Onda de greves no Brasil já ocupa o mítico Canecão
O que é que o Canecão - histórica sala de espectáculos carioca - tem a ver com as greves do sector público no Brasil? Tudo, pelo menos desde terça-feira, quando Tadeu Alencar e outros 200 estudantes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) ocuparam as instalações, abandonadas desde 2010.
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O que é que o Canecão - histórica sala de espectáculos carioca - tem a ver com as greves do sector público no Brasil? Tudo, pelo menos desde terça-feira, quando Tadeu Alencar e outros 200 estudantes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) ocuparam as instalações, abandonadas desde 2010.
"Tirámos o cadeado pelas nove da noite", conta Tadeu, 21 anos, estudante de História. "Trouxemos barracas e nos alojámos aqui com cuidado de não mexer nos bens do antigo dono."
Estamos junto às grades da entrada, agora cheias de panfletos. No painel onde costumavam aparecer os nomes de Chico Buarque, Caetano Veloso ou Maria Bethânia há um grande cartaz a anunciar "UFRJ em greve". Outros cartazes dizem: "Por 10% do PIB para educação pública já", "Venha ocupar com a gente", "Caro reitor, este espaço pertence agora à cultura e educação públicas".
Atravessando o pátio, as escadas para o balcão estão cheias de estudantes. Um grevista de microfone fala aos camaradas: "O Governo está com medo da gente e por isso está querendo enganar a gente." Ao lado, mochilas, colchões, uma rapariga a dormir, várias tendas. Subindo, estudantes comem de uma marmita. E, uns passos à frente, fica à vista a decadência: centenas de cadeiras empilhadas sobre as mesas, mais centenas na plateia, nas laterais, até ao palco, onde sobra parte de uma cortina. E o tecto rasgado, com pedaços a cair.
Durante mais de 40 anos, entre 1967 e 2010, este foi o principal cenário do Rio de Janeiro para os grandes nomes da música popular. Como a feijoada de sábado ou o futebol de domingo, o Canecão fazia parte da vida carioca. Ao mesmo tempo, a UFRJ, dona do terreno, e o empresário que o alugava, Mário Priolli, enfrentavam-se nos tribunais. Até que em 2010, após 39 anos de batalha judicial, o Supremo Tribunal deu reintegração da posse à universidade. Priolli deixou para trás mobiliário e equipamento, que a UFRJ, agora depositária, vai transferir em breve para outro local.
Mauro Iasi, 52 anos, presidente da Associação de Docentes da UFRJ, pega no microfone para falar aos estudantes. Veio apoiar a ocupação, retribuindo assim a solidariedade estudantil com a já longa greve dos professores do ensino federal. "Apoiamos a ocupação com o objectivo de transformar isto em espaço de cultura, de resistência ao mercado", diz ao PÚBLICO. "Os alunos estão cientes de que não podem mexer nas partes penhoradas. O empresário estava há anos atrasado no aluguel, sucateando o espaço. E, numa atitude selvagem, quebrou tudo quando saiu: banheiros, instalações eléctricas."
"Desmonte do Estado"A greve dos professores dura há mais de dois meses. "Nossa guerra é por salários e condições de trabalho, e as propostas do Governo agravam as distorsões existentes nas carreiras", diz Iasi. "Somos um dos menores salários do serviço público federal e a nova proposta de aumento nem repõe as perdas, fica abaixo da inflação." Um professor doutorado e com dedicação exclusiva de 40 horas ganha de 4000 a 5000 reais [1600 a 2000 euros]. "Há uma valorização no topo, onde existem poucos, e um achatamento na base."
No Brasil, o ensino superior público é responsabilidade federal, ou seja, do governo de Brasília, embora possa ser oferecido também por estados e municípios. Já o ensino básico está a cargo dos municípios e o secundário dos estados, com salários que muitas vezes não chegam a 500 euros. A imagem das escolas municipais e estaduais degradou-se tanto que os pais de classe média-baixa se multiplicam em trabalhos para pôr os filhos em colégios privados ou nas pouquíssimas escolas básicas e secundárias federais que existem. As federais são vistas como um último reduto de bom ensino público. Por isso uma greve tão longa, afectando universidade e todas as outras escolas federais, soa como um alarme.
"A opção do Governo de Brasília foi por um crescimento fundamentado no mercado", resume Iasi. "Há um desmonte do Estado que se expressa na educação pública. O Governo diz que a universidade tem de se sustentar parte com verbas públicas, parte com iniciativas para gerar recursos, venda de serviços. Então as universidades oferecem cursos de pós-graduação pagos e parcerias com empresas, o que é uma quebra do princípio da educação pública. Os professores são obrigados a concorrer por projectos, o que imita as exigências do mercado. E a universidade cede recursos e profissionais à iniciativa paralela."
O Canecão tornou-se um exemplo deste embate: "A reitoria tem um plano de utilização do espaço em parceria com empresários. Nós contestamos, queremos que seja 100% público."
Em resposta ao contacto do PÚBLICO, o gabinete do reitor Carlos Levi enviou um comunicado dizendo que o Canecão deve ser "um espaço dedicado às atividades culturais da universidade", mas também "atender à demanda da sociedade carioca por grandes espetáculos, como os que tradicionalmente marcaram o local".
O reitor, que recebeu os estudantes na quarta-feira, considera que a ocupação "desvia o foco das questões reivindicatórias", "não contribui para o debate sobre a greve" e é "inoportuna", para além de que "as condições do imóvel oferecem riscos". A UFRJ, informa ainda, "tem 4,5 milhões de reais [1,8 milhões de euros] no orçamento deste ano destinados a reformas de telhado, reforma elétrica e sanitária do local, com processos de licitação encaminhados".
Brecht no peitoMas os estudantes, que se juntaram à greve dos professores em Junho, querem usar o Canecão como um símbolo da luta por cultura e educação gratuita. A T-shirt de Tadeu tem uma frase de Brecht: "Nada deve parecer impossível de mudar." E ele aplica-a: "O investimento na Educação é menos de 5% do PIB. Há uma expansão das universidades públicas, mas estão reféns de ter de ir buscar apoio à iniciativa privada. Nós queremos expansão com qualidade e isso só com 10% do PIB."
Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Educação pediu as questões por escrito, mas não respondeu até à hora de fecho.
Num comunicado há dias, o ministro Aloizio Mercadante diz que o Governo fez "um grande esforço" em responder às exigências dos professores ao propor 25% a 40 % de reajuste salarial. E comentou: "Não conheço nenhuma categoria profissional, de atividade pública ou privada, que tenha recebido um aumento desse porte e conquistado uma carreira em um momento de tantas incertezas econômicas, com um cenário de crise como o que se apresenta."
Os sindicatos mais representativos recusaram a proposta.