A fotografia da outra Europa
Muitos conhecem a fotografia ao espelho de Marcel Duchamp, mas poucos (muito poucos, mesmo) a do estónio Johanes Pääsuke. Muitos identificam a obra de André Kertész, mas nem todos sabem que era húngaro. Muitos visitaram a acrópole ateniense, mas poucos terão visto o Pártenon numa fotografia de 1930 cuidadosamente encenada pelo grego Nikos Zografos.
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Muitos conhecem a fotografia ao espelho de Marcel Duchamp, mas poucos (muito poucos, mesmo) a do estónio Johanes Pääsuke. Muitos identificam a obra de André Kertész, mas nem todos sabem que era húngaro. Muitos visitaram a acrópole ateniense, mas poucos terão visto o Pártenon numa fotografia de 1930 cuidadosamente encenada pelo grego Nikos Zografos.
A fotografia na Europa não é um exclusivo de países como a França, a Inglaterra e a Alemanha, mas a avaliar pelas publicações mais divulgadas, a sua história não inclui os países pequenos ou periféricos, como Portugal, a Albânia, a Grécia, a Eslováquia, a Sérvia ou a Ucrânia. The History of European Photography, uma obra com ambições enciclopédicas cujo primeiro de três volumes acaba de ser lançado em Portugal, quer contrariar a ideia de que o discurso da fotografia europeia foi construído num território circunscrito e, por isso, limitado na sua diversidade.
"Quisemos dar aos países pequenos, como o meu [Eslováquia], a possibilidade de contarem a sua história da fotografia", diz ao PÚBLICO Michaela Bosakova, coordenadora executiva desta edição desenvolvida pela Central European House of Photography, de Bratislava. "Quantas vezes lemos num livro de referência da fotografia do século XX capítulos sobre a Albânia ou a Moldávia? Mas a fotografia existe nestes países e teve um papel que, muitas vezes, não é diferente do que teve em França e em Inglaterra", explica, garantindo, por isso, que o primeiro objectivo é preencher lacunas.
"A maioria das histórias da fotografia é escrita por autores franceses, ingleses ou americanos e eles raras vezes procuram fora destes territórios. Até aqui nenhum deles achou que valia a pena olhar para a fotografia da Albânia ou dos países da Europa mediterrânica de forma sistemática. Mais de metade do continente fica de fora das suas histórias." Admitindo que há na concepção do projecto um posicionamento político - uma espécie de exigência de reconhecimento da Europa periférica -, Bosakova não resiste à provocação: "Às vezes penso que estes autores acham que as pessoas da Europa de Leste saíram todas de uma gruta em 1989. Se não existiam antes, como podiam fotografar?"
Um livro para aprenderPortugal faz parte dos 35 países representados em The History of European Photography (para já à venda na Stet, jovem livraria lisboeta especializada em fotografia - fica na Rua do Norte, 14, no Bairro Alto). Dividida em três - 1900-1939 (o único volume já pronto, com mais de 800 páginas em dois tomos); 1939-1969 (já em preparação e com lançamento previsto para o próximo ano) e 1970-2000 (ainda à procura de financiamento) -, a obra tem a colaboração de 50 especialistas e menos imagens do que à partida o leitor poderia esperar. Bosakova diz que a intenção foi criar uma ferramenta educativa a partir de uma pesquisa aprofundada com factos novos, e não fazer um álbum com as fotografias que todos já viram.
Esta nova história da fotografia, orçada em um milhão de euros (o primeiro volume custa 99 euros), está dividida por países e alfabeticamente. O texto de cada um é escrito por um investigador nacional, a quem o comissário científico da edição, Václav Macek, professor da Universidade de Artes Performativas de Bratislava, e Bosakova confiaram também a escolha das imagens. Cada capítulo tem pequenas biografias dos principais fotógrafos mencionados e os tomos apresentam índices por países e autores, para que a pesquisa seja facilitada (algo que será optimizado na versão digital, cuja edição é para já apenas um desejo).
Emília Tavares é a autora do texto sobre Portugal. A conservadora do Museu do Chiado faz parte de uma lista que inclui investigadores como o britânico Gerry Bedger, o alemão Hans-Michael Koetzle, o espanhol Juan Naranjo ou o próprio Macek. Ainda que reconheça que esta obra pode ter uma leitura política, Tavares garante que aos autores foi dada total liberdade, com a indicação de que o texto deveria dar conta do contexto político e social em que os fotógrafos trabalhavam.
Escrever sobre o momento em que a fotografia acontece é essencial (os volumes incluem cronologias breves) para a compreender, sobretudo quando se trata de países cuja história é desconhecida da maioria dos potenciais leitores, explica Tavares. "O contexto ajuda a compreender as especificidades da fotografia que se faz em cada país. E quando falamos de países que habitualmente ficam fora do cânone da história da fotografia isso é ainda mais essencial", diz, acrescentando que esta obra mostra bem que cada um assimila as grandes influências à sua maneira, o que dá lugar a uma produção diversa, complexa. "Há muitas histórias pequenas dentro desta grande história da fotografia."
No capítulo português Joshua Benoliel aparece, como seria de esperar, como a grande referência do princípio do século. Mas estão lá também Domingos Alvão, Ferreira da Cunha, Aurélio da Paz dos Reis ou Mário Novais. Tavares chegou a estes nomes depois de ter optado por quatro grandes linhas orientadoras: a da fotografia mais artística, ligada aos salonistas e fotoclubes; a amadora, grande revolução nos anos 1930; a de reportagem, que muda por completo a imprensa; e a que se transforma em instrumento ideológico.
"Olhar para os outros países ajuda-nos a compreender melhor o que foi feito aqui e leva-nos a concluir que, na fotografia, não vivíamos à margem. A nossa vanguarda pode não ter sido consistente, foi mais episódica, mas há na fotografia uma grande modernidade que se nota, por exemplo, na fotorreportagem e na produção ideológica."