Bienal de Arquitectura: Lisboa em Veneza
Quem, a partir de amanhã, entrar no edifício da Fondaco Marcello, junto do Grande Canal, em Veneza, não encontrará maquetas de projectos de arquitectura. Será recebido, em primeiro lugar, por palavras - as do escritor Antonio Tabucchi, ditas pelo actor italiano Marco Baliano. E depois por imagens - as do fotógrafo Duarte Belo, sobre vários locais e projectos em Lisboa. E as do vídeo de Catarina Mourão, registo de três mesas-redondas onde vários arquitectos discutem formas de intervir na cidade.
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Quem, a partir de amanhã, entrar no edifício da Fondaco Marcello, junto do Grande Canal, em Veneza, não encontrará maquetas de projectos de arquitectura. Será recebido, em primeiro lugar, por palavras - as do escritor Antonio Tabucchi, ditas pelo actor italiano Marco Baliano. E depois por imagens - as do fotógrafo Duarte Belo, sobre vários locais e projectos em Lisboa. E as do vídeo de Catarina Mourão, registo de três mesas-redondas onde vários arquitectos discutem formas de intervir na cidade.
Foi através deste cruzamento de linguagens, e de ideias, que a arquitecta Inês Lobo, comissária da representação portuguesa, respondeu ao desafio lançado por David Chipperfield, comissário-geral da 13.ª Bienal de Arquitectura de Veneza (de 29 de Agosto a 25 de Novembro). O tema da bienal é Common Ground, e Inês Lobo escolheu Lisboa como esse "território comum" sobre o qual convidou diferentes pessoas a pensar - uma forma de "ganhar conteúdo" numa exposição que foi montada num prazo apertado.
Os arquitectos que participam nas mesas-redondas foram escolhidos a partir de alguns projectos que a comissária entendeu serem importantes para esta reflexão, organizados em três núcleos: Lisboa Baixa, Lisboa Rio e Lisboa Conexões.
Não foi previamente planeado, conta Inês Lobo numa conversa por telefone a partir de Veneza, mas aconteceu que nas várias mesas-redondas, dois momentos surgiram como essenciais para esta reflexão: a reconstrução da Baixa pelo marquês de Pombal depois do terramoto de 1755; e a reconstrução do Chiado por Álvaro Siza depois do incêndio de 1988.
O projecto de Siza - arquitecto homenageado este ano pela Bienal de Veneza, que lhe atribui o Leão de Ouro pela carreira - é, para Inês Lobo, "um momento de mudança na forma de pensar Lisboa": "Na altura em que Siza é chamado, a decisão de manter o que era o Chiado e fazer uma reconstrução foi altamente polémica. Neste momento, 90% dos projectos da Câmara [de Lisboa] são de recuperação e reutilização de edifícios que já existem."
Manuel Salgado, arquitecto e actualmente vereador do Urbanismo de Lisboa, é um dos convidados das mesas-redondas. "O Chiado foi efectivamente o primeiro caso", diz ao PÚBLICO. "É uma intervenção na cidade existente, uma renovação no interior da malha urbana." Hoje, passados 24 anos, existe já um "novo paradigma", que passa por "intervir no que já existe, ou porque são áreas obsoletas, que podem ser usadas para outros fins, ou porque há vazios que podem ser trabalhados", e essa é a grande diferença em relação ao passado, em que a prioridade foi a expansão da cidade.
Agora "Lisboa está toda feita" e é preciso olhá-la com uma lupa. "Tenho no meu gabinete uma planta que ocupa uma parede inteira, com a cidade toda desenhada, edifício a edifício", conta Salgado. "E é uma descoberta dos milhares de pequenas situações que se podem melhorar, onde se pode intervir, suprimindo uma rua, alargando outra, permitindo a ligação de espaços verdes. São micro-intervenções que podem melhorar muito o ambiente urbano. Não é preciso grandes avenidas, essas já estão feitas."
Álvaro Siza recorda bem esse dia em que recebeu um telefonema do então presidente da câmara, Nuno Kruz Abecasis, dizendo que lhe queria confiar a reconstrução do Chiado. "A ideia [de Abecasis] era refazer o ambiente do Chiado, tanto quanto possível integralmente, e a minha ideia era exactamente essa também", conta o arquitecto. Havia quem defendesse que era a oportunidade para alterar profundamente aquela zona da cidade. Mas Siza pensava exactamente o contrário.
E, embora na altura estivesse prevista a realização de um concurso, Siza comunicou à Ordem dos Arquitectos que ia aceitar o convite directo da câmara por achar que "não era tema para um concurso, porque era muito mais um problema de gestão dos muitos interesses pendentes, proprietários, inquilinos, etc., e não era uma questão de ter uma ideia brilhante ou de introduzir uma nova linguagem".
E explica que vê a Baixa, Chiado incluído, como "um edifício único, planeado ao mesmo tempo". Mudar o Chiado seria o mesmo que, "se nos caísse um botão do casaco, puséssemos um diferente". Inês Lobo sublinha: "O que foi feito pelo marquês é uma coisa única. O que é importante na atitude de Siza é o reconhecimento de uma coisa que tem uma qualidade indiscutível."
Mudança de paradigma
Para Siza, manter o Chiado era uma evidência. E, no entanto, nos anos 80, essa opção não era evidente para toda a gente. É por isso que o projecto marca a tal mudança de paradigma de que fala Salgado. Um dos exemplos mais recentes (que é apresentado em Veneza) desta forma de encarar a cidade é a recuperação do edifício do Banco de Portugal e a criação do Museu da Moeda, em plena Baixa pombalina, projecto de Gonçalo Byrne e João Pedro Falcão de Campos. "A decisão de manter um edifício daquela índole naquela zona é um desafio, porque actualmente há uma série de requisitos técnicos de segurança", afirma Falcão de Campos.
Outro desafio foram as descobertas arqueológicas, que obrigaram a alterações no projecto inicial, permitindo por fim a integração das descobertas - é o caso da muralha mandada construir por D. Dinis no final do século XIII, que estava alinhada com o saguão do edifício e ficará agora integrada no percurso museológico. Falcão de Campos reconhece, contudo, que este foi um projecto que beneficiou de "condições excepcionais", sobretudo de tempo.
Mas este novo paradigma significará que vamos deixar de construir nas cidades e passaremos apenas a reabilitar o que já existe? "Uma coisa não exclui a outra. Deve-se continuar a construir e vai-se continuar a construir", afirma Inês Lobo. Aliás, entre os projectos escolhidos para Veneza estão construções de raiz como o Terminal de Cruzeiros de Lisboa, de João Luís Carrilho da Graça, ou o novo Museu dos Coches, do brasileiro Paulo Mendes da Rocha (com Ricardo Bak Gordon). E entre as reabilitações há também exemplos muito diferentes - o MUDE (Ricardo Carvalho + Joana Vilhena) é um projecto incomparavelmente mais barato do que o do Banco de Portugal, ali ao lado.
"Não gostava que o que se discutisse aqui fosse apenas o tema económico", continua Inês Lobo. "Estamos num momento de crise, mas a arquitectura sempre funcionou, com muito dinheiro ou com pouco dinheiro. Não acho que seja por aí que se deve discutir a cidade. O problema não é gastar muito dinheiro ali, é gastar muito em tudo, e se há sítios onde é preciso gastar dinheiro para que a obra valha a pena, há outros em que com pouco é possível."
O facto é que há coisas em transformação e é sobre elas que David Chipperfield pede que se reflicta em Veneza - nomeadamente aquilo que no texto de apresentação descreve como "o extraordinário potencial do processo colectivo" que é a arquitectura. E é disso que fala também Falcão de Campos: "A crise veio demonstrar que alguns comportamentos, muitas vezes autistas e egocêntricos, não são totalmente correctos. O arquitecto já estava condenado a trabalhar em grandes equipas. Trabalhadores naquela obra [do Banco de Portugal] houve 1200 ou 1400. A materialização do que a equipa de arquitectos projecta passa pelas mãos deles."
Humildade. Território comum. Respeito pelo passado. No texto que escreveu para a bienal, o fotógrafo Duarte Belo descreve a arquitectura (e todo o pensamento que ela suscita) como "rastos deixados por um olhar reflexo e perplexo de quem não pode deixar de se surpreender com o seu próprio labor na construção da grande cidade infinita". E da cidade diz: "Lisboa é sobrevivência." Veneza, aliás, também.
Os projectos
Lisboa Baixa
- Reconstrução do Chiado - Álvaro Siza Vieira (na foto recortada)
- Museu e Biblioteca do Banco de Portugal - Gonçalo Byrne/João Pedro Falcão de Campos
- MUDE Museu do Design - Ricardo Carvalho + Joana Vilhena
- Fanqueiros - José Adrião
Lisboa Rio
- Museu dos Coches - Paulo Mendes da Rocha/Ricardo Bak Gordon
- Requalificação da Ribeira das Naus - João Nunes/João Gomes da Silva
- Terminal de Cruzeiros de Lisboa - João Luís Carrilho da Graça
Lisboa Conexões
- Parque Mayer e Jardim Botânico - Manuel e Francisco Aires Mateus
- Plano de Acessibilidades à Colina do Castelo - João Favila/João Simões/Pedro Domingos/Rui Mendes
- Príncipe Real - Eduardo Souto de Moura
Nota: participaram ainda nas mesas-redondas Manuel Salgado, Manuel Graça Dias e Bárbara Rangel