Por entre a chuva de uma Abelha

A sagacidade da interpretação do realizador torna "Uma Abelha na Chuva" um filme obrigatório para qualquer estudante de Cinema e de Literatura

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"Uma Abelha na Chuva", adaptação cinematográfica do romance de Carlos de Oliveira por Fernando Lopes, foi a mola impulsionadora de uma reflexão pessoal sobre a capacidade de transportar para o ecrã sinestesias, impressões e até recriações de uma obra literária.

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"Uma Abelha na Chuva", adaptação cinematográfica do romance de Carlos de Oliveira por Fernando Lopes, foi a mola impulsionadora de uma reflexão pessoal sobre a capacidade de transportar para o ecrã sinestesias, impressões e até recriações de uma obra literária.

 

 

Este filme, aclamado pelo seu carácter de ruptura com o modelo instituído (dos filmes portugueses das décadas de 50 e 60, com uma realização francamente básica), mais do que o apelo português à valorização da "Nouvelle Vague", vocifera directamente ao espectador. É necessária uma atenção especial, redobrada. Aos planos abertos, às repetições (a conversa entre o casal, repetida apenas com o som angustiante de um metrónomo em ritmo quaternário) e aos "loops"  (principalmente o do protagonista, à porta do quarto, que repete o seu percurso, qual animal preso e desorientado). A tensão hípico-erótica que percorre o filme é asfixiante, desde o resfolegar dos cavalos na cena das rédeas, na qual a protagonista, assombrada pelo desejo, bate violentamente nos animais, num ritmo alucinante. 

 

O realismo é magistralmente exasperante, deixando o espectador à espera de uma carruagem que ouve e não vê.

  

A magia do realizador é ainda maior quando sabemos das dificuldades financeiras por detrás do filme.

  

Tudo o que se vê neste "Uma Abelha na Chuva" mais não é do que o conjunto de sensações que o livro despertou em Fernando Lopes. A sua interpretação. Como o mais comum dos leitores. 

 

 

Cada texto lido desperta em nós as mesmas reacções. Também nós paramos, por vezes, para reler uma passagem ou um capítulo. Também nós repetimos mentalmente a nossa imagem de um momento marcante no livro. Nem sempre as personagens dirão o mesmo na nossa recriação da obra. Os movimentos, tão diferenciados quanto o são os leitores, transformam o texto. 

 

E assim criamos um novo texto, dentro do texto. Paro. Lembro-me neste momento de uma passagem de uma crónica de Lobo Antunes que corrobora esta ideia. Mais: a consciência do próprio autor desta independência do texto, da obra, da Arte. A vantagem da Internet é que posso procurar e partilhar essa mesma passagem: "Vejo os livros libertos de mim, com uma lógica interna que é apenas sua, possuindo uma temperatura e uma densidade que escapam aos meus mecanismos lógicos, aos meus desejos, à minha vontade. Afigura-se-me óbvio que não são meus e, para ser inteiramente honesto, deviam ser publicados sem nome de autor."

 

Esta consciencialização da importância do leitor, tão patente nos escritores europeus da segunda metade do século passado (basta relembrar o início de "Se numa noite de Inverno um viajante" de Italo Calvino), foi a base para as adaptações livres que o cinema fez de algumas obras e da qual "Uma Abelha na Chuva" é o expoente, no panorama nacional.

 

 As influências francesas e italianas são bastante evidentes no filme, mas a sagacidade da interpretação do realizador torna "Uma Abelha" um filme obrigatório para qualquer estudante de Cinema e de Literatura.