Manjares de bordo incluíam sapatos e ratos
Por vezes o tormento começava logo em terra, conta o arqueólogo naval Adolfo Silveira Martins: para completar as tripulações, as autoridades chegavam a fechar a cidade de Lisboa.
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Por vezes o tormento começava logo em terra, conta o arqueólogo naval Adolfo Silveira Martins: para completar as tripulações, as autoridades chegavam a fechar a cidade de Lisboa.
Quando alcoólicos e sem-abrigo acordavam do seu torpor já tinham sido embarcados. Como a taxa de sobrevivência a bordo não era elevada, nunca sabiam se algum dia voltariam a pisar terra firme.Frequentes, os naufrágios ficavam muitas vezes a dever-se quer à sobrelotação de carga e passageiros dos navios, quer à corrupção existente no sector da construção naval.
"As madeiras usadas nem sempre eram as mais adequadas", prossegue o mesmo especialista. "O Estado pagava bem por estas embarcações, mas a sua qualidade nem sempre era a melhor." Por vezes era empregue madeira ainda verde ou do tipo de árvore errada.
A escassez de madeira era outro problema: à medida que crescia a febre das viagens marítimas, as florestas nacionais iam sendo dizimadas a um ritmo superior ao do seu crescimento. Seja como for, Adolfo Silveira Martins defende, num estudo de 2001, que o navio foi, durante séculos, "a máquina mais complexa que o homem conheceu".
"Nos finais do século XVI (...) os navios passam a traçar na paz e na guerra os destinos das nações", afirma no mesmo trabalho, onde surgem relatos pormenorizados da vida a bordo nesses tempos. Embarcados vivos, galinhas, porcos e vacas iam subindo de preço à medida que a viagem avançava e os víveres escasseavam.
Não havia uma cozinha comum: "A cada um competia cozinhar os seus próprios alimentos, o que resultava em grandes e conflituosas filas de espera." Consumidos estes animais, restavam o biscoito de trigo... e os roedores: "Pelas condições de armazenagem o biscoito acabava quase sempre por se corromper, contaminava-se de vermes e excrementos de ratos que faziam das barricas o seu habitat."
"Até os ratos não sobreviviam, perante o ímpeto da caça que lhes faziam. Relatos há em que aqueles que os apanhavam os vendiam a preços exorbitantes. Também os couros dos sapatos por vezes eram humedecidos e comidos com ansiedade", descreve o mesmo estudo.
Pestilenta, a água era bebida de nariz tapado. Desperdiçá-la na higiene pessoal nem pensar. Segundo uma crónica da época, Cristóvão Colombo terá estado oito meses sem mudar de roupa na sua segunda viagem marítima. Não é de estranhar que um ambiente destes fosse propício às doenças.
Ao escorbuto provocado pela carência de fruta e vegetais - "A carne apodrecia e caía. Os dentes, sem o apoio das gengivas, soltavam-se" - juntava-se uma espécie de tifo causado pela picada do piolho. Clisteres, purgas e sangrias eram os tratamentos mais populares, aplicados pelo barbeiro que seguia a bordo, explica o trabalho de Adolfo Silveira Martins.
O séc. XVII, de que os navios encontrados na 24 de Julho são testemunho, marca o início do declínio do império português. "É uma época ainda florescente da armada portuguesa e de expansão económica. Surgem outras potências na corrida às colónias", refere Jorge Freire, do Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova. "O declínio já existe, mas ainda não é visível."