“Bibliografia”: os manos Manso vão de jangada até ao Tejo à bolina do “crowdfunding”
"Bibliografia" é o filme-naufrágio de João e Miguel-Manso: uma viagem de jangada do Zêzere pelo Tejo até Lisboa, um recital de textos portugueses de viagem. O "crowdfunding" já começou
“Meu pai não é Rafael Hitlodeu”, escrevia Miguel-Manso em “Bibliografia” (“Contra a Manhã Burra”, 2009), sem saber que iniciava assim o argumento de um filme que verá — mesmo que o vento não esteja de feição — a luz do dia no próximo ano. O pai de Miguel e João Manso não é Rafael Hitlodeu, navegador que conhecemos de “Utopia”, de Thomas More, mas também ele, em 1969, perseguiu uma quimera, que agora os filhos vão tentar replicar.
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“Meu pai não é Rafael Hitlodeu”, escrevia Miguel-Manso em “Bibliografia” (“Contra a Manhã Burra”, 2009), sem saber que iniciava assim o argumento de um filme que verá — mesmo que o vento não esteja de feição — a luz do dia no próximo ano. O pai de Miguel e João Manso não é Rafael Hitlodeu, navegador que conhecemos de “Utopia”, de Thomas More, mas também ele, em 1969, perseguiu uma quimera, que agora os filhos vão tentar replicar.
“É uma história de família”, conta o jovem poeta, que fará 33 anos a 17 de Setembro, último dia do “crowdfunding” (que bonita prenda de aniversário). Reza a história que quatro amigos resolveram construir uma jangada e partiram da Foz da Ribeira da Sertã até ao Cais das Colunas, em Lisboa. Do Zêzere, pelo Tejo. No poema, Miguel cruza a humilde aventura com a “história e o peso da literatura de viagem dos séculos XVI e XVII”. Elenca: “(...) o livro de Duarte Barbosa; a Carta de Pêro Vaz; de Álvaro Velho o Roteiro da Índia (...).”
A vontade de “pôr o poema em prática” e fazer um filme surgiu quando estava a escrever o terceiro livro, “Santo Subito” (2010). Tudo por causa da “utopia da práxis” que, diz, a literatura de viagem portuguesa respira, e que o inspirou: “Ao contrário de outros textos utópicos do início do Renascimento, os textos portugueses procuravam nesse mundo desconhecido a Oriente a ideia de uma sociedade e de uma humanidade diferente daquela que existia na Europa.”
“Oh da barca”
“Quando o poema virou cinema”, Miguel soube o projecto só poderia ser feito com o irmão, João Manso, de 31 anos, formado em cinema. Juntos embarcaram numa espécie de Barca do Inferno do avesso em busca da tripulação.
Natxo Checa, programador da Galeria Zé dos Bois, foi o potencial produtor que recusou produzir. “Pedi-lhe para entrar na produção e ele mandou-me passear: queria entrar na jangada”, graceja Miguel. É, oficialmente, o “Chefe de Máquinas”, o “responsável pelas tarefas de condução e manutenção dos sistemas de propulsão e de produção de energia da embarcação”.
O músico Tiago Sousa, o “Pescador Melódico”, far-se-á acompanhar por um harmónio a bordo, onde “tratará de pescar o peixe tonal que alimentará o banquete cinematográfico”. Juntam-se o “Vão Capitão”, Miguel-Manso, o também poeta Vasco Gato e uma “benesse que não existiu em 1969”: uma “rapariga”, a actriz Maria Leite, que entrará a meio da viagem. A equipa fica completa com, claro, João Manso, Takashi Sugimoto (direcção de fotografia) e Nuno Morão (direcção de som), num projecto com produção da CAMONE – Associação Cultural.
Antecipando os eventuais cortes de financiamento no cinema, e porque queriam fazer o filme “agora”, optaram pelo “crowdfunding” em site próprio. Pedem seis mil euros, num projecto cujo orçamento global é superior a 15 mil. Já ultrapassaram a fasquia dos dois mil. “A grande extravagância deste filme é querer pagar a toda a gente”, ironiza Miguel. A RTP2 comprou os direitos por 15 anos e contam com o apoio de algumas câmaras, como a da Sertã. Por isso, mesmo que o montante esperado não seja atingido, já não há volta atrás, até por “razões contratuais” com o canal de televisão: o filme tem de estar pronto no primeiro trimestre de 2013.
Juventude incendiada
O “crowdfunding”, a decorrer no site, termina a 17 de Setembro; um dia depois arranca a rodagem, que se estenderá até 3 de Outubro. Calculam que só dia 22 estejam na água — há que fazer a jangada primeiro. Saberão como a construir?
No fundo, a jangada é “uma metáfora da juventude” e a viagem “é um regresso sob a forma de naufrágio”, onde tudo começou há 500 anos. “Bibliografia” é um piscar de olho à literatura portuguesa, mas é também “um acto serôdio e tardio de homenagear” os viajantes que agora estão na casa dos 60 anos. Em última análise, é, metaforicamente falando, “um naufrágio simbólico de uma juventude que se deve incendiar”. E talvez literal: “vamos tentar incendiar a jangada no destino”. Mas só no destino: “queremos mesmo chegar a Lisboa”. Se é uma “viagem à Índia”, uma “viagem, ainda” ou uma “viagem à índole”, ainda se verá.
Por ser cinema, há paragens forçosas e planos obrigatórios. Há obstáculos que têm de se ter em conta — como a Barragem de Castelo de Bode, onde vão desmontar a jangada e passá-la para o plano de baixo, à luz do que foi feito em ’69. Mas o objectivo não é contornar o elemento surpresa (“nós não queremos saber como construir a jangada, nem conhecer o rio; não vamos fazer a viagem duas vezes”). É a viagem deles e o filme mostrará isso mesmo: “queremos que comece por documentário e depois vá para outros sítios”. Sejam eles quais forem. Afinal, "o pior naufrágio é não partir".