Contra o conformismo, por um teatro novo
O que se passou com o teatro de Luís Miguel Cintra depois de Miserere (2010, Teatro Nacional D. Maria II), marcou de tal modo o que veio a seguir que podemos falar de uma refundação do seu próprio discurso. Ou, se quisermos complicar, do modo como o encenador, e desde então cada vez mais autor, passou a olhar para o que diziam ser o seu discurso. Os Desastres do Amor, que se estreou, talvez não por acaso, em Dia de Finados (até 25 Novembro, Teatro do Bairro Alto, Lisboa), é uma colagem a partir de textos do filósofo e dramaturgo setecentista Pierre de Marivaux, que coloca em cena valores e princípios como o amor, a virtude, o escrúpulo, a fortuna, a mentira, naquilo que parece ser um "pequeno sarau para entreter reformados" - e a ideia veio mesmo de um desses momentos, em Cabo Verde, com hordas de turistas a serem alimentadas com exotismo programático e conveniente distância sanitária da realidade - e é, na verdade, "o fim da civilização ou a chegada de um novo mundo que ainda não conhecemos e ainda chamamos barbárie".
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O que se passou com o teatro de Luís Miguel Cintra depois de Miserere (2010, Teatro Nacional D. Maria II), marcou de tal modo o que veio a seguir que podemos falar de uma refundação do seu próprio discurso. Ou, se quisermos complicar, do modo como o encenador, e desde então cada vez mais autor, passou a olhar para o que diziam ser o seu discurso. Os Desastres do Amor, que se estreou, talvez não por acaso, em Dia de Finados (até 25 Novembro, Teatro do Bairro Alto, Lisboa), é uma colagem a partir de textos do filósofo e dramaturgo setecentista Pierre de Marivaux, que coloca em cena valores e princípios como o amor, a virtude, o escrúpulo, a fortuna, a mentira, naquilo que parece ser um "pequeno sarau para entreter reformados" - e a ideia veio mesmo de um desses momentos, em Cabo Verde, com hordas de turistas a serem alimentadas com exotismo programático e conveniente distância sanitária da realidade - e é, na verdade, "o fim da civilização ou a chegada de um novo mundo que ainda não conhecemos e ainda chamamos barbárie".
O que quer que seja que aí venha, para Luís Miguel Cintra, como para Marivaux no século XVII, importa ler, revelar, acreditar de novo num "delicado prazer de descobrir os meandros da alma humana, um tal prazer e tudo entender, que dá a volta, e volta a trazer ao teatro a alegria".
Como explica Cintra, o regresso a Marivaux faz-se 38 anos depois de com ele ter estado uma única vez, em 1974, no início do Teatro da Cornucópia, em A Ilha dos Escravos e A Herança, encenações de Jorge Silva Melo, co-fundador da companhia, que então escrevia assustado sobre "a afirmatividade que o palco a tudo dá". Com o tempo, isso que se constituiu como a verdade e que fez da Cornucópia a referência do teatro nacional, faz hoje com que Luís Miguel Cintra queira estar atento: "Comecei a sentir que a evolução da sociedade me começava a tolher, que me queria tramar."
Este é um teatro de resistência feito por quem, à partida, não precisaria de o fazer. Mas o quer dizer a palavra "sobreviver", pergunta Cintra no texto que acompanha o espectáculo (no site da companhia), verdadeira carta ao público e aos artistas: "Depende do que viver significa. Se para muitos sobreviver é apenas fazer o que é preciso para comer, para um artista que sente deveres para com a sociedade, sobreviver significa não deixar de falar com os outros, não deixar de inventar, ir adiante."
Teatro de inconformado, portanto, mais do que inconformista, este Os Desastres do Amor. Peça feita de escolhos, de coisas que ficam, das representações pagãs de Pasolini, dos quadros com corpos assustados de Fragonard, com músicas que cruzam o sentimentalismo de Nino Rota com a anestesia da música brasileira. Peça feita com amigos porque "há ainda espaços de trabalho em que isso existe e muitos mais existiriam se a burocracia, que não sabe o que é a felicidade nem o prazer, não os fosse matando até morrer ela de vaidade, agarrada ao que não levará consigo". Peça feita para amigos, que é o que se chama a quem quiser recusar uma relação com o teatro igual à da televisão, "normalizada, banal, europeizada".
A memória de outros espectáculos preenche o palco, feito de avessos de teatros, com uma gestão cada vez mais mística de Cristina Reis, que faz da cena um encontro de metáforas, tal como os actores: Rita Blanco, ela que foi a Alma perdida de Miserere, o corpo estranho, como já o havia sido em Sangue no Pescoço do Gato, de Fassbinder (2007); Teresa Madruga, que regressa agora sob a forma de madrinha, uma espécie de doutora, depois de ter sido, ao longo dos anos 1980, rosto das profundas transformações que a Cornucópia operava nos textos de Vicente, Lorca, Vega, Pirandello e Shakespeare; e sobretudo Cintra, velho de saber, jocoso, que chama à colação as suas próprias memórias "para representar um mundo decadente", a perda e o esquecimento. Que o perdoem, pede. Mas o que assalta Cintra, nesta peça que é um ponto da situação da "consequência do esvaziamento" que hoje vivemos, é o mesmo que levou Marivaux a estes textos tão perturbadores: "Nós, a quem o universo agitado desde há muito devia ter transmitido uma experiência tão vasta e tão profunda, que uso fizemos dessa prodigiosa colecção de ideias que, no seu entender, partilhámos por herança?"
E, por isso, quando nos fala de Os Desastres do Amor, Cintra começa sempre as suas frases com intenções: "eu desejo", "eu procurei", "hoje, acho". Repare-se na última palavra usada por Cintra na peça: "Fuck." Como Kubrick, em De Olhos bem Fechados, coincidência dir-nos-á o encenador, como se a palavra, uma "marivaudage", ficasse entre grito de resistência e desabafo sentido. "Acredito que o futuro não será só barbárie. Mas a Cultura ajudará a que nós disso tenhamos consciência", escreve o encenador. Se isto não é um manifesto de uma alma nova, não andará longe.