Mykki Blanco traz o queer rap a Lisboa

Foto

Há umas semanas, quando Frank Ocean chegou a número um da tabela de vendas dos EUA com o seu primeiro álbum oficial, channel ORANGE, alguma imprensa aventou a hipótese de o sucesso não se dever apenas à meia dúzia de grandes singles contidos no disco. Pouco antes Ocean havia criado um certo furor mediático ao revelar a sua homossexualidade, caso raro no mundo em que se move, o do r'n'b e o hip-hop, que ainda terá tiques de homofobia.

Se de facto ainda os tem, está a aprender a escondê-los: de Jay-Z a Kanye West (que a imprensa menos séria adiantou ter sido amante de Ocean e objecto de uma das suas canções de amor), todas as reacções públicas à confissão de Ocean foram de plena aceitação. Ocean é um produtor e compositor respeitado pelas canções que escreveu para outros artistas, pelo que dificilmente seria atacado por estrelas mainstream. Mas há outros sinais de que algo pode estar a mudar no outrora mundo heterossexual do hip-hop e derivados. Tome-se o caso de Mykki Blanco, que actua na próxima quinta-feira, 6 de Setembro, na ZDB, em Lisboa: é um homem, um travesti negro que, a partir de agora, trataremos no feminino. Faz rap e rap declaradamente gay, ou, mais exactamente, queer - o que se confirma nas suas actuações ao vivo.

O rótulo não parece incomodá-la: "Estou a viver a minha introdução ao mundo, pelo que as pessoas precisam de um rótulo que simplifique." Muito prática, aproveita para fazer negócio e dizer logo o que verdadeiramente lhe interessa: "No Outono sai Cosmic Angel, o meu primeiro disco; e possivelmente [sairão] cinco ou seis vídeos nos meses seguintes. Espero conseguir fazer o máximo de digressões. E para o conseguir não posso zangar-me com o rótulo."

Se aceitarmos por verdadeira a ideia de que o hip-hop é o último reduto da homofobia na pop, então o queer rap é a suprema subversão. Mas Mykki Blanco não está sozinha nesta nobre arte. Zebra Kat, La Dosha, Le1f também usam as batidas do hip-hop para celebrar a cultura queer. Não é óbvio tratar-se de um movimento muito definido. A própria Mykki diz-nos ao telefone que "não [sabe] se é uma comunidade": "Mas todos nos apoiamos e tornámo-nos amigos. E aconteceu olharem para nós e interessarem-se pelo que fazemos."

Seja ou não um "movimento" ou género musical auto-consciente, é certo que tem características próprias. Antes de mais, o queer rap é nova-iorquino. A cena anda à volta de clubes como o Santos, onde se organizam as festas Ghe20 Goth1k - e a ênfase, como é de rigor na cultura queer, é colocada na actuação ao vivo. "O palco é muito importante", diz Mykki, que tem reputação de ser incendiária ao vivo: "É aí que tudo faz sentido. Sinto o que funciona e não funciona e percebo o que tenho de mudar na minha música para mexer com as pessoas. Quero música que faça as pessoas mexer, dançar."

Ao contrário de outras manifestações da cultura queer, o queer rap não demorou muito a chegar ao mainstream (ou a sair do armário, se quiserem). Blanco, por exemplo, só existe há um ano. É o nome artístico de Mikey Quattlebaum Jr, que tem um "passado nas artes performativas". Pedimos-lhe para especificar exactamente o que é que fazia em artes performativas, mas ela não é moça de se prender a detalhes. "Miykki sou eu, não é assim tão distinto de mim - até porque no dia-a-dia eu visto-me com roupas de mulher. E no ano passado resolvi explorar o lado da minha personalidade que sobressai em Mykki e levá-lo para o palco, o que foi muito engraçado." Até então, a música que Mikey fazia andava por outras paragens: "Eu estava muito dentro do punk e do industrial", revela, "mas agora só quero o rap."

Sexo explícito

O queer rap é, claro, sexualmente provocador: Mykki, por exemplo, é capaz de rappar "You suck a dick like Dilbert", numa alusão à personagem de banda desenhada com o mesmo nome, um engenheiro informático vagamente incapacitado para tudo o que não seja a subjugação hierárquica do escritório. Outra marca do queer rap é a tendência para gozar com a cultura do rap heterossexual, ou, pelo menos, com os seus aspectos mais caricaturais. LaDosha gosta de fazer uma versão de B.M.F., do rapper Rick Ross, em que os nomes de barões de droga da letra original são trocados por super-modelos, de modo a ficar "I think I'm Kate Moss/ Naomi Campbell".

A alusão ao mundo da moda é auto-irónica, se pensarmos que foi este universo que legitimou - e que outro poderia tê-lo-feito, pensando bem? - o queer rap: foi na Semana da Moda de Paris que o mundo descobriu a música de Zebra Kat. Daí a ter ?uestlove, dos Roots, a elogiar o género foi um pulinho. "O que aconteceu foi que começámos a ter êxitos", diz Mykki. Le1f teve um êxito, Zebra Kat teve um êxito. Se não houvesse êxitos ninguém queria saber do queer rap para nada. Queer há muitos e nem todos se tornam famosos. O que se passa é que alguns estão a fazer boa música".

Mykki também teve o seu êxito - um pequeno êxito, por enquanto, mas prestes a dar o salto. Trata-se de Wavvy (encontram-no no Soundcloud), em que entre descrições de sexo na casa-de-banho e dick-riders se fundem beats de hip-hop a ritmos latinos. Essa é outra marca do queer rap: não se trata de rap musicalmente straight, antes de uma enorme misturada que, não raras vezes, abusa do house, e não propriamente com pudor.

Dizer que o queer rap se tornou completamente mainstream seria um exagero. Mas a imprensa americana e europeia tem posto a hipótese de haver, por parte dos heterossexuais que aderem ao género, uma espécie de fetichização. Um fenómeno do género: pessoas que se consideram sofisticadas sentem-se obrigadas a legitimar em excesso a cena, por receio de, não apreciando o queer rap, parecerem intolerantes. "Não acho que isso para já seja um problema", diz Mykki. "Interesso-me pela cultura, e portanto interessa-me saber se, como dizem na América, o hip-hop é o último bastião da homofobia. Eu faço hip-hop, claro que estas questões me interessam. Mas os melhores entertainers são os que não têm herdeiros nem precursores. Por isso, se antes não havia rappers queer e agora há, isso não é problema. Penso na Grace Jones e no Iggy Pop e eles transcendem tudo isso. E quero ser tão boa quanto eles."

Há um episódio da série How I Met Your Mother em que Barney Stinson, o heterossexual solteirão retinto do grupo, se zanga com os amigos porque todos resolveram ter relações sérias. Zanga-se acima de tudo com o irmão gay e negro (Barney é branco), que quer casar. Barney, preocupado com a possível ausência de fêmeas no seu futuro, diz qualquer coisa como isto: "Se vocês [os gays] começarem a casar então os heterossexuais também vão começar a casar, porque os heterossexuais imitam tudo o que os gays fazem."

Se Barney Stinson estiver correcto, então preparem-se: esta ligeira ascensão do queer rap pode durar e tornar-se a norma. E então andaremos todos com dick riders na ponta da língua.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há umas semanas, quando Frank Ocean chegou a número um da tabela de vendas dos EUA com o seu primeiro álbum oficial, channel ORANGE, alguma imprensa aventou a hipótese de o sucesso não se dever apenas à meia dúzia de grandes singles contidos no disco. Pouco antes Ocean havia criado um certo furor mediático ao revelar a sua homossexualidade, caso raro no mundo em que se move, o do r'n'b e o hip-hop, que ainda terá tiques de homofobia.

Se de facto ainda os tem, está a aprender a escondê-los: de Jay-Z a Kanye West (que a imprensa menos séria adiantou ter sido amante de Ocean e objecto de uma das suas canções de amor), todas as reacções públicas à confissão de Ocean foram de plena aceitação. Ocean é um produtor e compositor respeitado pelas canções que escreveu para outros artistas, pelo que dificilmente seria atacado por estrelas mainstream. Mas há outros sinais de que algo pode estar a mudar no outrora mundo heterossexual do hip-hop e derivados. Tome-se o caso de Mykki Blanco, que actua na próxima quinta-feira, 6 de Setembro, na ZDB, em Lisboa: é um homem, um travesti negro que, a partir de agora, trataremos no feminino. Faz rap e rap declaradamente gay, ou, mais exactamente, queer - o que se confirma nas suas actuações ao vivo.

O rótulo não parece incomodá-la: "Estou a viver a minha introdução ao mundo, pelo que as pessoas precisam de um rótulo que simplifique." Muito prática, aproveita para fazer negócio e dizer logo o que verdadeiramente lhe interessa: "No Outono sai Cosmic Angel, o meu primeiro disco; e possivelmente [sairão] cinco ou seis vídeos nos meses seguintes. Espero conseguir fazer o máximo de digressões. E para o conseguir não posso zangar-me com o rótulo."

Se aceitarmos por verdadeira a ideia de que o hip-hop é o último reduto da homofobia na pop, então o queer rap é a suprema subversão. Mas Mykki Blanco não está sozinha nesta nobre arte. Zebra Kat, La Dosha, Le1f também usam as batidas do hip-hop para celebrar a cultura queer. Não é óbvio tratar-se de um movimento muito definido. A própria Mykki diz-nos ao telefone que "não [sabe] se é uma comunidade": "Mas todos nos apoiamos e tornámo-nos amigos. E aconteceu olharem para nós e interessarem-se pelo que fazemos."

Seja ou não um "movimento" ou género musical auto-consciente, é certo que tem características próprias. Antes de mais, o queer rap é nova-iorquino. A cena anda à volta de clubes como o Santos, onde se organizam as festas Ghe20 Goth1k - e a ênfase, como é de rigor na cultura queer, é colocada na actuação ao vivo. "O palco é muito importante", diz Mykki, que tem reputação de ser incendiária ao vivo: "É aí que tudo faz sentido. Sinto o que funciona e não funciona e percebo o que tenho de mudar na minha música para mexer com as pessoas. Quero música que faça as pessoas mexer, dançar."

Ao contrário de outras manifestações da cultura queer, o queer rap não demorou muito a chegar ao mainstream (ou a sair do armário, se quiserem). Blanco, por exemplo, só existe há um ano. É o nome artístico de Mikey Quattlebaum Jr, que tem um "passado nas artes performativas". Pedimos-lhe para especificar exactamente o que é que fazia em artes performativas, mas ela não é moça de se prender a detalhes. "Miykki sou eu, não é assim tão distinto de mim - até porque no dia-a-dia eu visto-me com roupas de mulher. E no ano passado resolvi explorar o lado da minha personalidade que sobressai em Mykki e levá-lo para o palco, o que foi muito engraçado." Até então, a música que Mikey fazia andava por outras paragens: "Eu estava muito dentro do punk e do industrial", revela, "mas agora só quero o rap."

Sexo explícito

O queer rap é, claro, sexualmente provocador: Mykki, por exemplo, é capaz de rappar "You suck a dick like Dilbert", numa alusão à personagem de banda desenhada com o mesmo nome, um engenheiro informático vagamente incapacitado para tudo o que não seja a subjugação hierárquica do escritório. Outra marca do queer rap é a tendência para gozar com a cultura do rap heterossexual, ou, pelo menos, com os seus aspectos mais caricaturais. LaDosha gosta de fazer uma versão de B.M.F., do rapper Rick Ross, em que os nomes de barões de droga da letra original são trocados por super-modelos, de modo a ficar "I think I'm Kate Moss/ Naomi Campbell".

A alusão ao mundo da moda é auto-irónica, se pensarmos que foi este universo que legitimou - e que outro poderia tê-lo-feito, pensando bem? - o queer rap: foi na Semana da Moda de Paris que o mundo descobriu a música de Zebra Kat. Daí a ter ?uestlove, dos Roots, a elogiar o género foi um pulinho. "O que aconteceu foi que começámos a ter êxitos", diz Mykki. Le1f teve um êxito, Zebra Kat teve um êxito. Se não houvesse êxitos ninguém queria saber do queer rap para nada. Queer há muitos e nem todos se tornam famosos. O que se passa é que alguns estão a fazer boa música".

Mykki também teve o seu êxito - um pequeno êxito, por enquanto, mas prestes a dar o salto. Trata-se de Wavvy (encontram-no no Soundcloud), em que entre descrições de sexo na casa-de-banho e dick-riders se fundem beats de hip-hop a ritmos latinos. Essa é outra marca do queer rap: não se trata de rap musicalmente straight, antes de uma enorme misturada que, não raras vezes, abusa do house, e não propriamente com pudor.

Dizer que o queer rap se tornou completamente mainstream seria um exagero. Mas a imprensa americana e europeia tem posto a hipótese de haver, por parte dos heterossexuais que aderem ao género, uma espécie de fetichização. Um fenómeno do género: pessoas que se consideram sofisticadas sentem-se obrigadas a legitimar em excesso a cena, por receio de, não apreciando o queer rap, parecerem intolerantes. "Não acho que isso para já seja um problema", diz Mykki. "Interesso-me pela cultura, e portanto interessa-me saber se, como dizem na América, o hip-hop é o último bastião da homofobia. Eu faço hip-hop, claro que estas questões me interessam. Mas os melhores entertainers são os que não têm herdeiros nem precursores. Por isso, se antes não havia rappers queer e agora há, isso não é problema. Penso na Grace Jones e no Iggy Pop e eles transcendem tudo isso. E quero ser tão boa quanto eles."

Há um episódio da série How I Met Your Mother em que Barney Stinson, o heterossexual solteirão retinto do grupo, se zanga com os amigos porque todos resolveram ter relações sérias. Zanga-se acima de tudo com o irmão gay e negro (Barney é branco), que quer casar. Barney, preocupado com a possível ausência de fêmeas no seu futuro, diz qualquer coisa como isto: "Se vocês [os gays] começarem a casar então os heterossexuais também vão começar a casar, porque os heterossexuais imitam tudo o que os gays fazem."

Se Barney Stinson estiver correcto, então preparem-se: esta ligeira ascensão do queer rap pode durar e tornar-se a norma. E então andaremos todos com dick riders na ponta da língua.