O cinema-surf de Joaquim Sapinho

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Deste Lado da Ressurreição é a primeira ficção de Joaquim Sapinho em nove anos, desde "A Mulher Polícia", de 2003 ENRIC VIVES-RUBIO

“Estas coisas aparentemente distantes, o surf e os monges, podem juntar-se. Essas pessoas do surf são todas eremitas e contemplativas”, diz Joaquim Sapinho.

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“Estas coisas aparentemente distantes, o surf e os monges, podem juntar-se. Essas pessoas do surf são todas eremitas e contemplativas”, diz Joaquim Sapinho.

Deste Lado da Ressurreição é a primeira ficção de Joaquim Sapinho em nove anos, desde A Mulher Polícia, de 2003. Mas, como ele conta, é um filme que começou a nascer - em esboço - logo a seguir a Corte de Cabelo (1996), o seu filme do breakthrough. É um realizador que precisa destas longas gestações, elas tornam-se - como no seu documentário Diários da Bósnia, de 2005 - um alimento do filme, a sua matéria. E porque fazer cinema é "entregar-se a algo" que, depois, não se sabe "como é que se pára". Um mergulho, como literalmente é o caso de Deste Lado da Ressurreição, experiência sensorial com a câmara entre o mar dos surfistas e a clausura dos monges.

Porquê o surf, e porquê agora?

Se eu tiver um sítio é a praia. Tenho duas praias, a do Guincho e a baía de São Martinho do Porto. Uma vez, nas marés vivas, fui com um amigo para a barra de São Martinho do Porto fazer surf. O mar começou a puxar-nos e achámos que íamos morrer. Quando aceitei que ia morrer, acalmei. E comecei a remar, levei para aí cinco horas para regressar a terra. É daquelas coisas secretas, os meus pais nunca souberam, foi uma coisa entre rapazes. Foi um paraíso monstruoso. Onde é que paras, na intensidade e na felicidade? Ficamos entregues a algo e como é que se pára? O cinema é um vício assim, onde é que se pára?

O meu primeiro filme, de escola, é na praia. Há aqui um raccord profundo entre esse filme que era em São Martinho do Porto e este que é no Guincho. Porquê agora? É um problema do mar. Tenho uma atracção pelo mar, não consigo estar de costas para o mar. É como se tivesse sentido que estava exilado do meu sítio desde o filme da escola. Por outro lado, acho que os surfistas são pessoas que estão em ruptura com a sociedade, não conseguem viver. A minha aproximação a eles é também por não conseguir viver.

Acho que os meus filmes vêm dos sítios. Estava sempre a ir ao Guincho, ao fim de dois anos de ir para o Guincho comecei a ver o Pedro Sousa [o intérprete]. Tem que ver essencialmente com a perturbação. O convento, da mesma maneira, é outro limite. Por alguma razão os surfistas gostavam de ir lá dormir. Uma vez entrei lá sozinho nas ruínas e tive uma visão com os monges. Aquelas coisas incríveis de Sintra: desce uma nuvem sobre o claustro e fico a levitar e sinto aquelas pessoas ali... Estas coisas aparentemente distantes, o surf e os monges, podem juntar-se. Essas pessoas do surf são todas eremitas e contemplativas. O Pedro levanta-se às seis da manhã e fica à espera de uma onda até à noite. Ao estar com ele, percebi que ele só pensava na morte. É como se as pessoas se sentissem só na solidão. E o convento e o surf é o mundo dos homens. É a beleza do corpo dos homens, é a vivência que só pode ser do mundo dos homens. Durante anos filmava para olhar para as raparigas, mas com o tempo já não consigo fazer assim. O cinema para mim já não é estar a olhar, é estar com aquelas pessoas ali.

Quando é que começou a escrever Deste Lado da Ressurreição?

As primeiras versões são de 1998, logo a seguir a Corte de Cabelo. Cheguei a filmar, antes do Pedro, com uma pessoa e depois com outra. Mas num caso e noutro o filme morria. O primeiro não era surfista, o segundo era mas também não dava.

"Não dava" quer dizer o quê?

Não consigo filmar com uma pessoa que não tenha paciência para estar ali. Ora o Pedro, por ser um grande surfista, tem uma infinita paciência. Aceita que não se sabe que filme se vai fazer. As pessoas pensam que quando se leva tempo é porque não se tem disciplina. Pelo contrário, significa que se tem uma disciplina infinita. O Pedro faz surf desde os seis, sete anos, e levanta-se às seis da manhã, isso parece já cinema. Encontrá-lo foi uma espécie de felicidade. Acho que ele passou o surf para o filme. Podíamos estar dois meses a fazer um plano, e ele nunca me perguntava porque é que estávamos a fazer assim.

E porque é que demoravam dois meses a fazer um plano?

Acho que tem que ver com a luz. O filme é um relógio de sol, é preciso encontrar a luz de cada plano. Nós tínhamos um problema, o sol nasce no ponto oposto da costa e põe-se no mar. Isto é uma submissão absoluta. Estás ali e não mandas no sol. A partir daqui, se estamos com pessoas que compreendem as forças que não dominam e se submetem, como ao mar... No cinema é o contrário, planifica-se tudo... Tivemos sete operadores de câmara para as cenas dentro de água e foi tudo para o lixo, a câmara não funcionava, os planos não funcionavam. Depois, descobrimos umas imagens da Austrália, de um tipo que filmou uma onda. Descobrimos que era português, milagre absoluto. Fomos à procura dele e, para além de ser surfista, era também engenheiro. Desenhou uma câmara. Fizemos três versões da caixa da câmara, finalmente estávamos dentro de água. Um esplendor quando as primeiras imagens funcionaram. Eu não queria um surf fora de água, eu queria um surf dentro de água e debaixo de água. Queria que fosse como um sonho. Não ia filmar o surf de terra. Onde colocar a câmara?

Mas dou um exemplo ao contrário, para se ver que isto tem uma ordem incompreensível: as cenas no convento eram as que eu e o Pedro tínhamos mais medo de filmar. Os anos passaram, deixámos para o fim...

... não é "as semanas ou os meses passavam", é "os anos passavam"...

Os anos passavam porque é tão difícil... Um dia, eu e o Pedro dizemos um ao outro, "é amanhã". E ele entra para o convento pela primeira vez e diz: "Acho que já percebi tudo." Foi só entrar e fazer as cenas. Agora, como é que ele sabe o que é uma mortificação? Não sei.

As cenas da mortificação são um espelho das cenas de surf...

Sim, como já tinha o surf, ele pensou que era o mesmo, que era uma questão de corpo. As celas diziam-lhe o que tinha de fazer, que tinha de se pôr de joelhos, que tinha de se virar.

Sendo as cenas do surf e da mortificação um eco ou repetição, as primeiras incluem o espectador de outra forma, porque o espectador leva com a água...

Isso também tem que ver com o som. O som do filme foi todo feito, e levou anos. Consegue-se que o som abrace o espectador. Com o convento tentou-se um zumbido cósmico. Há lá um sítio em que há uma corrente de ar, e a unidade das cenas do convento foi quando descobrimos esse zumbido.

Na verdade, o filme, a história, não depende do encontro com as pessoas, está na sua cabeça...

Mas não haveria filme sem o Pedro Sousa. Eu leio livros desde que aprendi a ler. Tinha um acordo com o meu pai: ele era muito austero, mas não havia limites para comprar livros. Tenho dez mil livros. Para alguém com tantos livros, não me interessa nada a literatura, o que me interessa é encontrar pessoas. Se não fosse o cinema, não teria encontrado ninguém na vida. Para mim, o cinema é a felicidade, porque estou com outras pessoas. Encontrar o Pedro Sousa não é uma coisa qualquer.

Eu preciso mesmo de uma caravana. Agora, se a caravana não vem também ao meu encontro, não consigo jogar o jogo. O filme está todo na minha cabeça, mas se eu não o encontrar fico deprimido. Preciso de acreditar que as coisas existem. Gosto de filmar o que me aparece, que se manifesta. Como imaginar que o Pedro, sendo tão novo, iria perceber tudo sobre a morte? É como no Janela Indiscreta [Alfred Hitchcock]. Ele [James Stewart] está ali a observar e estão os dois muito separados. Mas há um dia em que ela [Grace Kelly] entra na história dele. Isso é o amor. E é o cinema. Não dá para ser só o que a pessoa fantasia. Isso é muito solitário e deprimente. Existe mundo, existe vida. A pessoa não é só um doente mental.

E a vida muda nesse momento?

Muda porque é uma felicidade. Andas, até aí, a bater com a cabeça nas paredes e depois aparece o Pedro, que é meu amigo. Sinto-me próximo do Lewis Carrol, um infinito desejo e um infinito pudor. O que é bom, no caso do Pedro, é que não há interrupção com o facto de o filme ter acabado. Ele vai entrar no meu próximo filme. Ainda ontem estive no Guincho, começámos a filmar, sem combinar, um plano que não consegui fazer para o Deste Lado da Ressurreição, ele debruçado sobre umas rochas, porque não tinha conseguido encontrar a luz nem a inclinação da cabeça. E estivemos duas horas a filmar. Sei que não posso montar já esse plano no filme, mas... O que é fascinante no Pedro é que ele não pergunta o que estou a fazer, eu filmo, ele gosta que eu o filme, filmamos. É como isto do surf: a pessoa está ali nove horas e vai fazer só duas ondas. Mas não se chateia, nem chateia os outros, é outra maneira de viver, faz uma onda em nove horas e ninguém viu. O cinema, como tenho estado a fazer, também é assim: ninguém viu, ninguém vê. Mas não troco isto por nada, não sei viver de outra maneira.

Sobre o tempo que demora a fazer os filmes... isso cria uma expectativa grande. Tem de ser sempre assim?

Cada vez mando menos e percebo menos, não estou a ver como fica mais fácil. A dimensão temporal que está na estrutura dos meus filmes cria uma grande dificuldade para os fazer. Neste, por exemplo, o filme é para o pai. Mas não quero falar do pai directamente, porque não consigo. E depois quero uma caravana, mas será que alguém percebe que a caravana é do pai? E depois quero a caravana dentro de uma ruína, porque isso faz raccord com as ruínas do convento... Sinto cada vez mais que o cinema é uma coisa longe da comunicação e que tem que ver com a comunhão. Eu não sei qual a informação que estou a dar, mas gostava de comunicar sensações que pudessem levar a uma partilha de sentimentos. A dificuldade de fazer os filmes tem que ver com isto, com as dificuldades de filmar. É uma maneira de filmar que se põe problemas que não sabe como resolvê-los. O que me interessava é que a personagem não soubesse o que é a fé. A vivência do corpo dele no mar estaria numa direcção ligada à fé, mas ele não sabe isso e eu também não. Estamos deste lado da ressurreição. A minha falta de autoridade em relação ao filme permite-me que o filme encontre certos caminhos.

Tem-se a sensação de que não são as personagens que falam, mas os planos. Ou os locais, o mar e a serra, que falam uns com os outros. Há casos de "montagem paralela" - por exemplo, quando mãe e filha falam no Guincho e o irmão/filho está no alto do convento, com o mar em fundo - mas na verdade as cenas não estão montadas para progredirem em direcção a um resultado; é como se lhes bastasse estarem juntos, contíguos, sem um acrescento de informação ou resultado....

Os planos são contíguos não pela acção mas pelo encontro. O que diz é muito profundo e comovente para mim. Eu até há vezes em que quero que as personagens se separem. Junto os planos mas as personagens separam-se, aquela mãe e aquele filho nunca se podem encontrar. Ou terão de se encontrar de outra maneira, que não seja a do real.

Essa ideia de junção/separação funciona para o filme todo. É essa a relação entre a imagem e o som...

O som é todo feito. Para mim, a banda de imagem existe separada do som. É uma grande chatice o som ilustrar a imagem.

Foi Jean Renoir que disse que quando a imagem diz "eu amo-te" o som deve dizer "eu odeio-te".

Ou então, gosto na pintura de um azul sobre azul, mas outro azul, trabalhando as nuances infinitamente. No meu filme, o som tem uma materialidade assustadora, de escultura. É como se eu fizesse um som que tivesse o peso de uma escultura.

Uma curiosidade: viu filmes do surf como Ruptura Explosiva, de Kathryn Bigelow, ou Big Wednesday, de John Milius?

Os filmes não me interessaram, mas as fotografias do surf, dos 30 e 40, sim... o remar, não sei se sabem, mas eles faziam-no de joelhos... essas fotos são uma coisa extraordinária. Eles estavam a inventar o surf, eu senti que estava a inventar a forma de filmar o surf, com aquela coisa das câmaras - no convento também foi inventar, porque não queria luz e descobri nos quadros do Latour que ele precisava de velas com duas mechas, e descobri lotes de velas com duas mechas e derretemos esse lote no convento. Todo o filme foi inventar como filmar.

O cinema mudo é o cinema. Este meu trabalho do som seria o de um cineasta do mudo. Sinto-me um cineasta do mudo que depende totalmente do som. Na verdade, tenho duas bandas de imagem.

Os cineastas do mudo foram aqueles para quem era mais evidente que a imagem e o som são coisas separadas...

Esta coisa de termos perdido uma câmara, o facto de a câmara raspar nas paredes do convento, nas paredes, no mar, é um filmar muito perto do corpo... sinto que há uma tal intensidade da possibilidade de estar a filmar, que isso por si é abrasivo. Como um fósforo.