Para os imigrantes o importante é voltar a Angola com uma formação
António Lopes abre-nos a porta com a filha de dez meses, Marlene, ao colo. Veste uma T-shirt com os símbolos da bandeira de Angola estampada, vermelha, amarela e preta. Stella Peliganga, a mulher, chegará mais tarde à sala do apartamento na Ramada, Odivelas.
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António Lopes abre-nos a porta com a filha de dez meses, Marlene, ao colo. Veste uma T-shirt com os símbolos da bandeira de Angola estampada, vermelha, amarela e preta. Stella Peliganga, a mulher, chegará mais tarde à sala do apartamento na Ramada, Odivelas.
Na sala comprida há uma janela a dar para um monte verde, tapado por cortinas brancas. As paredes estão despidas, à excepção de um quadro colorido, com Jesus a olhar de cima para o sofá encarnado.
Há um móvel com a televisão, copos, bebidas e fotografias: do casal, de familiares, do filho de António que ele deixou no Brasil, país que serviu de trampolim para chegar a Portugal em 1999 como trabalhador da construção civil. Trazem-nos Sumol de ananás e bolos: pastel de nata, palmier, bolo de coco. É Marlene, com os seus quatro totós nos quais ninguém pode tocar, quem rapa o creme do pastel de nata, enquanto os pais vão contando as histórias das suas vidas. Salta do colo de um para o colo de outro e há-de adormecer antes de acabarmos a entrevista.
Se tivesse uma oferta de trabalho agora, António voltaria já a Angola. Stella quer esperar, pelo menos mais oito meses antes de pensar em voltar, quer esperar até Marlene ter as vacinas todas e "ganhar mais defesas", porque em Angola o sistema de saúde não é como em Portugal. "Primeiro está a minha filha."
António tem 35 anos, Stella 33. Conheceram-se em 2002. Ele vive em Portugal desde 1999. Ela desde 2001. Ainda vieram numa altura em que o país era apetecível e a imigração crescia, algo que se alterou desde 2010, sobretudo relativamente aos angolanos, a quinta maior comunidade estrangeira, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras: pouco mais de 21,500 em 2011, sobretudo jovens e em Lisboa. Agora, quando os portugueses emigram em vagas para Angola, os angolanos fazem planos para regressar ao seu país.
Stella tinha 16 anos quando chegou para estudar com uma bolsa. Vivia na Av. de Roma, em Lisboa, com mais sete angolanos, mas nem isso a consolou no primeiro Natal, passado em lágrimas. Fez o 12.º ano no Liceu Camões e entrou para o Instituto Superior de Economia e Gestão para cursar Economia, a seguir fez uma pós-graduação em Finanças Públicas na área das parcerias público-privadas. Trabalhou num call-center, num hipermercado no apoio ao cliente e hoje está desempregada. Não vai a Angola desde que o pai morreu em 2001. António nunca mais voltou desde que saiu em 1995.
António trabalhou em Espanha e em França, sempre na construção, juntando dinheiro para um negócio que não fez e para ajudar Stella nos estudos. Falta-lhe pouco para terminar o curso de Gestão, ao mesmo tempo que é taxista, porque ter uma licenciatura é essencial em Angola, onde as diferenças de ordenados entre quem tem e não tem formação são enormes. Bancos, multinacionais, quem sabe um negócio próprio, talvez na hotelaria: António não tem - ou não quer dizer que tem - nada de concreto em cima da mesa.
Juventude qualificadaStella, apesar de ter como paixão a Medicina e não a Economia, já recebeu propostas para trabalhar em bancos - mas não é o que mais lhe agrada. "O importante é voltar a Angola com uma formação", diz António. "O currículo conta muito, sem formação é o mesmo que nada, o mercado está cada vez mais exigente. Os jovens voltaram todos a estudar." Stella termina a ideia: "Os jovens e os nossos pais, que voltaram à escola. Os pais de amigas minhas foram para a faculdade, porque houve uma vaga de juventude mais qualificada e eles tiveram que ter formação para manter os postos de trabalho."
A educação e o futuro da filha é algo que a preocupa, quando pensa no regresso, mas, por outro lado, para quê terem investido neles próprios e depois ficarem em Portugal? "A qualidade de vida é muito diferente: a saúde, a educação..." Porém, António acrescenta: "Se quisermos dar mais qualidade de vida à nossa filha, não é ficando. Angola está a crescer imenso." Stella: "A situação na Europa não favorece. Somos imigrantes e é muito mais complicado conseguirmos emprego na nossa área."
António fala mais convictamente da ideia de regresso a um país que é "um vulcão em erupção", a crescer. Quer "fazer parte da reconstrução". Depois de quase 30 anos de guerra e dez de paz, Angola é uma das economias em maior crescimento - entre 2001 e 2010 o PIB cresceu mais de 11%, diz um ranking da Economist de 2011. Mas é também o país onde a capital, Luanda, é uma das cidades mais caras do mundo, dizem estudos de consultoras como a Mercer - um litro de leite importado pode custar mais de dois euros.
Stella é a quinta de sete irmãos, seis estão em Angola, um na Suécia; António tem cinco. Têm visto os sobrinhos crescer ao longe, através das redes sociais. "Também faz falta estar com a família no Natal, nos aniversários. Nunca mais senti aquele cheiro da chuva de Angola, da terra molhada, nunca mais apanhei aquela chuva quente, aquele calor, aqueles pratos típicos", lembra Stella, a sorrir.
Angolanos que consomemEm Portugal há mais de uma década, viram as atitudes dos portugueses mudar. Stella descreve que no início "havia um maior distanciamento". Racismo? "Ainda agora", conta António, que vê muitos clientes recusarem ser transportados por ele por ser negro. Mas Stella nota uma mudança, sobretudo nas lojas: "Já não nos olham de cima a baixo, a atenção é outra." Isto porque o >boom da economia trouxe muitos angolanos com dinheiro, que consomem, explica.
E como olham eles para a vaga de emigração portuguesa para Angola, que atingiu mais de 100 mil? "Um português que saia de cá vai ganhar muito mais do que um angolano. Sai com contrato, casa e condições. Eu se sair de cá agora, tenho que me virar em Angola", diz Stella.
"Vou esperar", pensam - e o tempo passa. Assim correm os planos de regresso. Esperar pelo quê?
Politicamente, a situação está melhor e o fantasma da guerra já não os assusta, dizem. Não há oposição firme, por isso António apoiaria o MPLA de José Eduardo dos Santos, há mais de 30 anos no poder, porque é o "partido com mais estrutura e capacidade". "O MPLA tem Angola nas mãos. Não vejo outro partido a fazer uma campanha como deve ser."
Tem havido relatos de censura e de vigilância de cidadãos; a ameaça de que as eleições de amanhã não vão ser livres nem justas foi apontada por organizações como a Human Rights Watch, que tem denunciado casos de repressão. Mas este é assunto tabu. De política fala-se sobretudo em casa, entre amigos. E eles, mesmo cá, seguem esse princípio. Stella: "As pessoas para se inserirem na sociedade angolana têm que chegar lá e fechar a boca."