Carlos do Carmo canta como quem faz surf por cima do piano de Maria João Pires
Carlos do Carmo acredita que muitos o vejam como louco, como alguém que não mede exactamente o que faz, que é guiado por decisões inusitadas, levado por ondas inesperadas do instinto. Uma loucura, acredita, própria de quem se entrega às artes e tenta que o presente não seja mero espelho do passado. "Tenho esta cara que deus me deu, com um ar muito certinho, mas sou completamente passado dos carretos", diz-nos candidamente, sentado em sua casa. Há um prazer claro do fadista em perceber que o seu trajecto é visto não apenas como mais um, mas como elemento de dissonância e de arrojo relativamente à tradição em que se insere.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Carlos do Carmo acredita que muitos o vejam como louco, como alguém que não mede exactamente o que faz, que é guiado por decisões inusitadas, levado por ondas inesperadas do instinto. Uma loucura, acredita, própria de quem se entrega às artes e tenta que o presente não seja mero espelho do passado. "Tenho esta cara que deus me deu, com um ar muito certinho, mas sou completamente passado dos carretos", diz-nos candidamente, sentado em sua casa. Há um prazer claro do fadista em perceber que o seu trajecto é visto não apenas como mais um, mas como elemento de dissonância e de arrojo relativamente à tradição em que se insere.
Esta loucura, entenda-se, não é incapacitante, medicada ou dessintonizada com a realidade. É aquela que vai pedindo licença para entrar quando o fadista se atira a tocar com uma orquestra de sopros numa terra fronteiriça alemã - aconteceu, sob a batuta de Thilo Krassman, há uns anos -, quando inventa discos de fado numa ode a uma Lisboa pós-Revolução descrita por Ary dos Santos (Um Homem na Cidade, 1977), a cidade ainda a acordar de um sono profundo, num espreguiçar lento. Ou quando apresenta à sua editora planos de gravar álbuns com pianistas - primeiro Bernardo Sassetti, agora Maria João Pires - e suspeita que, do outro lado, se quereria ouvir antes um típico disco à guitarra e à viola, sem sobressaltos.
É uma constante da História. A diferença, diz, é que "dantes não tomavam comprimidos para ver se se equilibravam: um era surdo, outro era não sei quê, um batia na tia, outro batia na avó. A gente pega na história destes tipos clássicos que ficaram, em todas as áreas, e são histórias um bocado loucas. Vemos naquele filme do Milos Forman que o Mozart é um bipolar, um ciclotímico. Mas genial. O Lennon era um sujeito especialíssimo. Um dia apareceu todo nu na cama com a senhora japonesa ao lado, e as pessoas diziam ‘este gajo é doido'. Claro que é doido! Não era exibicionismo. Exibicionismo é outra coisa".
Fados de Viena"Isso é tão seguro como eu ir amanhã a Singapura". Esta é a resposta que se imagina a dar a alguém que, logo após a gravação do seu disco em duo com Bernardo Sassetti, visitando as canções-cicatrizes da sua vida, sugerisse que o seu disco seguinte, pouco depois, seria novamente num registo de voz e piano. Mas aconteceu que a mais inesperada das situações se lhe apresentou, irresistível como poucas. Em Linda-a-Velha, onde está sediado o seu Intervalo Grupo de Teatro, o ex-fundador do Teatro Moderno de Lisboa Armando Caldas homenageia anualmente figuras da vida artística portuguesa, perguntando sempre aos visados se gostariam de contar com alguém a abrilhantar musicalmente a cerimónia. Carlos do Carmo já fora chamado a participar nas homenagens a Júlio Pomar ou Carmen Dolores, frequentadores dos seus afectos. Mas ficou boquiaberto quando Caldas lhe contou que a homenageada em 2009, a pianista Maria João Pires, respondeu: "Ah, eu gostava tanto que fosse o Carlos do Carmo". "Fiquei surpreendido porque não tenho convivido com ela ao longo da vida, embora no meu percurso internacional muitas vezes veja quanto ela é um nome sólido mundial na música erudita".
Como a agenda não o recordava de nenhum outro compromisso prévio, aceitou o convite e na noite em questão, perante um auditório cheio, lá foi desfiando os seus fados, entremeados de tiradas humorísticas. "Eu dizia os maiores disparates e ela saltava da cadeira, parecia uma criança, bem-disposta, feliz da vida", lembra. Ao cair do pano, subiram os dois ao palco, mais o mestre de cerimónias António Victorino de Almeida, e o espanto de Carlos do Carmo foi-se prolongando ao ouvir a pianista virar-se para o maestro e dizer: "António, sabes do que gostava? Que tu me fizesses umas músicas de fado para tocar com o Carlos do Carmo, gostava de o acompanhar. Tens aqui os poetas na plateia, poesia não te falta". "Isto não é verdade", beliscou-se o cantor. "Esta senhora é uma solista, não faz este tipo de trabalho". Mas o desafio não foi, afinal, uma simpatia de circunstância e Victorino de Almeida arregaçou as mangas da casaca, os poetas mais ou menos experientados que ali estavam (Nuno Júdice, Fernando Pinto do Amaral, Vasco Graça Moura, entre outros) desataram a juntar palavras e, quando deu por isso, Carlos do Carmo tinha um disco novo à sua espera. "Isto surgiu e alterou até a programação da minha gravadora porque para o ano faço 50 anos de carreira", desabafa. "Mas não sei estar nisto a brincar".
Trabalho, trabalhoA diferença dos mundos de Carlos do Carmo e Maria João Pires fez-se então sentir desde a primeira hora. Para a pianista, o contacto prévio com as notas escritas por Victorino de Almeida não implicava grande trabalho preparatório; para o fadista era colocar o pé em terreno lodoso, onde havia que assinalar antecipadamente as armadilhas. "Tive de me preparar muito bem porque alguns fados não são pêra doce. Há mudanças de tonalidade no ar, sem rede. Trabalhei muito, muito. Tenho uma sessão com os fados gravados em casa que foi o meu elemento de trabalho. Comecei com humildade a aprender, a memorizar". Depois, foi repeti-los até à exaustão - sendo que a exaustão, neste caso, foi sobretudo a da mulher de Carlos do Carmo, "desesperada", brinca ele, de ouvir tanta repetição enquanto o fadista ensaiava de auscultadores, cantando por cima da música, mas cantando por cima do silêncio aos ouvidos de Maria Judite.
As sessões de trabalho a dois, propriamente ditas, foram apenas três. "Fizemos três sessões de trabalho. Gravámos os fados que estão no disco, fez-se uma pequena filmagem enquanto ensaiávamos e tirámos umas quantas fotografias para o booklet. Jantámos, beijinhos e ela voltou para a casa dela". Isto vezes três, tantas quantas as vezes que Carlos do Carmo lhe entregou uma flor, chegado ao estúdio ao início da tarde - "que não é a minha hora mais forte para cantar" - depois de a pianista passar toda a manhã a aquecer as mãos e a preparar-se. O difícil, então, foi encontrar o tom, a forma de a voz se relacionar com o piano. "Esta senhora não está talhada para acompanhar, como o seu currículo o demonstra ao longo da vida. É uma solista presente nas grandes salas de concertos e é uma belíssima executante. Esta coisa de querer comigo gravar fados deve ter sido um esforço gigantesco. Ouvi-a com atenção, e eu que nunca fiz isso na minha vida porque já era tarde para aprender tal desporto, surfei. Esta é a imagem: surfei. Se ela está rigorosamente a tocar aquilo, eu, para não deixar de ser fadista, não posso estar a fazer rigorosamente aquilo, porque então estava a vender a minha alma ao diabo. E tenho de procurar esse grito de liberdade".
Nem todos os temas deste encontro, admite, serão fados, mas outros há que o são, "puros e duros", algo que se comprovará quando os interpretar à guitarra e à viola. Mas os fados de Victorino de Almeida, diz, "estes fados alegres não têm um sabor a fado de revista, mas sim um sabor a cabaret de Viena".
A dívidaEste seu eterno pagamento da dívida que diz ter para com o fado - "deu-me uma vida boa, ajudou-me a construir uma família, deu-me a conhecer o mundo, tive durante muitos anos ua vida desafogada, deu-me imensas alegrias" -, Carlos do Carmo fá-lo no entanto com um arrojo mais aguçado que muitos dos novos fadistas que vão aparecendo a montante e a jusante, e para quem diz que "o quinto disco é o diabo". E o diabo, explica, porque "já não mais espaço para deixar de ser aquilo que se é. Na história do fado anterior à minha geração, fala-se de cinco ou seis pessoas e eu ouvi dezenas e dezenas de pessoas. Tiveram mais sorte? Não, eram os melhores, é a selecção natural. E é isso que acho que o quinto disco vai determinar. O quinto disco é uma imagem. Quem eu não ponho neste campeonato é o Camané. Começou com 11 anos de idade, é da raiz do fado, é um fadista genuíno, com grande musicalidade que pode tranquilamente ir à pop e voltar. Só peço a Deus que me dê saúde e vida porque quero assistir aos quintos discos todos".
Por agora, convoca as energias dos seus 72 anos para a celebração do meio século de carreira em 2013 e manifesta o desejo de seguir a mãe num abandono dos palcos antes de "deixar uma imagem de decadência". Mas confessa que chegou igualmente o tempo para "uma outra coisa fundamental: ter uma grande disponibilidade para lutar". "Vai ser preciso outra vez uma grande luta política. Eu não estive de folga, nunca se está de folga. Mas acho que ainda tenho essa missão também, da participação cívica. Há tudo isto concreto à nossa volta: a fome, o desemprego, esta tristeza, esta ansiedade, esta angústia. É muito injusto fazer-se isto a este povo. Mas não brinquem que este povo é do caraças. Estejam atentos".