Representar o presente
Compilação das histórias que Marco Mendes (Figueira da Foz, 1978) foi publicando desde 2007, Diário Rasgado exprime a vitalidade de uma banda desenhada que se faz em Portugal. Adulta, exigente, que lida com as (suas) convenções com a mesma liberdade do cinema ou da literatura. Porventura haverá quem refute esta asserção. Afinal, o livro tem afinidades evidentes com a autobiografia, que se tornou, (pelo menos) desde a década de 1990, um género popularizado e “normalizado” na Europa e nos Estados Unidos. Na verdade, para irmos directos ao assunto, tais afinidades não validam qualquer desconfiança prévia, mas a aproximação de Marco Mendes, fundador do colectivo A Mula, é especialmente oblíqua, fragmentada e, ao criar ficções a partir de personagens autênticas (os amigos, a namorada, a família), revela o fantástico real da vida evocado por Baudelaire.
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Compilação das histórias que Marco Mendes (Figueira da Foz, 1978) foi publicando desde 2007, Diário Rasgado exprime a vitalidade de uma banda desenhada que se faz em Portugal. Adulta, exigente, que lida com as (suas) convenções com a mesma liberdade do cinema ou da literatura. Porventura haverá quem refute esta asserção. Afinal, o livro tem afinidades evidentes com a autobiografia, que se tornou, (pelo menos) desde a década de 1990, um género popularizado e “normalizado” na Europa e nos Estados Unidos. Na verdade, para irmos directos ao assunto, tais afinidades não validam qualquer desconfiança prévia, mas a aproximação de Marco Mendes, fundador do colectivo A Mula, é especialmente oblíqua, fragmentada e, ao criar ficções a partir de personagens autênticas (os amigos, a namorada, a família), revela o fantástico real da vida evocado por Baudelaire.
Diário Rasgado constrói-se sobre pranchas de uma ou duas páginas (por vezes quatro), publicadas em sítios avulsos. Todas têm títulos secos, resumidos (Alentejo, Buraco ou Socialista) e narram anedotas, desencontros e outros momentos mais harmoniosos com os amigos, a namorada e a família. A ironia violenta de Seinfeld, filtrada por um realismo sujo (Mano ou 30 anos) e a irrisão burlesca de I Vitelloni, de Federico Fellini, emergem aqui e ali, mas sem o niilismo da sitcom e a redenção final do filme do cineasta italiano. Marco Mendes debate-se com a preguiça, a separação física da namorada, as dúvidas quanto a um futuro na banda desenhada. E o desenho acompanha-o. Tanto pode ser tremido, furioso, abandonado às suas imperfeições, aos seus remendos (as situações cómicas ou domésticas), como demorado, preciso, distante, sobretudo nas histórias que dispensam diálogos: por exemplo, Saudade, que descreve uma ida ao cemitério, ou Partida, epílogo provável e doloroso da uma relação amorosa. É esta impermanência que lhe permite captar a metamorfose quotidiana das coisas ou representar o que há de eterno na circunstância. Vejam-se, a propósito, as quatro pranchas que constituem Ressonar ou a sequência Jantar e PHD, exemplar da banda desenhada como arte que coloca sobre a mesma superfície o tempo e o espaço.
Talvez porque consciente da efemeridade da existência, Marco Mendes não procura congelá-la. O seu rosto, o de Lígia e os de outras personagens vão-se tornando familiares, mas nunca se fecham. Não há “bonecos”, apenas (e para citar de novo Baudelaire) a atitude solene ou grotesca dos seres e a sua explosão luminosa no espaço (reparem em Ramblas ou Afrodite).
O fantástico e a história de arte também figuram em Diário Rasgado, como discretas pontuações poéticas em torno da auto-representação e da própria narrativa. Um rato aparentado com Mickey Mouse partilha um cigarro como o autor que nas páginas seguintes ouve uma reprimenda de uma mão gigante (“Vai trabalhar!”). Em Evereste, é a paisagem de Caspar David Friedrich que sublinha o ennui de Marco Mendes, e em Domingo à Noite as imagens de um jogo de futebol terminam com uma citação de Nighthawks, de Edward Hopper. Não estamos - isto é importante - perante efeitos decorativos. O que importa a Marco Mendes, acima de tudo, é a representação de um presente.
Se a relação de Marco com Lígia parece estruturar uma boa parte do livro, a crise económica e social insinua-se como subtexto. A precariedade, a incerteza quanto ao futuro, a falta de dinheiro e as más notícias que chegam da televisão apoderam-se dos diálogos e das situações (Merkel, Socialista, Recessão). Diante de tal cenário, o autor não tem a tentação panfletária de apontar culpados. Limita-se a documentar o quotidiano de que é espectador ou a troçar das suas crueldades, o que não nos impede de encontrar nas histórias uma rejeição libertina (?) dos valores dominantes (competitividade, corpo são, sucesso). A última imagem (uma vinheta que ocupa a totalidade de uma página), onde os fuzilados e os carrascos de El Tres de Mayo, de Goya, desapareceram para dar lugar a uma pintura mural e à sucata de um carro, sugere essa rejeição: é Marco Mendes quem segura a bandeira.