A história da luta de um povo contra a manada selvagem do "doutor Neco"
No reinado de D. Fernando a aldeia de Segura, actualmente integrada no concelho de Idanha-a-Nova, Castelo Branco, foi um dos garantes da manutenção da fronteira durante as três guerras com Castela. Há 600 anos, à força das espadas, as tropas adversárias não lograram apoderar-se das margens para lá do rio Erges. Hoje, não havendo guerra com Espanha, há quem prepare espingardas. Não para defender a soberania, mas para enfrentar centenas de touros e vacas bravas que há dez anos campeiam livremente pela região e que este mês, conforme confirmou a GNR, já provocaram a morte de um pastor surpreendido no campo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No reinado de D. Fernando a aldeia de Segura, actualmente integrada no concelho de Idanha-a-Nova, Castelo Branco, foi um dos garantes da manutenção da fronteira durante as três guerras com Castela. Há 600 anos, à força das espadas, as tropas adversárias não lograram apoderar-se das margens para lá do rio Erges. Hoje, não havendo guerra com Espanha, há quem prepare espingardas. Não para defender a soberania, mas para enfrentar centenas de touros e vacas bravas que há dez anos campeiam livremente pela região e que este mês, conforme confirmou a GNR, já provocaram a morte de um pastor surpreendido no campo.
O sol está alto e nos campos em redor de Segura, num vislumbre menos apurado, é quase impossível avistar qualquer rês, mesmo que seja mansa. Palmilham-se quilómetros por caminhos poeirentos, entre giestas e mais giestas. De vez em quando um bando de perdizes levanta voo. O guia, um homem da aldeia, garante que vamos encontrar gado bravio. Chegados a um ribeiro quase seco, uma revoada de pó indica a proximidade de animais. Mais de 20, entre bovinos e cavalos. Enquanto algumas reses permanecem imóveis, outras partem desenfreadas pelo campo. "São vacas do Neco", explica o guia.
"Neco", de seu verdadeiro nome Eduardo Pereira Marques, é veterinário, tem uma casa em Segura (onde só aparece esporadicamente) e mais de 2000 hectares de terreno em torno da aldeia. Os populares dizem que são dele as rezes bravias que há cerca de dez anos alvoraçam e espalham terror naquele povoado e noutros da zona raiana. Terá sido um dos seus animais, conforme já foi confirmado pela GNR, bem próximo do local onde o PÚBLICO avistou diversos animais não brincados (o brinco é uma chapa metálica que é colocada nas orelhas dos animais e que permite saber que os mesmos estão registados e submetidos a controlo veterinário) que há cerca de duas semanas matou um pastor da aldeia de Rosmaninhal que por ali apascentava ovelhas.
Os touros e vacas bravas que terão morto o pastor tão depressa podem andar nos terrenos do alegado proprietário, como se dão ao luxo de campear pelos 352 hectares que constituem a Herdade da Granja (foi nos seus limites que apareceu o cadáver). Esse terreno (o equivalente a 352 campos de futebol) é um baldio desde sempre utilizado pela população de Segura, actualmente com apenas 180 eleitores. "Era aqui [na Herdade da Granja] que o povo vinha fazer as suas sementeiras, que fazia algumas hortas e que trazia gado a pastar", conta Sebastião Ramos Matias. "Mas desde que o gado do Neco passou a vedações e começou a atacar as pessoas e a dar cabo das colheitas, tudo acabou", lamenta.
A conversa com o guia é entrecortada, com alguma frequência, por sombras imensas que passam a grande velocidade pelo chão. Quando se olha para o céu avistam-se então os donos das sombras. São bandos de enormes abutres que esvoaçam em círculos e que depois se precipitam para o solo. "É mais algum touro morto", alvitra Sebastião Matias.
A expressão "mais" não é, neste caso, nenhum exagero. Andam-se 200 metros a partir do leito seco de um ribeiro e os olhos arregalam-se com o avistamento de ossadas dispersas. Depois, mais uns passos dados, lá está o que resta do que terá sido um touro corpulento. O crânio, quase já sem pele, e os cornos aguçados fazem lembrar as imagens icónicas dos filmes do Oeste americano. "Este foi morto por um caçador que andava aqui às perdizes. O animal estava escondido ali no ribeiro e investiu", explica Sebastião Matias, justificando o uso de balas (que os caçadores não podem utilizar quando procuram peças mais pequenas, como coelhos, lebres ou perdizes) com "a necessidade de salvar a vida".
Atravessa-se um caminho de terra batida e mais algumas vacas e touros bravios se levantam num trote respeitoso - os animais que não estão registados não toleram a aproximação de humanos, que nos últimos anos os têm caçado e os afugentam a tiro. Depois surge mais uma carcaça de outra rês abatida à bala. Mais umas centenas de metros e surge o esqueleto de um cavalo. O terreno em volta do sítio onde os animais caíram e os abutres comeram mais um banquete ficou despido de vegetação. No chão ficaram apenas enormes penas das aves, supostamente perdidas na luta por um qualquer pedaço de carne.
De volta a Segura, dá para notar, quando se chega a uma pequena estrada asfaltada, ladeada por terrenos que o próprio veterinário reconhece serem seus, a existência de várias marcas de travagens. São os vestígios de colisões com o gado que assim que começa a escurecer vem para os caminhos.
João Fevereiro é apenas um dos diversos habitantes de Segura que tem para contar um encontro que, de acordo com a sua versão, se deu "com o gado do Neco". "Vinha das Termas [de Monfortinho] e eram para aí uma da manhã. Na estrada estavam cinco touros e uma vaca". O embate de um dos animais valeu-lhe uma despesa de 7.000 euros. Ainda hoje espera ser reembolsado.
Ao lado de João Fevereiro outro natural da terra, Rui José Fazenda Carvalho, conta que na sua tapada são frequentes as investidas "do gado do Neco". "Para ir ver as minhas vacas tenho de ir de tractor. Já fui seguido várias vezes por cinco, dez, 20 e 30 vacas e touros".
Histórias de gado bravo em Segura são como carraços em cão vadio. Uns queixam-se dos quintais devastados por animais cheios de fome e de sede. Outros contam que touros de grande porte e ameaçadores vão, a coberto da noite, ao encontro das suas vacas mansas que estão "saídas" (receptivas a acasalar) emprenhando-as contra a vontade dos donos, que pretendem animais "registados e com as vacinas em dia". "Eu não como aquela carne", diz José Manuel, referindo-se às vacas e touros bravios.
A dona do único café de Segura conta que quando a filha vem à aldeia para a visitar "abala sempre antes da noite, por causa do gado nas estradas". "Isto agora é simples: assim que o sol se põe, assim que começa a escurecer, o melhor é cada um fechar as portas e não andar pelas ruas", diz a comerciante, contando que "quase todas as noites" se escutam os cascos das reses bravias a bater nas pedras das ruas. Uma vizinha diz mesmo já ter escutado "vacas e touros a subir as escadas do castelo" (restos da fortaleza ali construída e hoje parcialmente absorvida pelo povoado para proteger a fronteira).
Os animais, sobretudo no Verão, procuram comida e água. Se durante o dia muitos se acoitam nos matos e nos leitos secos dos riachos, quando a noite cai a maior parte aventura-se pelos povoados. Sofrem as pequenas hortas e também os carros.
"Neco" diz-se ameaçado
Já há sete processos a correr no Tribunal de Idanha-a-Nova, a sede do concelho. Na maior parte dos casos, porque os animais que acabam por ser abatidos (a GNR, por intermédio dos seus serviços de relações públicas no Comando Nacional, em Lisboa, confirma que já foi chamada diversas vezes) não possuem qualquer identificação, não é possível atribuir responsabilidades a Eduardo Marques.
O PÚBLICO conseguiu entrar em contacto telefónico com o veterinário: "Não tenho a mínima responsabilidade em relação ao que se está a passar", sintetizou.
Eduardo Marques começou por dizer, no passado domingo, que nada pretendia afirmar. Depois, a insistência do PÚBLICO, remeteu mais esclarecimentos para um comunicado que pensa divulgar numa data não especificada. Mais um pouco e acabou por negar quaisquer responsabilidade relativa aos danos provocados pelos animais e, por fim, revelou que a sua vida já correu e continua a correr perigo.
"Sou ameaçado por várias pessoas da região. São malfeitores que estão perfeitamente identificados", acrescentou o veterinário, que não quis precisar mais detalhes acerca da história.
Quando se pergunta o porquê dos problemas entre a população de Segura e o veterinário Neco, nenhuma resposta concreta é avançada. Diz-se que o homem, que "é dono de um terço de todas as terras aqui à volta", mas que reside normalmente em Albergaria-a-Velha (Aveiro), gostaria de juntar os 352 hectares da Herdade da Granja (que é de todo o povo da aldeia) aos cerca de 2.000 que já possui. Também se diz que quando chegou à região e começou a colocar as "aramadas" (vedações) nos seus terrenos, alguns habitantes deitaram-nas abaixo. Terá sido nessa ocasião que começou a levar touros para os terrenos, como se os mesmos fossem os guardas que pudessem proteger as cercas derrubadas.
O PÚBLICO não obteve qualquer resposta do veterinário em relação a estas afirmações dos habitantes de Segura.
Os ataques do gado aos populares iniciaram-se em 2005, ano em que alguns dos animais terão sido alvo dos últimos cuidados veterinários. Depois disso, e por motivos não explicados, o alegado dono teria deixado de os acompanhar e estes começaram a partir as vedações e atacar as culturas.
A manada bravia, que actualmente se divide em mais de uma dúzia de grupos, é composta por um número indeterminado de animais. De acordo com a Direcção-Geral de Veterinária serão, no mínimo, 250 cabeças. Em Segura fala-se de "muitas centenas, quase mil" e deitam-se contas às crias paridas todos os anos pela vacada. "Não se vê uma vaca sem um bezerro atrás", dizem.
A própria Direcção-Geral de Veterinária não conseguiu, em Agosto deste ano, fazer uma contagem exacta dos exemplares. Conforme disse ao PÚBLICO o assessor do Ministério da Agricultura, Daniel Costa, foram requisitados à Companhia das Lezírias um grupo de campinos que, depois de muitas horas a cavalgar pelos muitos hectares ocupados pelo gado, conseguiram apenas recuperar oito touros. Os restantes refugiaram-se pelos cabeços da zona.
A Direcção-Geral de Veterinária, de acordo com o que já é público e foi confirmado ao PÚBLICO pela assessoria do Ministério da Agricultura, e baseado numa determinação veiculada pelo Ministério Público do Tribunal de Idanha-a-Nova, vai ordenar uma batida legal às reses. Caberá à GNR proceder ao abate dos animais, situação que, conforme disse ao PÚBLICO o porta-voz daquela força, ainda não tem data marcada. O assessor Daniel Costa adiantou, entretanto, que a data não será revelada por "motivos de segurança".
Há cerca de um mês atiradores da GNR estiveram quase a consumar a matança de muitos dos animais tresmalhados, o que não aconteceu supostamente por falta de assentimento por parte dos responsáveis do Ministério da Agricultura. Daniel Costa explicou que o abate dos animais "é uma operação complexa", tal como todo o processo, o qual envolve a apreciação de uma série de processos dos quais "já resultaram o levantamento de diversas contra-ordenações".
O que se sabe é que os animais, nas suas sortidas em busca de alimento e água, não poupam quem lhes surja pela frente. Não são apenas os carros dos civis que são alvo de cornadas. Um jipe da GNR já ficou bem marcado devido a um ataque de um touro. Em Segura há um soldado da GNR, dono de vacas, que dorme com a espingarda ao lado e que, em diversas noites, já se terá visto obrigado a disparar para defender a comida e a "honra" das suas reses. "Uns [touros] morrem no local, outros, feridos, acabam por morrer longe. Quem é que vai querer comer essa carne? Apenas os abutres", remata Sebastião Matias.