Navios para fazer recife no Alvor cedidos a custo zero pela Marinha
A frota é composta pela corveta Oliveira e Carmo, o navio-patrulha Zambeze, o navio oceanográfico Almeida Carvalho e a fragata Hermenegildo Capelo. É a primeira vez no país que serão afundados navios militares "reformados" para visitas de mergulho. Foram cedidos de forma directa e gratuita para este fim.
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A frota é composta pela corveta Oliveira e Carmo, o navio-patrulha Zambeze, o navio oceanográfico Almeida Carvalho e a fragata Hermenegildo Capelo. É a primeira vez no país que serão afundados navios militares "reformados" para visitas de mergulho. Foram cedidos de forma directa e gratuita para este fim.
As duas primeiras embarcações estão há alguns meses em trabalho de descontaminação no porto de Portimão. No final de Setembro, o primeiro será afundado perto de Alvor e os outros segui-lo-ão.
O Governo entregou os navios à Câmara Municipal de Portimão, que recebeu, por sua vez, a garantia de que todas as responsabilidades operacionais e financeiras ficariam com o homem que concebeu o projecto: Luís Sá Couto. Este gestor, que foi responsável pela Accenture Portugal nos anos 90, é conhecido por ser amigo de Nuno Vasconcelos e Rafael Mora, líderes da Ongoing, e com quem trabalhou na altura na consultora então Andersen. É também padrinho de casamento de Mora.
É através da sua empresa de mergulho, a Subnauta, que Sá Couto promove o projecto ao qual deu o nome de Ocean Revival. Está orçado em cerca de 2,5 milhões de euros, e em vez do financiamento exclusivamente privado anunciado antes da crise, espera por cerca de um milhão de euros de fundos públicos europeus. Será a primeira vez que verbas da UE apoiarão um projecto destes no país, caso seja aprovado.
A lei que está na base desta doação data de 1994 e permite que navios abatidos à lista da Armada sejam cedidos directa, gratuitamente e sem custos para o Estado. Com base nesta lei e em pareceres pedidos aos organismos do ambiente, turismo e património, o então secretário de Estado da Defesa Marcos Perestrello e o ex-ministro da tutela Augusto Santos Silva deram luz verde ao projecto, em 2010.
Santos Silva, em despacho de 12 de Maio desse ano, invocava "razões de interesse público" para a entrega dos navios ao município: criação de um "museu subaquático" com "acesso livre" dos mergulhadores, sublinhando o seu interesse para o "turismo subaquático, cultura, preservação histórica, protecção da vida marinha e da economia".
Luís Sá Couto diz que o país não atraiu até agora turistas de mergulho e que as embarcações afundadas ao largo da costa algarvia ao longo dos séculos "não são barcos, são vestígios e os navios militares inteiros é que despertam a atenção". E é essa a razão por que promove a ideia há quase cinco anos.
Os organismos oficiais escusam-se a fazer contas. Mas segundo um especialista contactado pelo PÚBLICO, a venda dos quatro navios nas condições em que se encontravam poderia render cerca de dois milhões de euros, face às actuais cotações do mercado de sucata. No entanto, a este valor teria de ser subtraído o custo da descontaminação e preparação das embarcações para reutilização do metal, um processo "relativamente caro". Admite, assim, que a receita final líquida "seria menor e daria algum trabalho". O custo estimado para fazer o recife artificial é de dois milhões e meio de euros.
Militares que acompanharam o processo sustentam que a venda daria uma "receita irrisória" e que "o interesse público" da opção prevaleceu como "benefício superior". A Defesa não comenta valores, embora refira ao PÚBLICO que tinha as duas opções de alienação e que depois da primeira doação, já cedeu também os submarinos Barracuda a Almada e o Delfim a Viana do Castelo, para fins museológicos mas não para afundamento.
O protocolo que a Câmara Municipal de Portimão assinou em Setembro de 2011 transfere para a Musubmar, uma associação para promoção do turismo subaquático, todas as responsabilidades financeiras e operacionais do projecto. A associação é formada até agora apenas pelo município e pela Subnauta, a empresa do antigo gestor da Accenture. A autarquia e Sá Couto garantem haver neste momento duas entidades interessadas em entrar para a associação, mas não avançam nomes.
Na altura da criação da Musubmar, o assunto não foi pacífico. Na reunião de Câmara que a aprovou, em Julho de 2011, os dois vereadores do PSD, José Dias e Olga Brito, votaram contra, queixando-se de a associação ser mais uma "parceria público-privada encapotada" e de reforçar a "oligarquia empresarial do concelho".
Com um endividamento crítico, o município remete para Sá Couto todos os encargos. Com a crise, "as coisas complicaram-se", admite o responsável da Subnauta, pelo que foi acrescentado ao projecto uma candidatura a fundos europeus, da qual espera entre 40 a 50% dos apoios. Vai lançar também um plano de crowdfunding, um meio de financiamento colaborativo, normalmente por Internet. Sá Couto garante que privados (que não quer identificar) garantiram até agora meio milhão de euros e que quer agora juntar ao projecto a instalação, no hospital do Barlavento, de uma câmara hiperbárica, um equipamento que ajuda mergulhadores e doentes.
Os promotores mostram-se confiantes que conseguirão a verba necessária. O termo de transferência, de Agosto de 2011, diz que, àquela data, estavam "garantidos os fundos" para o afundamento do ex-Zambeze e o ex-Oliveira e Carmo e que os outros dois seriam transferidos, de facto, entre nove e 15 meses depois. A Câmara garante que o serão "nos próximos dias". O contrato prevê que tal não aconteça se o dinheiro não chegar.
O gabinete do presidente da Câmara, Manuel da Luz, valoriza a Musubmar por ter "como primeiro e grande objectivo a criação de um sítio de mergulho de excepção, colocando o Algarve na rota dos melhores sítios de mergulho do mundo, permitindo ao mesmo tempo gerar um novo tipo de turismo de baixa temporada, de nível médio alto". Espera ainda que 89 mil turistas subaquáticos cheguem anualmente ao Algarve, entre 8 a 10 anos após a instalação do parque. Ao fim da década, prevê mais de 600 mil turistas subaquáticos, mais de três mil postos de trabalho directos e indirectos e proveitos no sector hoteleiro superiores a 100 milhões de euros.
Questionado há algumas semanas sobre este projecto, o Ministério da Defesa cita a lei para explicar a doação. Já o termo de transferência da propriedade dos navios dá à Marinha o direito de vender em hasta pública os que, entretanto, "apresentem risco de afundamento no local" ou risco de tal acontecer pelo caminho até Portimão.
A Liga para a Protecção da Natureza (LPN) não acredita no impacto económico do projecto, por considerar que a água daquela zona da costa algarvia tem "visibilidade reduzida" e que isso limitará o mergulho a pessoas experientes, para verem navios entre 20 a 30 metros de profundidade.
Ambientalistas criticam recife artificialOs militares, algumas grandes empresas e os praticantes de mergulho defendem-nos, os ambientalistas estão contra. Para uns, os recifes artificiais criados com velhos barcos, aviões, tanques, vagões de comboios e plataformas petrolíferas são pontos de atracção turística, e ainda mais se se localizarem em águas quentes e de boa visibilidade. São também pontos de criação de vida, afirmam.
Para outros, estes destinos rápidos de sucata criaram um problema ambiental que faz do mar um caixote de lixo sem custos para os poluidores. Num passado recente, chegaram a ser autorizados afundamentos de material por descontaminar e mantidas substâncias tóxicas que entram na cadeia alimentar. No caso português, garante-se que essas substâncias serão retiradas dos navios antes de serem afundados. Mas para a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) isso não chega.
Na sua oposição ao projecto para a costa algarvia, a LPN denuncia que a legislação portuguesa ainda não obriga à avaliação de impacto ambiental de projectos em meio marinho nem à sua discussão pública, ao contrário de projectos para a orla costeira. A organização questiona o facto de o buraco legal ainda persistir "quando Portugal tem uma das maiores zonas económicas exclusivas do mundo" e pede que a avaliação seja feita, mesmo assim. Sem ela, frisa, "basta um simples licenciamento para se fazer o que se quiser". E acrescenta: "A natureza deste projecto é tal que deveria ter sido sujeito a discussão pública".
A organização ambientalista, presidida pela bióloga marinha Alexandra Cunha discorda dos argumentos de benefício ambiental e económico e tem contactado organismos oficiais a alertar para os riscos. No parecer que lhes enviou, a LPN refere que "não está provado que a criação de recifes artificiais aumente a densidade da fauna e flora marinhas nem que promova a biodiversidade marinha". Por outro lado, defende que o desmantelamento dos navios para reciclar o metal seria economicamente mais sustentável e daria trabalho aos estaleiros nacionais.
Foi o que propôs directamente aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, até agora sem resultados. A ideia era acompanhar o movimento internacional crescente de uma "indústria naval verde" (green shipping). "Seria uma óptima iniciativa para a economia do mar em Portugal", defende Alexandra Cunha, para quem afundar navios de guerra para efeitos recreativos vai contra directivas europeias, a ética ambiental e a conservação da natureza.
O promotor do projecto, Luís Sá Couto, garante que respeita as regras ambientais e que terá uma monitorização ambiental por seis anos, a cargo do Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB).
A segurança e afundamento dos navios estão a cargo de uma consultora do Canadá, a Canadian Artificial Reef (CAR), especializada neste tipo de trabalho. Jay Straith, presidente da CAR, garante que as substâncias tóxicas serão retiradas antes do afundamento, nomeadamente, os PCB, hidrocarbonetos e o amianto, e que o projecto, depois de concluído, "será uma oportunidade única".
O trabalho de remoção dos materiais tóxicos está a ser executado pela Naval Trading, no porto de Portimão. O afundamento será feito com explosivos especiais, que deverão chegar em Setembro dos EUA, e instalados pela Marinha portuguesa.
Um país onde se sente a pressão contra este tipo de solução são os EUA. A administração Obama está a recuar numa prática de décadas que fez do país o maior poluidor dos mares. Fomenta agora a reciclagem de sucata militar, criando emprego e uma actividade mais amiga do ambiente.
No ano passado, o relatório da Rede de Acção de Basileia (BAN), uma organização não governamental que vigia a aplicação da Convenção de Basileia, das Nações Unidas, de prevenção e controlo do despejo de lixo tóxico, lançou mais alertas. Segundo esta ONG, acumulam-se também evidências sobre substâncias tóxicas que os antigos equipamentos estão a transmitir à cadeia alimentar, como os bifenilos policlorados (PCB) e metais pesados, com risco para a saúde humana, nas décadas em que o controlo ambiental esteve ausente.
E nas contas da BAN, os EUA despejaram na década passada, 600 mil toneladas de aço, alumínio e cobre recicláveis no mar, que teriam rendido 600 milhões de dólares no mercado de matérias-primas e criado 20 mil empregos a prazo, caso tivessem ido para reciclagem.