Manuel Faria de Almeida: um olhar livre condenado pela censura

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A censura deixou marcas em Faria de Almeida Carla Rosado

A lembrança desse dia quase se apagou da memória de Manuel Faria de Almeida. "Mil parabéns. Ganhámos Catembe", dizia o telegrama do produtor António da Cunha Telles, em 1964. Tinha 30 anos. Hoje, o realizador não sabe se há de olhar para trás ou esquecer que Catembe (1965) existiu.

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A lembrança desse dia quase se apagou da memória de Manuel Faria de Almeida. "Mil parabéns. Ganhámos Catembe", dizia o telegrama do produtor António da Cunha Telles, em 1964. Tinha 30 anos. Hoje, o realizador não sabe se há de olhar para trás ou esquecer que Catembe (1965) existiu.

O filme foi uma conquista. E uma perda. Um olhar livre, logo condenado à nascença, sobre a vida em Lourenço Marques, nos sete dias da semana, organizado como o Cléo de 5 à 7 de Varda. Um filme que não desafiava a censura, fazia como se ela não existisse. Um filme raro no panorama de outros filmes apoiados pelo Fundo do Cinema Nacional e formatado pela vontade da propaganda. E no entanto, também ele foi subsidiado. Mesmo antes da rodagem, já havia alertas da PIDE. Catembe teve depois 103 cortes da censura tornando-se o filme mais censurado de sempre, com menção no Guiness. Os 87 minutos do original foram cortados para 48 minutos pela Agência Geral do Ultramar. Faria de Almeida remontou o filme, para lhe dar sentido com o que lhe restava. Mesmo assim, a Inspecção-Geral dos Espectáculos proibiu o filme. Faria de Almeida desistiu. Não queria fazer mais cortes.

A censura deixou-lhe marcas. "Na altura sim. Senti-me atacado na minha criatividade. Fiquei sem saber o que fazer." Decidiu: "Não faço mais filmes de fundo. Vou dedicar-me ao documentário." Virou a página. Mais tarde, ganhou prémios como documentarista. Foi presidente da Tobis e do Instituto Português de Cinema. Na RTP, foi responsável de produção-realização e de formação.

Em nenhum momento pensou em não pôr no filme o seu olhar poético e a visão realista que tinha das colónias. O seu cosmopolitismo abre-lhe horizontes. Dá à obra esse "olhar de subtileza crítica", nas palavras do investigador José de Matos-Cruz, e traz-lhe novidades sobre o que era Moçambique nos anos 60.

Depois de concluir o curso em Londres, de vencer o 1º prémio do Festival Cinestud de Amesterdão com a curta Streets of Early Sorrow e de estagiar na cinemateca francesa, Faria de Almeida estava cheio daquela ideia do cinema directo, muito montado, sincopado, que vira em Londres. Era admirado de Varda, Chris Marker, Resnais.

"Quando decide fazer um filme, Faria de Almeida está muito mais próximo daquilo que se passa no mundo e num regime mental muito mais aberto do que alguns realizadores a filmar em Portugal que conheciam os limites e sabiam até onde podiam ir", diz Maria do Carmo Piçarra, investigadora.

Catembe não sabia ser outra coisas que não ela própria: a outra margem de Lourenço Marques, vila de pescadores de andrajos e olhar intenso, cuja imensa pobreza contrasta com o bem-estar dos colonos em Lourenço Marques, ou a personagem imaginada por Faria de Almeida, com o mesmo nome. "Fiz Catembe por gostar muito de mostrar o que achava que não estava bem."

O filme estava pronto em 1965 mas nunca teve estreia. Foi visto depois do 25 de Abril na Cinemateca e numa sessão no Nimas. Em Setembro, vai ser exibido no Department of Arts, do Goldsmiths College, na Universidade de Londres.