Os olhos desta mulher mudam vidas (a música também)
A canção First time I ever saw your face terá sido composta, assim reza a história, pelo músico folk britânico Ewan MacColl, em 1957, para a sua então amante e futura mulher Peggy Seeger. Se canções há que um autor quer ver ganharem vida própria e passarem de boca em boca, aceitando que o seu nome se perca até pelo caminho, outras, como esta, só acidentalmente poderiam deixar de ter por única destinatária a mulher que lhe servira de musa. Por isso, cada nova versão da canção que foi brotando ao longo dos anos apenas deixava MacColl mais exasperado com o trajecto descontrolado de uma pequena criação que, julgava, era dele para ela e, no limite, testemunhável por terceiros.
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A canção First time I ever saw your face terá sido composta, assim reza a história, pelo músico folk britânico Ewan MacColl, em 1957, para a sua então amante e futura mulher Peggy Seeger. Se canções há que um autor quer ver ganharem vida própria e passarem de boca em boca, aceitando que o seu nome se perca até pelo caminho, outras, como esta, só acidentalmente poderiam deixar de ter por única destinatária a mulher que lhe servira de musa. Por isso, cada nova versão da canção que foi brotando ao longo dos anos apenas deixava MacColl mais exasperado com o trajecto descontrolado de uma pequena criação que, julgava, era dele para ela e, no limite, testemunhável por terceiros.
Só que a escalada de popularidade fez-se com total inclemência. Começou inocente no Kingston Trio, passou para os Peter, Paul and Mary e daí para uma deslumbrante versão desacelerada de Roberta Flack, em 1969, que se tornou um caso sério de sucesso depois de Clint Eastwood a ter escolhido para a banda sonora de Play Misty for Me, a sua estreia na realização, dois anos mais tarde. A partir daí, e até ao fim da sua vida, MacColl não esconderia o desdém por todos quantos traíram a sua composição. Em casa, contou a sua nora, tinha uma secção especial da colecção de discos dedicada à tortura de ter de olhar para todas as gravações de First time I ever saw your face. Chamava-lhe, carinhosamente, a Câmara dos Horrores.
Foi com a versão de Flack a não lhe dar descanso aos ouvidos que Wayne Coyne, dos Flaming Lips, se meteu no carro uma noite, a caminho de Dallas, para se encontrar com Erykah Badu. (Uma viagem que, a confiar no site Answers, demora de seis a oito horas, conforme se viaje com o pé no acelerador ou com crianças no banco de trás, respectivamente). Wayne ligou-lhe a caminho, avisando que queria trabalhar com ela. Sorte a dele, Badu achava-lhe piada às extravagâncias e passadas algumas horas estavam em estúdio a gravar dois temas para o álbum The Flaming Lips and Heady Fwends, lançado originalmente a reboque do Record Store Day e prestes a conhecer uma edição mais global. Um dos temas, Now I understand, escapa tangencialmente à mera brincadeira de estúdio. Mas a aposta de Coyne estava em First time I ever saw your face, um slow motion minimal psicadélico sobre a qual a voz de Badu parece um elemento enxertado de outro tempo - do tempo de Flack. Apesar da resistência inicial, Badu deixou-se convencer. O arrependimento viria depois. Por ondas. Em crescendo.
Após uma sessão de estúdio em que ficou a saber o quão específico Coyne consegue ser quanto ao que pretende de uma canção, Erykah deixou-se ainda levar pelo líder dos Flaming Lips e participou - mais a sua irmã Nayrok - no hoje controverso teledisco. Os Lips permitiram depois que o site Pitchfork estreasse uma montagem do vídeo antes que Badu desse o seu ok. E, se dúvidas tivera durante as filmagens, certezas teve depois a cantora quando viu a sua nudez e a de Nayrok numa banheira, o corpo dela escondido pelo cabelo, o da irmã coberto de uma chuva brilhante e viscosidades que pretendiam fazer-se passar por sangue e sémen. O que motivou um ataque de fúria de Badu, acusando Coyne de não ter respeitado o acordo, de tê-la manipulado premeditadamente e, pior, de ter uma visão artística corroída pelo mau gosto e pelo desejo gratuito de chocar.
Dificilmente seria a nudez, de resto, a provocar o escândalo em Badu. Em 2010, no vídeo de promoção de New Amerikah Part Two, Window seat, Erykah avança num plano sequência que tomou as ruas de Dallas de surpresa, libertando-se de todas as peças de roupa enquanto prossegue a sua marcha e até que cai no chão, totalmente nua, ao som de um disparo, na proximidade do lugar onde John F Kennedy foi atingido mortalmente. Depois, em off, fala-nos de um outro assassínio, o da invidualidade, de que todos seremos cúmplices. Circulamos em manada, desconfiamos uns dos outros, sentimo-nos mais confortáveis e seguros em grupo, receamos a diferença, recusamos a evolução. Mais ou menos isto. O vídeo somou centenas de milhares de visualizações logo no arranque. Prova de que era uma boa ideia, e também aquilo de que a Polícia precisava para apresentar uma queixa contra a cantora por conduta desordeira.
AmerikahClaro que a inocência de Erykah Badu não é tão elástica que não disparasse logo o alarme de potencial polémica durante as filmagens com os Flaming Lips. Por muito que se afirme contrariada, a verdade é que Badu sempre teve uma atracção desmesurada por rasgar convenções de todo o tipo. Algo que, de certa forma, diz ela, lhe foi oferecido de bandeja com a edição do primeiro álbum, Baduizm, em 1997. O disco rendeu-lhe vendas notáveis, quatro nomeações para Grammy - venceu duas categorias -, mais uns tantos prémios e o título quase instantâneo de rainha da neo-soul. Após uma década de 80 em que a soul ficou ao abandono de experiências pop como as levadas a cabo por Stevie Wonder ou Michael Jackson e pelo aparecimento de figuras como Whitney Houston - que abriria caminho, no campeonato de gargantas mais histriónicas do burgo, para Mariah Carey e semelhantes -, Erykah Badu surgiria ao lado de gente como Lauryn Hill, The Roots ou D'Angelo, estabelecendo uma ponte para a soul clássica dos anos 70 mas mostrando claramente que a soul que faziam era contemporânea do hip-hop e não desprezava o jazz.
Esse ano de 97 traria ainda a Erykah o primeiro filho e um disco ao vivo, Live. O sucesso foi tal, a vida corria-lhe tão bem, que percebeu que essa parte, a de chegar às pessoas e sentir-se realizada, estava resolvida e podia riscá-la da lista de preocupações. A partir daí o jogo passou a ser apenas um: satisfazer-se artisticamente. Em entrevista recente a uma revista australiana dizia mesmo: "Quero ser valorizada pelos meus pares. Enquanto artista sou como uma criança de três anos - Mãe, olha o meu desenho!".
Criada, de facto, pela mãe e pelas duas avós, Erykah Badu foi sempre uma mulher de pavio curto, com a boca cheia de palavras feministas e contestatárias, reclamando mudanças sociais e políticas, prontas a cuspir. Mama's Gun, o seu segundo álbum, confirmaria essa inclinação, deixando claro que Erykah não pretendia embarcar num caudal de produções que lhe roubasse demasiado espaço à vida pessoal - hoje vai no terceiro filho e dedica as suas manhãs à escolarização da prole. Essa vertente mais política voltaria a marcar fortemente a sua obra muitos anos mais tarde, com o espantoso díptico New Amerikah: Part One (4th World War), de 2008, e Part Two (Return of the Ankh), de 2010. A divisão, explica, faz-se pela temática das letras. O primeiro disco mais ligado ao hemisfério cerebral esquerdo, "analítico, político, masculino, opinativo", o segundo mais sintonizado com o direito, um jorro emocional, honestidade não processada, mais próximo da inocência sem expectativas de Baduizm.
New Amerikah foi sendo preparado com a ajuda das novas tecnologias, tendo em conta os afazeres familiares de Erykah: recebia músicas no email, passava-as para o programa GarageBand e ia gravando em maqueta as suas vozes enquanto punha os miúdos a aprender o alfabeto ou a estudar sobre o espaço. Agora, enquanto se divide com a recente ocupação de parteira doula, Badu fará suceder às suas participações nos discos de Flaming Lips e dos Rocket Juice and the Moon (Damon Albarn mais Flea mais Tony Allen mais convidados vários, onde podemos ouvir Badu versão afrobeat), dois discos que a devolvem à primeira linha da criação musical.
Primeiro, deverá chegar o álbum dos Cannabinoids, trupe de produtores de hip-hop que acompanha Erykah em palco. Enquanto Cannabinoids (compostos químicos que são os princípios activos da marijuana), no entanto, o conceito escapa à habitual prestação soul/hip-hop/funk, uma vez que a postura se aproxima largamente daquilo que é mais habitual em formações de jazz: em concerto, vão preparados sobretudo para o improviso, opção que implica frequentemente injecções de psicadelismo e estranhezas várias na toada soul que compõe o território natural da cantora. Também com a colaboração dos Cannabinoids, Badu prepara um novo disco a solo. Do qual podemos ter apenas a certeza que comportará o risco criativo a que não costuma virar a cara.
A sua presença é de tal maneira impressionante que corre o rumor de que olhar Erykah Badu nos olhos durante cinco segundos pode trazer consequências de várias ordens para qualquer incauto: uma paixão fulminante pela mulher, passar a usar calças de crochet ou mudar radicalmente de prioridade existencial. Mais ou menos o mesmo que Erykah Badu tenta alcançar com a sua música sempre que sobe a um palco. Oiçamo-la. Olhemo-la.