Linhas rectas
Há, desde já, uma enorme injustiça a rodear Linhas de Wellington: ninguém conseguirá olhar para este filme sem nele projectar o que teria sido nas mãos de Raúl Ruiz, que faleceu antes do início das rodagens. Valeria Sarmiento, viúva do cineasta, sua montadora regular e realizadora com carreira própria, não mereceria apenas ser vista como “substituto” do cineasta chileno, até porque antes de Ruiz já o argumento de Carlos Saboga passara por outras mãos.
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Há, desde já, uma enorme injustiça a rodear Linhas de Wellington: ninguém conseguirá olhar para este filme sem nele projectar o que teria sido nas mãos de Raúl Ruiz, que faleceu antes do início das rodagens. Valeria Sarmiento, viúva do cineasta, sua montadora regular e realizadora com carreira própria, não mereceria apenas ser vista como “substituto” do cineasta chileno, até porque antes de Ruiz já o argumento de Carlos Saboga passara por outras mãos.
Mas essa injustiça acaba por ser inevitável, pois o próprio filme rapidamente acaba por invocar a herança de Ruiz: todo o projecto, fresco histórico que quer acompanhar a migração de civis portugueses e militares lusos e ingleses em direcção às Linhas de Torres durante a terceira invasão francesa, ressoa com a vontade de reproduzir o mecanismo de Mistérios de Lisboa. Procura-o quer no fôlego romanesco de histórias que se cruzam sobre fundo histórico, quer na tentativa de criar um painel humano de época, quer na presença de muito do elenco e da equipa daquele filme. E contra isso Valeria Sarmiento não consegue opor a lisura de uma encenação mais convencional, formatada e escorreita, que cumpre os requisitos mínimos mas nunca atinge a pretendida dimensão folhetinesca, ficando-se por uma narrativa episódica onde as múltiplas histórias nunca se emaranham nem se completam mas parecem existir isoladas umas das outras.
É verdade que aqui não há o tecido de Camilo a sustentar a trama nem há as quatro horas que permitiam aos Mistérios outra densidade (e é verdade que também aqui se trata de uma versão para cinema encurtada de uma série televisiva mais longa). É igualmente verdade que Sarmiento demonstra uma certa elegância no modo como se apropria do esperanto do filme de época (as gruas, as steadycam, as panorâmicas a evocar algo de grandioso) para o aplicar com uma atenção intrigante ao nível dos civis que raramente aqui se vêem; há, até, aqui e ali o aflorar de qualquer coisa mais intrigada pelo quotidiano, menos convencionalmente “de guerra”, outro filme a desvendar-se por trás deste. Mas, depois, a necessidade de mostrar os actores convidados que vêm fazer perninhas amigáveis mas desnecessárias à economia narrativa do filme (Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Michel Piccoli ou Isabelle Huppert parecem estar lá apenas porque sim, por exemplo) dão-lhe uma ostentação que apenas menoriza o esforço.
Por injusto que possa parecer, não é possível olhar para Linhas de Wellington sem pensar no que Raul Ruiz teria feito - porque Valeria Sarmiento tentou mas não conseguiu afastar-nos da memória de Ruiz.