Nasser Ali decide morrer
Não é preciso muito para perceber que Marjane Satrapi, a aclamadíssima artista gráfica de Persépolis, e o seu cúmplice Vincent Paronnaud têm um olhar de cineasta. É ver como Galinha com Ameixas, segunda longa-metragem da dupla, não podia estar mais longe da primeira, substituindo a animação de Persépolis pela imagem real com actores de nome (Mathieu Amalric, Chiara Mastroianni, Isabella Rossellini, Maria de Medeiros); mas são o seu olhar e a sua abordagem que continuam a vir ao de cima e, sobretudo, esse olhar não se perde na transferência de formatos, ganhando antes um fôlego cinematográfico que não seria evidente.
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Não é preciso muito para perceber que Marjane Satrapi, a aclamadíssima artista gráfica de Persépolis, e o seu cúmplice Vincent Paronnaud têm um olhar de cineasta. É ver como Galinha com Ameixas, segunda longa-metragem da dupla, não podia estar mais longe da primeira, substituindo a animação de Persépolis pela imagem real com actores de nome (Mathieu Amalric, Chiara Mastroianni, Isabella Rossellini, Maria de Medeiros); mas são o seu olhar e a sua abordagem que continuam a vir ao de cima e, sobretudo, esse olhar não se perde na transferência de formatos, ganhando antes um fôlego cinematográfico que não seria evidente.
Sim, Galinha com Ameixas é de novo uma adaptação ao cinema uma novela gráfica de Marjane (já não narrando a sua própria experiência no Irão pós-revolução, antes inspirando-se na história de um tio seu); sim, a dupla continua a trabalhar na estética do conto persa, o fumo do cigarro continua a ser um elemento visual importante (razão mais que suficiente para os fumadores continuarem a ter esperança). Sim, na passagem da BD para a imagem real, Galinha com Ameixas escorrega pontualmente para um tom satírico um pouco forçado, para um formalismo um pouco carregado, para uma sensação de inconsequência tacteante (nem sempre o que resulta no papel funciona em grande écrã). Mas, ao mesmo tempo, sente-se uma vontade de correr riscos, de não ficar quieto nem de repetir o que já foi feito, que fica muito bem a Marjane e Vincent. E sente-se igualmente um fôlego romanesco, de um romantismo grandiosamente fora de moda, que resgata quaisquer fraquezas que o filme possa ter.
Lentamente desenrolando os pergaminhos que, na Teerão de finais dos anos 1950, levam um músico aclamado mundialmente a suicidar-se, num duplo movimento que vê a história avançar ao mesmo tempo em direcção ao futuro e de regresso ao passado, Marjane e Vincent vão revelando aos poucos os motivos para Nasser Ali desejar a morte tão ardentemente, numa série de encadeados desequilibrados mas impecavelmente sinalizados, transportados pela performance sublime de Mathieu Amalric, actor maior que parece não ser capaz de dar um passo em falso. Viremos a saber que, como diz o mestre de Nasser Ali, é através da arte que compreendemos a vida, e que o instrumento apenas é um modo de deixar a luz entrar e iluminar o que se vive.
Está-se a falar de música, sim, mas também de cinema e de muitas outras coisas. E quando Galinha com Ameixas atinge os seus últimos 15 minutos, quando a última peça do quebra-cabeças é colocada, o quadro ganha de repente todo o seu sentido e o filme ganha um impacto emocional insuspeito que justifica e compensa num instante todos os escorregões ou momentos desastrados e confirma que está aqui um olhar de cinema, um gosto de cineasta, a trabalhar. Persépolis não foi um fogacho, há cinema em Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, e há muito a recomendar nesta Galinha com Ameixas que não é apenas exótica mas também sedutora.