Lisboetas gostam dos seus bairros e mais ainda quem mora em Telheiras

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Telheiras é um bairro recente, mas que conseguiu ter vida de cidade. Ali está tudo, dizem os moradores Foto: Rui Gaudêncio

No imaginário dos seus residentes, o espaço em que se movem e habitam não coincide muitas vezes com os limites administrativos, como os das freguesias, e assume um identidade própria: a de bairro. É nestes que se criam sentimentos de pertença, onde se cresce e onde se criam memórias. Esse espaço deve ser heterogéneo e inclusivo. Deve, acima de tudo, procurar a satisfação dos seus residentes, com diversos usos e serviços ao alcance e um comércio que promova as relações pessoais, onde seja frequente ouvir-se um bom dia, uma boa tarde. Numa conversa com investigadores, o nome que mais se ouviu como preenchendo todos estes requisitos foi o de Telheiras.

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No imaginário dos seus residentes, o espaço em que se movem e habitam não coincide muitas vezes com os limites administrativos, como os das freguesias, e assume um identidade própria: a de bairro. É nestes que se criam sentimentos de pertença, onde se cresce e onde se criam memórias. Esse espaço deve ser heterogéneo e inclusivo. Deve, acima de tudo, procurar a satisfação dos seus residentes, com diversos usos e serviços ao alcance e um comércio que promova as relações pessoais, onde seja frequente ouvir-se um bom dia, uma boa tarde. Numa conversa com investigadores, o nome que mais se ouviu como preenchendo todos estes requisitos foi o de Telheiras.

De um estudo sobre algumas comunidades da capital ressalta uma conclusão: os lisboetas estão satisfeitos com os seus bairros. Não há bairros falhados, mas se para realojar pessoas no pós-25 de Abril foram construídos aglomerados de edifícios que nunca farão bairro, também há projectos bem sucedidos, que estão a dar um salto qualitativo, para a segunda geração, quando muitos nem à primeira ascenderam. Telheiras é um deles, onde melhor se está a fazer cidade, onde já existe sentimento de pertença.

Telheiras não é único, mas é um dos mais significativos dos seis casos de estudo que uma equipa de investigadores do Centro de Estudos de Arquitectura, Cidade e Território (CEACT) da Universidade Autónoma de Lisboa realizou durante mais de um ano, sob coordenação de Ana Filipa Ramalhete, com a colaboração de Nuno Pires Soares, do Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional (e-Geo) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O projecto Bairros em Lisboa - Telheiras, Campo de Ourique e Alvalade (bairros planeados), Graça, Ajuda e Galinheiras (formados sem plano urbanístico) - assenta em 720 inquéritos à população e em dezenas de entrevistas a autarcas e associações locais. O objectivo foi enriquecer a teoria existente sobre o conceito de bairro, aprofundar o conhecimento sobre a cidade e contribuir para o seu ordenamento. Trabalho que está a ser realizado em parceria com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e Câmara de Lisboa (CML).

O conceito começa pelos topónimos da cidade - e ainda sem os resultados dos inquéritos realizados em Alvalade e nas Galinheiras - que já localizou 80 denominações. "Há mais do que um bairro em uma só freguesia, mas também há pequenos grupos que conhecem o seu local como bairro. Uma vila operária de Lisboa também pode ter característica de bairro. Fizemos uma tentativa de demarcação de territórios, e de alguns nomes nunca tínhamos ouvimos falar e alguns correspondem, por exemplo, a um ou vários edifícios de realojamento, que a CML designa como bairro. Um só edifício, ou um conjunto de três edifícios, é dito como bairro, como o bairro social do tempo do Estado Novo também era chamado "bairro"", esclarece Filipa Ramalhete.

A classificação de bairro tem raízes sulistas, em Portugal e Espanha, talvez também Itália, como explica a professora do CEACT: "Não só falamos de uma unidade residencial, mas de um conjunto de coisas que as pessoas associam à palavra bairro, que remete para as relações de vizinhança, de interconhecimento, para um determinado tipo de vivência colectiva, que até há pouco tempo era socialmente desvalorizado, ou, no caso de Lisboa, associado aos aglomerados antigos, ou adaptado aos bairros construídos durante e após a primeira metade do séc. XX, caso dos bairros sociais - primeiro os do Estado Novo, seguidos pelos do pós-25 de Abril, termo que caiu em desuso, por estar amarrado a um cariz popular."

"As áreas burguesas, com algumas excepções, não são chamadas bairro. Mas agora, com a crise, baixando à escala local, o conceito ganhou importância pelo novo urbanismo, com a necessidade de harmonizar as áreas de residência com as de emprego, pela necessidade de as aproximar, e também ao comércio. Há a necessidade de essas áreas deixarem de ser monofuncionais, para serem polifuncionais. Assim se ganha a escala do bairro, que é uma construção da proximidade. Alguns têm identidade, pois têm urbanismo e arquitectura facilmente reconhecíveis", argumenta Nuno Soares.

O que deve ter o bairro

E a Alta de Lisboa (Lumiar), que pertence a este último grupo, já poderá ser entendido como bairro, ou ainda é monofuncional? "Será um bairro, ou uma urbanização?", reage Nuno Soares. "Um bairro pode ser uma construção, mas os seus residentes estão interessados em promover a organização de bairro. Já Telheiras tem uma grande organização de bairro e criou essa ideia. Ideia que está a ser transposta para a Alta de Lisboa. Já os Olivais nunca criaram organização, mas é um bairro", concretiza.

"Nos inquéritos na Graça fala-se em história e tradição, mas ainda pouco face ao que era expectável. Aquilo que faz um bairro - é o que temos ouvido e é comum a todos por onde andámos - é ter tudo e todos se conhecerem e haver auto-suficiência", descreve a investigadora. "Não preciso de sair daqui para me abastecer", acrescenta o geógrafo. "Em Campo de Ourique é o mesmo, onde há a ideia de que "o meu bairro é o meu espaço de proximidade"", diz Filipa Ramalhete. É corroborada por Nuno Soares: "É onde eu me sinto seguro, onde conheço os comerciantes e não preciso de sair daqui para ser feliz."

Voltando a Telheiras, e sobre o processo de criar bairro, os investigadores detectaram nas respostas aos inquéritos e entrevistas questões surpreendentes, que partem da população, não da administração da cidade. "Pela associação de residentes foi-nos dito que há contactos com a homóloga da Alta de Lisboa, pois ali há desejo de também fazer bairro", diz a professora do CEACT. "As pessoas querem identificar-se com os locais de residência. E nestes lugares novos, como a Alta de Lisboa, isso é premente. A iniciativa parte de um grupo de pessoas mais esclarecidas que quer tomar a dianteira do processo. O que é novo e interessante, e estamos a falar de áreas perfeitamente burguesas", acrescenta o investigador da e-Geo.

Em suma, estará alguém a tentar fazer aquilo que os planeadores de território não conseguiram? "É tudo físico, só desenho, edifícios, arquitectura. Mas o que faz a cidade é a possibilidade de as pessoas se identificarem com o lugar. É preciso tempo e uma geração. São precisas crianças que ali nasçam, que ali cresçam e vão para a escola, que os pais se conheçam nas reuniões de pais. É isto que faz a cidade e o bairro. Todavia, toda esta gente é deslocada, seja na Alta, seja em Telheiras. A primeira geração não nasceu ali", justifica Nuno Soares.

O vector felicidade está agora identificado como sendo fundamental para a construção do bairro. "O que surge nos inquéritos é que, na generalidade, as pessoas estão satisfeitas com os seus bairros", aponta Filipa Ramalhete. Especifica que não há diferenciação entre os mais antigos ou mais recentes: "Todos estão igualmente muito satisfeitos, não só com o bairro, mas também com o prestígio do mesmo." "Defendem o seu bairro, e assim definem-se a si próprios. Mesmo que nem todos sejam iguais no seu tecido social, a Graça não é igual a Telheiras", junta Nuno Soares.

Uma elite que puxa

Dizem os investigadores que se nota um sentimento de pertença e que há uma procura pelo bairro, até mesmo por alguns que durante muito tempo estiveram fora de moda. Filipa Ramalhete regista que também os novos residentes sentem uma grande vontade de ter um bairro, de pertencer a um espaço: "Tanto quanto nos apercebemos, as pessoas, quando mudam, procuram um determinado bairro e não outro e quando o conseguem dizem-se muito satisfeitas. Também inquirimos não residentes e entre estes há antigos residentes, que entretanto se casaram e foram para outro sítio, ou para a periferia, mas todos demonstram muita saudade, o que é natural. Identificam-se com o local. "Aqui toda a gente se conhece, onde estou agora os vizinhos nem se falam." Regressar à proximidade é um desejo manifestado. No caso de Telheiras, quem ali nasce não faz tenção de se ir embora. Há ali um discurso interessante, consciente, de pôr Telheiras como um bairro exemplo". "Há uma elite que puxa por estas ideias", nota Nuno Soares.

Em Telheiras coloca-se a instrução pessoal e o serviço criativo ao serviço do bairro pela melhoria da qualidade de vida, conta Filipa Ramalhete. Fazem-no "através de blogues e assim se gera um conjunto de dinâmicas, de criatividade locais ligadas a estas novas ideias". Já em Campo de Ourique "também há discurso de criatividade, mas mais ligado ao comércio tradicional e à qualidade dos próprios produtos. A iniciativa como o cartão de bairro também coloca o capital social ao serviço da promoção de uma determinada ideia de bairro".

Com estas iniciativas nasce também um maior consciencialização de intervenção pública activa na discussão de planos municipais, factor raro em Portugal. "Na Graça, onde já existe um conjunto de novos residentes, são eles próprios que estão a promover algumas iniciativas locais", conta Filipa Ramalhete. Do mesmo está convencido Nuno Soares: "Há elites que vêm à superfície. Quando há oportunidade de participarem, aparecem, seja para discutir um desenho de rua ou jardim."

Nos núcleos ou bairros onde isso não acontece haverá o perigo de ficarem esquecidos, de não progredirem? "Alvalade era um bairro de cidade, urbano, quando todos os outros tinham ar de aldeia (Madre Deus, Encarnação, de casas pequenas, igrejinha e escola, e Caselas, por exemplo), mas aí não se fez cidade", diz o geógrafo. "Na zona consolidada não se sabe muito bem onde acaba um [bairro] e começa outro. Na expansão (séc. XX), eles ficaram isolados", refere Filipa Ramalhete. Nuno Soares junta outros casos: "A Penha de França tem desenho de bairro, mas a vivência de bairro faz-se é na Morais Soares. Tem pouco comércio, é marginada por eixos com vários transportes públicos, mas fraca acessibilidade ao miolo. Também as Avenidas Novas de Ressano Garcia nunca fizeram bairro. Do topónimo falam os técnicos e os historiadores. Se se disser a um taxista que queremos ir para as Avenidas Novas, ele vacilará: para o Areeiro, para a Avenida da República ou para Alvalade? E há nomes de bairro que caíram em desuso e não se utilizam - o bairro Camões, junto ao liceu homónimo. Outros topónimos não vingaram, ou pela expansão, ou por integrarem a cidade com muita eficiência, ou por se terem terciarizado demasiado perdendo densidade demográfica."

Comércio agregador

Nos inquéritos nota-se grande importância dada à relação entre a zona residencial e o serviço comercial local. Para se ser bairro tem de haver comércio, que promove a vivência de rua. "Na Ajuda, que é um conjunto de bairros, mas que têm identidade comum, tem palácio, tem quartéis, há o 2 de Maio (bairro social) e há a Ajuda, onde se abastecem. Ali é o centro que agrega os bairros e a própria freguesia. Dizemos que a Ajuda é Lisboa em miniatura", observa a investigadora. É o comércio de proximidade o elemento agregador, afirma. São dados iguais aos que foram recolhidos em Telheiras e na Graça, o que a equipa diz ser surpreendente. "Mas a Ajuda tem problemas, de relacionamento com grupos étnicos, é um tecido mal cosido. É como a história de Lisboa após a revolução industrial. Até lá, todos viviam em comunidade, depois as classes separaram-se", recorda a professora.

Com a anunciada reorganização administrativa da cidade, admitem os investigadores que tudo vai continuar na mesma. "O que interessa às pessoas é saber onde fica o centro de saúde. Não a junta, que serve para as classes desfavorecidas. Para a classe média, ela de pouco ou nada serve", considera Nuno Soares.

Daqui poderão saltar pistas para os técnicos administrativos, urbanistas, arquitectos? Talvez não. Talvez quem mais beneficie sejam os residentes dos bairros organizados. "Todos falamos nos bairros, mas os urbanistas não sabem o que é o bairro, pois são palavras cujos conceitos são indefinidos. Até temos falado na figura do gestor de bairro. Lisboa vai ser dividida por unidades. É uma ideia forte, mas deveria nascer de outra forma de democracia, não a partir da estrutura política convencional, mas de consenso das forças vivas do bairro. Ninguém fala disto, mas pode haver uma assembleia de administradores de condomínios do bairro, uma comissão de bairro", sugere Nuno Soares.

Os pontos fortes

Segundo os dados retirados das respostas já trabalhadas pela equipa de investigação, o mais elevado grau de satisfação com alguns aspectos do bairro encontram-se no comércio, no prestígio [do bairro] e nos habitantes [vizinhos], situações estas referidas nos inquéritos em Telheiras, Graça e Campo de Ourique. Nos mesmos locais, o ponto de mais baixa satisfação encontra-se na dificuldade de estacionamento. Para um registo médio de satisfação naqueles bairros foi salientado o capítulo da segurança. Segundo a conclusão da equipa de investigadores, são referidas como necessidades os equipamentos de proximidade e que se destinam à actividade desportiva e também as zonas verdes. O comércio de proximidade é frequentemente invocado como premente para os moradores dos bairros lisboetas. "Pensando à escala local, numa escala de sossego, as pessoas agora não querem, necessariamente, enfiarem-se ao fim-de-semana num hipermercado", sublinham os investigadores responsáveis pelo estudo.