por dia. É uma boa situação para o povo. Faz muita diferença. É o suficiente para uma pessoa”, garante num inglês razoável a funcionária pública. Português não sabe falar, apesar de ser, a par do tétum, a língua oficial de Timor-Leste.

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Cá fora, nas filas de espera, não foi difícil encontrar quem falasse português. Hoje, como há dez anos, só quase os mais velhos, é que o falam. São os que viveram a colonização portuguesa e nunca esqueceram a língua. De resto, são muito poucos os que, em Díli, ou fora da capital, falam português. Entre os jovens, não é difícil estabelecer um diálogo em inglês. As línguas que continuam a mandar são o tétum e o indonésio, apesar do dispendioso esforço de Portugal e Timor para implantar o português como uma das línguas oficiais do país.

“Fala português?” A resposta sai pronta. “Sim senhor, o meu nome é Alfredo da Silva Gomes”, diz o homem com um sorriso largo nos lábios, enquanto dá de imediato a mão ao cumprimento e se coloca em sentido militar. “O senhor é português?”, pergunta. Esclarecido que o seu interlocutor é um jornalista de Portugal em reportagem sobre os dez anos da restauração da independência, o senhor Gomes abre ainda mais o seu sorriso. E apresenta-se como tendo sido trabalhador da “engenheira portuguesa e chefe da secção de canalizadores”.

O senhor Gomes discorda da responsável do Banco Nacional de Comércio de Timor-Leste, quando esta diz que um dólar por dia “é o suficiente para uma pessoa”. “Com certeza que este dinheiro não chega para uma pessoa fazer a sua vida”, acentua de forma pausada, parecendo escolher cada uma das palavras. “Só os que estão nas cadeiras e nunca olham para baixo é que acham que chega para fazer a vida. A pobreza em Timor é muito grande, senhor”, acrescenta Fernando Soares, que, estando ali ao lado, resolve entrar na conversa.

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“Há muita pobreza, e fome também.” Agora são já quatro os idosos que se juntam em redor do “jornalista de Portugal”, como vai esclarecendo o senhor Gomes aos que se aproximam. “O povo ainda sofre”, declara por sua vez José Lai. “Não chega não senhor, mas é uma oferta do Governo e, como diz o ditado português, mais vale pouco que nada e a cavalo oferecido não se olham os dentes. É uma boa oferta do Governo e o nosso novo Presidente prometeu aumentar a verba”, junta Francisco Araújo, contrariando a linha de conversa dos seus companheiros.

O senhor Araújo alega, então, uma dúvida que nada tem a ver com o falatório em curso. E avança num repente: “Em que dia chega o nosso Presidente português? O senhor sabe?” Assim que soube que o Presidente de Portugal, Cavaco Silva, chegaria dia 19 Maio, o senhor Araújo eleva o dedo indicador em direcção ao céu e explica por que se referiu a Cavaco Silva como o “nosso Presidente português”.

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Visita do Presidente da Republica portuguesa, Anibal Cavaco Silva, com o presidente cessante, Ramos Horta, à chegada a Timor

“Tive três países. Quando andava na escola era português. Depois da invasão fui indonésio e agora, na independência, sou timorense. Só nunca gostei de ser indonésio.” Feitas as despedidas, os homens ali ficam, conversando em português e de papéis nas mãos, enquanto a fila vai dando passos lentos em direcção ao balcão dos montes de dólares, numa exposição obscena perante quem muito pouco tem.

Estes velhos, visivelmente muito pobres, são em tudo iguais aos que, em 1999 antes do referendo que escolheu a independência, viviam em “casas” de miséria, erguidas em madeira, ou tijolo cru, com tectos de zinco ferrugento nos bairros de Díli escondidas entre paredes de quartéis. Nessa altura, sobreviviam sem qualquer ajuda e sob um manto de terror, pelo que quase só saíam de casa para tratar da pequena horta, que lhes dava o pouco viver do dia-a-dia, e para a indispensável missa dominical.

São os mesmos velhos de rostos com vincos profundos na pele magra e costas curvadas que em 2002, depois de se refugiarem nas montanhas fugindo à destruição e morte do pós-referendo da liberdade, regressaram a Díli para ocuparem as tendas da ajuda internacional que deles cuidou como nunca ninguém tinha feito.

Mas as tendas não eram o seu jeito de viver e, ao mesmo tempo que a cidade se foi erguendo, as velhas casas, muitas ainda de madeira, tijolo e zinco, voltaram a ser levantadas sobre os solos lamacentos. Passaram a repartir a terra com casas mais cimentadas mas igualmente miseráveis, mais visíveis e em muito maior número na capital de Timor-Leste. São casas que se escondem nos mesmos bairros esguios, escuros e sujos, mas agora por detrás dos muros das grandes empresas, das agências das Nações Unidas, das muitas organizações não-governamentais (ONG), dos postos da polícia e dos enormes edifícios do Estado ainda a cheirar a novo.

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Continuam a cozinhar o pouco que têm a fogo de madeira, apesar de a energia eléctrica já chegar a toda a cidade, mas a preços que não podem pagar. Continuam a cultivar as suas hortas de vegetais junto às ribeiras, agora ainda mais sujas, de Díli, que, depois, tentam vender a cêntimos de dólar nos muitos mercados anárquicos e sujos ao ar livre ou em qualquer beira de estrada da cidade.

As pequenas vendas em pedaços de chão ficam, muitas vezes, quase lado a lado com luxuosos supermercados dos malae (estrangeiros), para o nível geral do país, e das cada vez mais ricas elites timorenses. É gente que pode pagar, sem fazer contas, latas de bacalhau de conserva (120g) a 7,38 euros, ou garrafas de vinho por 30 dólares, que no país de origem não custariam mais de 5 a 6 euros, entre outras iguarias importadas. O equivalente a um mês do dólar por dia que os idosos recebem de pensão dada pela República Democrática de Timor-Leste.

Do Orçamento do Estado (OE) de Timor, no valor total de quase 1,7 mil milhões de dólares conseguidos com a exploração do petróleo e gás natural - o OE de 2002 era de 77 milhões e só contava com dinheiro da ajuda internacional - 128 milhões vão para a solidariedade social. Valor que paga o dólar por dia, mais outras pensões de velhice, reformas aos antigos combatentes, aos órfãos e viúvas da guerrilha. Segundo números do Governo, beneficia quase 89 mil timorenses.

É uma ajuda importante, muito importante, que faz chegar dinheiro a mãos onde ele nunca chegou, mas que ainda está longe de ser suficiente para evitar que praticamente metade dos timorenses (49,9%) viva abaixo da linha nacional de pobreza, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano 2011 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

“A pobreza ainda é generalizada e devia ter sido muito mais reduzida”, reconhece à revista 2 José Ramos-Horta, antigo primeiro-ministro e o Presidente da República que hoje passa o testemunho ao novo chefe de Estado eleito, Taur Matan Ruak.

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Tomada de posse do Presidente de Timor-Leste, Taur Matan Ruak

Para o também prémio Nobel da Paz, a subnutrição infantil, que segundo números recentes atinge cerca de 50% das crianças, “é inaceitável”, a tuberculose “continua a ser a primeira doença do país” e “a malária e dengue continuam a ser generalizados”. Doenças que, apesar de terem sido construídos seis hospitais centrais, 66 centros de saúde e quase 700 postos de assistência clínica onde servem cerca de 300 médicos (em grande parte cubanos), ainda matam no país. Ainda assim, no OE deste ano a saúde leva uma das mais pequenas fatias, 48 milhões de dólares, menos 27 milhões que a administração estatal. “Nem tudo tem sido um sucesso”, acrescenta Ramos-Horta, salientando, porém, que é necessário olhar “para o contexto geral”. “O fundo do petróleo só foi criado em 2004/2005. E começou com pouco mais de 200 milhões de dólares [hoje ultrapassou os dez mil milhões]. Portanto, em cinco anos, não me parece que teria sido possível fazer muito mais.” Para Mari Alkatiri, secretário-geral da Fretilin [Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente], o maior partido timorense, e antigo primeiro-ministro, “não há uma linha estratégica para o país e para o combate à pobreza”.

“Dez anos depois, o país continua sem azimute. Vive numa solução de facilitismo com base no dinheiro fácil do petróleo e sem um plano claro de desenvolvimento.” É o petróleo que faz com que Timor-Leste tenha tido um Produto Interno Bruto per capita de 2908 dólares, em 2010, mas, sem ele, o indicador desce para quase três vezes menos (821 dólares), segundo as contas do Fundo Monetário Internacional. Alkatiri acrescenta que, em vez de se “semear o dinheiro” do petróleo, “se está a enterrar o dinheiro em projectos megalómanos feitos por estrangeiros” que “levam o dinheiro para fora do país”.
"Por cada dólar investido, 70 cêntimos vão para fora. Dos 30 cêntimos que ficam, só beneficiam 20% da população. E os pobres ficam cada vez mais pobres”, diz, garantindo citar números oficiais.

Para quem chega à capital de Timor ao fim de dez anos, a primeira imagem é impressionante. Numa década, Díli, a cidade que viu cerca de 75% dos seus edifícios destruídos, foi erguida dos escombros. As lojas dos chineses, que antes do referendo de 1999 e já em 2002 dominavam o pequeno comércio, multiplicam-se agora por toda a cidade onde vivem cerca de 150 mil habitantes. Vendem de tudo, de roupa em segunda mão a novidades tecnológicas. Quase nada falta em Díli desde que se tenha dólares. E, quando falta algo, os que têm dinheiro facilmente vão a Bali. As estas lojas, juntam-se as dos indonésios, malaios e paquistaneses. Pequenos e grandes espaços de comércio à beira das estradas e ruas da cidade, construídas igualmente de forma anárquica.

Pelas ruas, miúdos e graúdos vendem CD pirateados, todo o tipo de tralha e “pulsa”. Montes de “pulsa”, “raspadinhas” com códigos para carregar os cartões dos telemóveis da Timor Telecom (TT). Ou até os próprios cartões da empresa para activar nos aparelhos, que por mais três ou quatro dólares, poupam o trabalho burocrático que dá adquirir um desses cartões num balcão da empresa. Os telemóveis, claro, também se vendem na rua ou nas muitas lojas chinesas da cidade. Sem garantia, mas ao contrário dos da TT, vêm desbloqueados, não obrigando a qualquer contrato de fidelidade. A TT parece não se importar, uma vez que os maiores pontos de negócio têm lugar às portas, rigorosamente às portas, das suas lojas.

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E clientes não faltam, já que a TT anuncia em enormes cartazes espalhados pela cidade já ter ultrapassado os 600 mil clientes na rede móvel, garantindo cobrir 92% do território. O sinal é, porém, fraco e os lamentos ao serviço da TT são o pão nosso de cada dia entre os malae de Díli.

Em Díli ergueram-se casas, prédios de dois, três andares, stands de automóveis e de motorizadas como os que se podem ver nas grandes cidades da Ásia. Enormes lojas de construção civil, salões de beleza e massagens, agências de turismo, hotéis às dezenas, bares. E dezenas de restaurantes. Japoneses, chineses, turcos, portugueses, australianos, italianos. A gastronomia do mundo está em Díli, embora os timorenses não possam ir além das centenas de pequenos e pobres espaços de comida local que também se espalham pela cidade e onde uma sopa custa 50 cêntimos de dólar.

Entre os novos edifícios que enfeitam a desordenada e suja cidade de Díli, em que o lixo é queimado a céu aberto e quando chove quase se transforma num lago, há “o” edifício. O Timor Plaza. Um centro comercial de investimentos privados recentemente inaugurado na estrada de Comoro, não muito longe do local onde os idosos recebem o seu dólar por dia de seis em seis meses.

Ainda está longe dos megacentros comerciais que se podem ver nas grandes cidades asiáticas, mas já se lhes iguala no conceito. A dimensão, os três andares com dezenas de lojas, escritórios, espaços de brincadeira para as crianças e zona de restauração trazem um cheiro a modernidade nunca visto em Timor. E as obras ainda continuam.

Razões mais que suficientes para o Plaza rapidamente passar a ser alvo de falatório na cidade e destino de romarias diárias, ainda que muitos visitantes não tenham dinheiro para ali comprar. Há ainda outra razão importante para o seu sucesso: o Plaza tem o primeiro elevador público do país. O Plaza é um must em Timor e palco dos principais eventos da capital, como, há uma semana, a final do Festival da Canção Timorense, que levou milhares a encherem os seus corredores e galerias.

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Centro de Convenções de Díli

Um edifício que só rivaliza com as novas sedes do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) - onde está o segundo elevador do país, embora não aberto ao público - e da Defesa.

Dois enormes e luxuosos edifícios, muito acima das necessidades da jovem nação, decorados com o mais fino mobiliário e com modernos equipamentos para todas as funções. Equipamentos capazes de deixar corados de inveja governos de países com maior capacidade financeira, embora muitas vezes nem sejam utilizados, ou por falta de pessoal capaz de os operar, ou porque são desfasados da realidade local.

Foram pagos pela ajuda chinesa, como prova a tapeçaria que cobre toda uma parede do salão nobre do MNE e que mostra uma cordilheira de montanhas. Não as de Timor, mas as que ladeiam a muralha da China, igualmente retratada na imagem gigante.

As vivendas de habitação nos considerados bairros nobres de Díli também foram quase todas reconstruídas com materiais nobres e muitas delas ampliadas. Abrigam gente mais abastada e sedes de empresas, embora muitas sejam alugadas a cooperantes, empresários, funcionários das diversas agências das Nações Unidas e de ONG que ainda se contam por milhares em Timor.

Só a UNMIT (missão da ONU em Timor e que tem fecho marcado para o final do ano) conta ainda com 2704 funcionários, sendo 883 timorenses.

Estrangeiros que inflacionaram os preços da habitação em Timor e de todos os outros bens. Um quarto sem água quente e ar condicionado num bairro pobre dificilmente pode ser encontrado por menos de 300 dólares. Já uma habitação com uma assoalhada, cozinha, casa de banho e gerador (já há energia eléctrica em Díli e cada vez com menos falhas, mas sempre pode fazer falta) dificilmente será alugada por menos de 1500 dólares. A partir daqui é sempre a subir. Preços proibitivos para os trabalhadores timorenses, cujo ordenado mais baixo entre os cerca de 24 mil funcionários públicos (no tempo da ocupação eram mais de 40 mil) ronda os 150/200 dólares e que nas letras mais altas pode ir acima de 600 dólares.

Longe, muito longe, do que ganha um estrangeiro a trabalhar para o Estado timorense e cujo vencimento facilmente bate muitas vezes os nove mil dólares, embora não falte quem ganhe muito mais. 

O trânsito em Díli é caótico. Os carros são aos milhares. Veículos de alta cilindrada de vidros fumados circulam ao lado de velhos carros que ameaçam morrer na estrada a qualquer momento. As dezenas de camiões pesados que, durante o dia, partem do porto de Díli em todas as direcções carregados de contentores, complicam ainda mais o trânsito que entope as estradas ao longo do dia. A partir das 22h, os carros quase desaparecem. O silêncio toma conta dos bairros pobres e ricos e a rua é tomada pelos poucos vendedores ambulantes que escolhem a noite para o negócio.

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A cidade é hoje segura, a criminalidade já poucas notícias dá nos jornais locais, mas os timorenses ainda temem o escuro e os malae temem algumas pedras que, por vezes, “chovem” do interior de alguns bairros em direcção aos carros que os atravessam. A excepção a esta quietude surge junto ao mar, especialmente no fim-de-semana. Na parte marginal já longe das casas de habitação, discotecas enchem-se até de madrugada de jovens timorenses e estrangeiros que, como em qualquer capital do mundo, dançam horas sem fim ao som dos mais recentes hits.

Em dez anos, a primeira preocupação, quer das missões das Nações Unidas, quer dos governos timorenses, foi construir um Estado. Uma governação, emanada de eleições livres, que permitisse gerir o país nas suas mais variadas vertentes. Em 2002, ainda com a ajuda da ONU, estava lançado o Estado. A partir daí, o edifício gestor da nação foi ganhando tijolos, corrigindo imperfeições, ganhando forma. O Estado da República Democrática de Timor-Leste é hoje, com todas as suas virtudes e defeitos visíveis, uma realidade. Uma vitória cantada por todos.

Só que enquanto esse Estado foi sendo construído, com os seus normais confrontos políticos, quase tudo o resto foi relegado para segundo plano. Questões como a pobreza, saúde, educação, segurança, justiça foram sendo erguidas com pouco cimento, resolvidas pontualmente, primeiro com o dinheiro da ajuda internacional, depois com as verbas do petróleo e gás natural.

Despejou-se e ainda se despeja dinheiro sobre os problemas, com as notas de dólar a passar de mãos de forma estonteante e, muitas vezes, com muito pouco controlo. Combater a corrupção, maleita com raízes profundas que não pararam de crescer durante a ocupação indonésia, foram e são palavras sempre presentes nos discursos de todos os políticos timorenses. Foram recordados vezes sem conta os países com recursos naturais em que, devido às mãos sujas pela corrupção, transformaram a graça em desgraça. Foram criados mecanismos para proteger os dólares que vinham dos recursos naturais e a unanimidade do combate à corrupção foi deixando as consciências tranquilas.

Só que as coisas, todos os admitem hoje, não estavam afinal a seguir o caminho que todos diziam desejar. Alguns negócios acompanhados de visíveis enriquecimentos súbitos foram levantando dúvidas. Foram lançadas suspeitas sobre empresários e políticos. A questão aqueceu os debates parlamentares, foram abertos e encerrados inquéritos. Até que, em Março deste ano, rebentou a bomba. O Tribunal Distrital de Díli acusou publicamente a ministra da Justiça, Lúcia Lobato, do crime de corrupção, abuso de poder e falsificação de documentos, nomeadamente no favorecimento em concursos públicos para a construção de conservatórias de registo civil em vários distritos de Timor.

Lúcia Lobato viu o seu mandato de governante suspenso pelo Parlamento e vai ser julgada. Os rumores, as suspeitas, o diz que disse, passavam a ter um caso real. E logo envolvendo a ministra da Justiça. Os sinais da desconfiança do povo já tinham sido manifestados no inquérito levado a cabo pela governamental Comissão Anticorrupção, criada em 2010, e por várias entidades independentes.

Dos 1040 inquiridos em todo o país, 45,5% achavam que os membros do gabinete da Presidência da República eram “muito ou um pouco corruptos”, no Parlamento essa percentagem subia para 48,9 pontos e no Governo para os 54,3.

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Já em Dezembro do ano passado, o relatório do Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional de 2011 considerava Timor como um país com elevado risco de corrupção, ocupando a 143ª posição em 183 países analisados. O Governo chefiado por Xanana Gusmão tem prometido vezes sem conta ser intransigente no combate à corrupção, mas as desconfianças, as críticas, as histórias de pequena e grande corrupção contadas em surdina sobem ao ritmo da entrada do dinheiro do petróleo.

“A corrupção é grave ao nível de certos sectores do Estado que gerem muito dinheiro nas obras públicas. Em particular nas áreas da energia, água e saneamento e no Ministério do Comércio, Indústria e Turismo que faz a importação e distribuição do arroz”, diz Ramos-Horta, salvaguardando, porém, que, “como em qualquer Estado de direito”, só o procurador-geral da República e os juízes “podem apontar o dedo”.

Já Mari Alkatiri, usando palavras que se ouvem frequentemente nas ruas, é mais directo: “A corrupção grassa em Timor.” Para o antigo governante, “num país tão pequeno, é impossível esconder o que toda a gente pode ver”. E o que se vê, acrescenta, é “o vizinho que, antes de este Governo tomar posse, antes do dinheiro do petróleo, não tinha nada e de repente tem dois, três carros, uma casa remodelada com centenas de milhares de dólares e vai para Bali e Singapura com frequência”. “É o Presidente indonésio que diz que Bali está a crescer com o dinheiro timorense”, conta Alkatiri. Já o ministro dos Negócios Estrangeiros, Zacarias da Costa, diz conhecer bem “a percepção que as pessoas têm da corrupção”. Salienta as políticas levadas a cabo pelo Governo para combater o fenómeno, mas admite que as instituições ainda não têm todos os meios e capacidades necessários para “enfrentar este grande problema que não é só de Timor, mas de muitos países do mundo”.

Todos se unem no combate que dizem ser necessário fazer de forma enérgica e que passa pelo controlo e prevenção da corrupção. Palavras repetidas vezes sem conta ao longo dos últimos dez anos, mas que não impediram que o “cancro” se instalasse e crescesse com uma dimensão que ninguém sabe precisar.

Cerca de 130 quilómetros e, no mínimo, três horas e meia de viagem separam Díli de Baucau, as duas principais cidades do país. A estrada que há dez anos se vencia com relativa facilidade conserva ainda a maioria do seu tapete de cimento, mas os condutores são frequentemente surpreendidos com enormes buracos, abatimentos da via que fazem com que a velocidade média dificilmente ultrapasse os 40 km/h. A estrada já foi várias vezes reparada. Remendos que com duas ou três chuvadas intensas voltam a ser buracos, agora ainda maiores.

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A estrada Díli-Baucau é um mal menor, quando comparada com outras vias. Assim que se deixa a segunda cidade do país e se ruma a sul em direcção a Viqueque, os buracos dão lugar a verdadeiras picadas que vão comendo mais o alcatrão de dia para dia. As águas que correm das montanhas abriram caminhos nas vias que frequentemente cortam a circulação.

Timor possui cerca de 1426 km de estradas nacionais, 869 km de estradas distritais e 3025 km de estradas rurais. É o próprio Governo que, no seu Plano Estratégico de Desenvolvimento, reconhece que cerca de 90% das estradas nacionais e distritais “estão em más ou muito más condições”.

Consequências: populações isoladas, dificuldades acrescidas ao acesso à saúde e educação, atrasos no desenvolvimento rural, bloqueios no escoamento e circulação de produtos, aumentos dos preços, mais pobreza. O executivo liderado por Xanana Gusmão promete, até 2015, realizar “um programa de grande escala de reparação, reabilitação e melhoria de estradas” e anuncia para este ano 100 milhões de dólares, só para a estrada Díli-Baucau.

A electricidade, fundamental para o desenvolvimento, começou a chegar a estas terras no ano passado. Enormes torres elevam-se nas montanhas verdes, levando energia a toda a costa a norte, já está às portas de Viqueque (a cerca de 60 km de Baucau) e começa a estender-se para outras zonas do território, embora em algumas partes do interior ainda só seja ligada à noite.

A reabilitação e construção de infra-estruturas são a grande aposta do Governo para este ano. O sector que recebe do OE de quase 1,7 mil milhões de dólares uma fatia de 800 milhões, com 282 milhões destinados à energia eléctrica. É preciso sair de Díli para ver a beleza de Timor em todo o seu esplendor.

As montanhas pintadas com centenas de tons de verde, praias de beleza única que em alguns pontos quase beijam a estrada, ou outras inacessíveis no fundo de escarpas num mar transparente cuja cor se vai alterando entre o azul e o verde.

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Vista da estrada, mar entre Díli e Baucau

É também preciso sair de Díli para ter a verdadeira dimensão da pobreza que ainda atinge o país e que muito pouco mudou nos últimos dez anos. É no interior dos subdistritos, nos “sucos” (pequenos aglomerados populacionais) no interior do mato e na beira das estradas que estão os que não vêem a cor do dinheiro, nem medidas que, de facto, os tirem do buraco da míngua onde continuam a viver mergulhados.

São os dois terços da população que, de acordo com números de 2010 do Governo, não sabem o que é viver numa casa de cimento e tijolo. A maioria do povo timorense, tal como em 2002, não possui qualquer instalação sanitária e cerca de 50% não têm acesso a qualquer fonte de água potável.

É também por estas terras perdidas que se concentram os 90% de timorenses que ainda cozinham a lenha. É ainda por aqui que vivem cerca dos 50% de cidadãos que não sabem ler ou escrever em tétum. Os números do desenvolvimento humano mostram uma evolução positiva, como, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil. O número de crianças com menos de um ano que morre por cada mil nascidos no mesmo ano passou de 51,99 casos em 2002 para 38,01 em 2011, mas a subnutrição continua a ser um dos principais problemas nacionais. Segundo a Unicef e a organização Save The Children, atinge 54% das crianças com menos de cinco anos.

O centro de Baucau, a cidade mais poupada à violência e destruição de 1999 por acção do bispo Basílio do Nascimento, distingue-se de Díli pela sua calma, pelo seu quase silêncio quando comparado com o rebuliço de Díli. Mas basta sair do centro para ver que os pobres entre os mais pobres também já cercaram a cidade, na esperança de ali encontrarem uma oportunidade que não têm nos subdistritos do interior.

O novo Presidente de Timor, Taur Matan Ruak, manifesta grande preocupação pela situação da pobreza em Timor, especialmente dos que vivem fora de Díli e fala mesmo nos timorenses que estão “totalmente esquecidos”.

“Nos últimos dez anos, o desenvolvimento deu-se em Díli. Nas zonas rurais, os timorenses estão totalmente esquecidos. Em todos os aspectos”, afirmou à revista 2. As semidestruídas estradas de Timor-Leste parecem recreios de crianças.

Pouco passa das 7 de manhã, o dia ainda não acabou de nascer e já centenas de meninos e meninas com idades que variam entre os seis e os dez anos caminham pela estrada coberta de lama que liga Ossu a Venilale, no interior norte de Timor. Caminham calmamente, vestidos com os seus coloridos uniformes escolares, muitos deles em alegres brincadeiras. Vão descalços e levam nas mãos os chinelos de enfiar no dedo. Só param junto às ribeiras que abriram caminhos pelas estradas e que subiram de volume depois da forte chuvada da noite. Avaliam a travessia que vão ter de fazer e, num repente, avançam destemidos com pequenos e cuidados passos, vencendo a água que lhes sobe até aos joelhos.

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As escolas surgem umas atrás das outras com distâncias de poucos quilómetros entre si. Ora do lado esquerdo da estrada, ora do lado direito. Dão-se à vista novos edifícios, outros recuperados ou apenas pequenos telheiros que cobrem mesinhas de escola e que às primeiras horas da manhã se enchem de crianças. Meninos em uniformes escolares, brincando nas beiras de estrada os nas ruas das cidades, são uma das imagens fortes de Timor e o sinal de um dos maiores sucessos dos dez anos de independência. O sistema de ensino foi reerguido e as crianças colocadas na escolas. Foram reconstruídas e construídas cerca de 1500 escolas para o ensino pré-escolar, básico e secundário. Mais de nove mil professores no ensino básico e dois mil no ensino secundário ensinam hoje cerca 320 mil alunos, segundo revela o Governo no seu Plano Estratégico de Desenvolvimento 2011/2030.

As autoridades de Timor-Leste estimavam que, até 2015, 88% de crianças na idade escolar estariam matriculadas do primeiro até ao sexto ano de escolaridade. “Já ultrapassámos este valor, tendo, em 2011, alcançado 90% de crianças na idade correcta matriculadas no ensino básico”, revela o documento.

São ainda apontadas muitas deficiências ao sistema de educação - forte abandono escolar, dificuldades para concluir o ensino secundário, professores mal preparados, falta de todo o tipo de material, muitas escolas degradadas - mas o Estado timorense conseguiu colocar as suas crianças e adolescentes nas escolas, do pré-escolar à universidade.

Conceição Godinho fala com entusiasmo da sua escola: dos seis professores e 168 alunos que a inauguraram há dez anos e que hoje são 781 educandos, timorenses e portugueses, e dos 61 docentes que, do pré-primário até ao 12.º ano, frequentam a escola que nada fica a dever a uma qualquer escola portuguesa.

A Escola Portuguesa de Díli e que recentemente mudou o nome para Escola Portuguesa Ruy Cinatti é um projecto criado no âmbito da cooperação e que ensina de acordo com os programas oficiais portugueses. Uma referência em Timor e o centro de excelência do ensino do português no país.

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Escola portuguesa de Timor-Leste

Conceição Godinho, a directora, tem agora em mãos um projecto ambicioso, com base num acordo entre Portugal em Timor. Estender a excelência da Escola Portuguesa por todo o território timorense, abrindo centros de ensino para que a filosofia e a qualidade da escola de Díli se espalhem pelo país.
O projecto será da responsabilidade do Estado português até 2013, passando depois para as mãos dos timorenses. Já abriram quatro escolas, em Baucau, Boubonaro, Manufai e Oecussi, numa iniciativa que envolve professores dos dois países. “O objectivo é que, um dia, estas escolas deixem de se chamar escolas de referência e que todas as escolas passem a ser de referência”, explica Conceição Godinho.

A escola portuguesa tem também em curso o projecto Ler Mais, em parceria com os centros de referência. São 214 malas, com cerca de 100 livros cada que circularão pelo país. A falta de livros em Timor é um dos problemas apontados por Conceição Godinho para a dificuldade que a língua portuguesa está a ter para se impor em Timor. “Em casa dos timorenses não há livros.” Para a professora, Timor adoptou o português como língua oficial, mas o português só se imporá “quando estiver na rua”. “Em Timor não há eventos em português. Há uma feira do livro e mais nada. Na rádio ouve-se música indonésia. Sim, também passam músicas em português, mas cantadas por brasileiros e, de vez em quando, lá passa uma música portuguesa, daquelas mais populares. E se os timorenses quiserem aprender português aprendem onde?” A directora reconhece que ao longo dos dez anos foram conseguidos resultados positivos no ensino em Timor, mas salienta ainda muitas debilidades, como as escolas sobrelotadas, onde há turmas como 90 alunos. “Como é que as crianças aprendem assim?”, pergunta.

Na visita às instalações da escola, à sua biblioteca, sala de música, à sala do pré-escolar que começou no ano passado com duas turmas de meninos de três anos, ao refeitório que serve toda a população escolar, a 2 foi-se cruzando com outros professores que falam da escola com o mesmo entusiasmo da directora. Um pedido especial foi feito. Sabendo que os jornalistas iam viajar no dia seguinte para a zona de Viqueque, duas professoras, que lá por tinham andado no fim-de-semana, gostariam que fossem entregues quatro caixotes de livros de ensino a duas escolas com muitas dificuldades. Especialmente a uma escola em Venilale, no interior norte da ilha, mais ou menos a meio da “estrada” de 60 quilómetros que liga Baucau a Viqueque. “É uma escola especial”, avisam.

Duas senhoras avançam apressadas pelo terreiro de terra da escola EBF Uato-Haco logo à entrada da vila de Venilale, no distrito de Baucau. Assim que chegam ao veículo todo-o-terreno que acaba de entrar no pátio não escondem a sua inquietação. “São os senhores jornalistas que trazem os livros?”, pergunta de imediato uma das senhoras num português correcto. “Então, então, estamos à vossa espera desde manhã. Até tínhamos feito almoço. Estávamos tão preocupadas”, acrescenta. Apresentam-se. Mariquita de Freitas, professora e directora da escola, e Ana Rufina da Silva, professora. Os jornalistas são imediatamente conduzidos para uma pequena sala colada a um de três pavilhões que formam a escola.

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Mariquita de Freitas, professora e directora da escola

Cheira a café fresco. Três travessas, com banana frita, com o fruto passado por farinha, e pipocas são colocadas sobre a mesa. A professora Mariquita senta-se muito direita numa cadeira em frente à mesa baixa que sustenta a comida e a divide do banco corrido onde os jornalistas foram convidados a sentarem. “As senhoras professoras de Português tinham dito que vinham hoje com os livros. Pensávamos que vinham de manhã. Até fizemos almoço e agora os meninos já foram todos para casa”, lamenta.

Explicado que as estradas estão muito más e que só para viajar de Díli a Baucau se demora quatro horas, a professora Mariquita conformase. “Coitados, tanto trabalho para nos trazerem os livros.” A escola de Uato-Haco tem 634 alunos e 14 professores, leccionando do primeiro ao sexto ano. “Só ensina em português”, assegura a directora com 53 anos e mais de 25 de ensino. Os alunos “aprendem devagar, têm de repetir muito”, queixa-se, explicando que o português só é falado na escola. Nas ruas e casas manda o tétum e outros dialectos locais. E o pior é quando trocam a escola básica de Venilale e entram no secundário. “Ali já não há ninguém para ensinar os meninos em português e eles desaprendem. As pessoas parecem esquecer que o país tem duas línguas.” Questionada sobre as maiores dificuldades da sua escola, a directora responde: “Todas.”

Poucos professores e muitos alunos, muitas vezes colocados em turmas que chegam a ter “mais de 100 estudantes"; falta de tecido para costurar fardas para os alunos que “têm muito pouca roupa em casa"; falta de material para reparar a escola; “meninos muito mal alimentados e com fome” e necessidade de todo o tipo de material escolar, em especial livros de ensino.

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Alfabetização de adultos

O Governo de Timor criou no ano lectivo de 2008/2009 o programa Merenda Escolar. Como objectivo de combater a fome, começaram a ser distribuídos cabazes com arroz, feijão e óleo por todas as escolas de Timor. A ajuda chegou à escola da professora Mariquita, mas a deste ano terminou em Fevereiro e nunca mais voltou. “Agora, na escola, os meninos só comem feijão de vez em quando. Cozemos arroz com muita água e óleo para ficar uma papa. As crianças estão quase todas subnutridas”, diz quase com a voz embargada e os olhos já molhados pelas lágrimas.

Desde 2009 que o Governo também entrega às escolas 1 dólar/mês por cada aluno inscrito. Dinheiro que, dizem as professoras, “não chega para quase nada” numa escola com 600 alunos a quem é preciso alimentar e dar todo o tipo de material escolar. “Faltam bolas, cadernos, lápis. Falta quase tudo.” A falta de livros é outro problema que inquieta muito as professoras. “O Governo só mandou 20 ou 30”, não chegam para todos e, por isso, os professores copiam para os velhos quadros de ardósia os capítulos dos livros que, depois, os alunos transcrevem para os seus cadernos.

Hoje, como no passado, nunca os problemas afastaram a professora da sua missão de ensinar. Em Outubro de 1999, cerca de um mês depois da violência e morte do pós-referendo, Mariquita de Freitas, percebendo que “os indonésios já não voltavam”, andou de porta em porta a chamar as crianças para a escola. “Ensinava em indonésio. Nesse dia passei logo a ensinar em português. Até hoje. Gosto muito de ensinar e faço-o com muito amor à escola e a Timor”, diz, mostrando pela primeira vez um pequeno sorriso. Sorriso que se apaga quando desafiada a avaliar a situação do país dez anos depois da independência: “O povo de Timor continua pobre.

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Ainda não sente a riqueza que está a vir. Apesar de lá na capital gritarem que Timor está assim e assim, o povo ainda não sentiu nada.” Aqui, a professora Ana Rufina da Silva entra na conversa pela primeira vez. “O dinheiro de Díli não chega aqui. Esperemos que Portugal continue de olhos em nós para nos ajudar como ajudou com estes livros. Que Portugal nunca deixe de olhar por este povo que tanto precisa.” A professora Mariquita já não consegue segurar as lágrimas que agora lhe correm pelo rosto. Leva as mãos à cara tapando-a enquanto em surdina pede desculpa. “Em Díli os grandes não se entendem. Não se amam e o povo sofre.” A professora Ana volta à conversa, agora mostrando revolta: “Era solteira e já tinha sido presa pelos indonésios. Casei-me e voltei a ser presa. Eu e muitos. Aqui houve muita morte, é altura de olharem para o povo.” Dizem não entender que “um país com tanta riqueza” ignore a “maior riqueza, os jovens que são o futuro do país”. “Sem jovens bem preparados, sem professores que os ensinem, que futuro tem Timor?”, pergunta a professora Ana.

As professoras insistem para que os jornalistas voltem no dia seguinte “para verem os alunos”. O encontro fica combinado para as 8h30 da manhã, “quando todos já estão na escola”. Ainda antes da despedida, a professora Mariquita lembra-se de outra necessidade da escola que não tinha sido referida e que se “alguém pudesse oferecer seria também uma grande ajuda”. “Falta-nos uma máquina de escrever para fazer os pontos e outros textos. Temos uma muito velha, indonésia, mas não tem os acentos do português.” No dia seguinte, à hora combinada, centenas de crianças, professores e funcionários da escola aguardam. A professora Mariquita dá ordens apressadas para que todos se juntem.

A professora Ana inicia a cerimónia. “Excelentíssimos senhores jornalistas, representantes da Comissão Portuguesa sejam bem-vindos. Temos umas palavras para lhes dizer.” Nesse momento, faz-se silêncio e uma menina de seis anos, com um vestido de levar à missa de domingo, avança e lê um pequeno discurso de agradecimento em português perfeito.

Depois, como se tudo estivesse ensaiado, alunos e professores dão as mãos e cantam afinados a uma só voz. A letra, cantada em tétum, louva a liberdade, a independência e Timor Loro-Sáe. A fechar a cerimónia, oferecem dois tais (pano tradicional) transportados numa bandeja sobre um pano rendado branco. De forma solene, a professora Mariquita coloca-os nos ombros dos visitantes e despede-se com dois beijos.

Ainda antes da partida, oferecem o texto do discurso sob promessa de ser entregue “às senhoras professoras portuguesas que enviaram os livros”. Não era destinado aos dirigentes políticos do país que celebra hoje dez anos da restauração da independência, mas bem que o poderiam ler.

“Excelentíssimos senhores jornalistas ou representantes da Comissão Portuguesa, sejam bem-vindos! Agradecemos muito pela vossa generosidade e pela vossa solidariedade em nos suportar os livros de ensino e aprendizagem para elevar uma educação de qualidade neste nosso pobre País Timor Loro-Sáe, especialmente nesta nossa escola EBF Uato-Haco. Prometemos, com a presença desses livros, nos esforçarmos para estudar bem, a fim de aprofundar mais os nossos conhecimentos e para melhorar um futuro frutuoso, de um Timor Loro-Sáe Livre e Independente. Para diante, depositamos a nossa confi ança na Comissão Portuguesa, se nos faltarem mais livros sempre necessitamos da vossa ajuda ou apoio último. Por último, os nossos sinceros agradecimentos para a Comissão Portuguesa em geral e em especial para os senhores jornalistas. Muito obrigado. Venilale, 9-5-2012.”

Esta reportagem foi publicada na edição da revista 2 de 20 de Maio de 2012
 
A série sobre Timor é financiada no âmbito do projecto Público+