Morrer aos poucos

Já não dá. A falta de um combate sério aos falsos recibos verdes legitima a situação miserável de milhares de pessoas que cada vez mais pagam para trabalhar, e que ainda tem de ouvir dizer que a culpa é sua por não saírem da sua zona de conforto

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Nelson Garrido

Quando, depois da anterior avaliação da troika, comecei a escrever algumas linhas, lembrei-me de expressões tão utilizadas como “a crise em Portugal é estrutural e é assim há 30 anos” ou “o crescimento já é um problema há muito tempo, as reformas são necessárias”. Tinha a ideia de que, cada vez que havia uma avaliação da troika, nos sentíamos como uma bola de ping-pong. Por um lado, o “plano de ajustamento corre bem”: toma lá mais uma tranche do empréstimo ("clap clap"). Por outro lado, isto pode vir a correr mal, por isso há que baixar mais a despesa.

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Quando, depois da anterior avaliação da troika, comecei a escrever algumas linhas, lembrei-me de expressões tão utilizadas como “a crise em Portugal é estrutural e é assim há 30 anos” ou “o crescimento já é um problema há muito tempo, as reformas são necessárias”. Tinha a ideia de que, cada vez que havia uma avaliação da troika, nos sentíamos como uma bola de ping-pong. Por um lado, o “plano de ajustamento corre bem”: toma lá mais uma tranche do empréstimo ("clap clap"). Por outro lado, isto pode vir a correr mal, por isso há que baixar mais a despesa.

Vou parar por aqui, quanto às linhas que esbocei então. Já não nos sentimos uma bola de ping-pong. A partir desta semana, somos a fina cinza que sobra da bola de ping-pong se a pusermos a arder. Mas em lume brando, para sentir bem o cheiro e o ardor, e morrer aos poucos. O que já se esperava há algum tempo foi finalmente verbalizado — o plano está a falhar: a economia não cresce, o défice não baixa. E não era preciso ser o Stiglitz ou o sacrossanto Adam Smith para perceber que não ia dar, que sem consumo nem investimento não há economia, que o desemprego iria aumentar e as receitas fiscais ficar abaixo do esperado.

E mais uma vez, perante o fracasso na vida real das verdades académicas, a receita foi aumentar o lume na panela que já está a esturricar. Começou-se muito concretamente pelos salários das pessoas, ou seja, pelos malandros que têm o privilégio de trabalhar para ganhar a vida. Quanto às propaladas gorduras do estado, às rendas excessivas, às ruinosas PPP (Parcerias Público-Privadas), as acções já não são concretas: “vai-se fazer qualquer coisa”, disse o primeiro-ministro; “vai-se tentar fazer alguma coisa”, disse o Ministro das Finanças.

Mas já não dá. A descida da Taxa Social Única só transfere o peso para as pessoas e a ideia de que a medida criará emprego é risível. As famílias já não têm margem de manobra. Já não havia parcelas do salário que possibilitassem jantar fora (esse luxo a que os portugueses estavam habituados, vejam só o desplante...). Agora, com menos dois salários, já quase não há é parcelas do salário que permitam jantar em casa.

Mas já não dá. A falta de um combate sério aos falsos recibos verdes legitima a situação miserável de milhares de pessoas que cada vez mais pagam para trabalhar, e que ainda tem de ouvir dizer que a culpa é sua por não saírem da sua zona de conforto. Por isso aumente-se também a taxa a pagar à Segurança Social pelos trabalhadores independentes.

Já não dá. E as perspectivas de vida? E a realização pessoal? E a felicidade? São agora vãs promessas, meras ilusões de oásis que parecem não existir. Em 2007, o número de pobres em Portugal era de 2 milhões – a viver com menos de 360 euros por mês. E agora quantos são? Já não dá.