Há um segundo genoma humano e é o dos micróbios que nos habitam
A importância deste "jardim botânico" interno, deste "órgão" invisível que pesa cerca de dois quilos (mais do que o nosso cérebro!) e que vive sobretudo nos intestinos, começa apenas a emergir. Sabe-se que as bactérias intestinais participam na digestão e até produzem vitaminas, mas a ideia de que o seu papel extravasa ainda mais o foro digestivo é recente.
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A importância deste "jardim botânico" interno, deste "órgão" invisível que pesa cerca de dois quilos (mais do que o nosso cérebro!) e que vive sobretudo nos intestinos, começa apenas a emergir. Sabe-se que as bactérias intestinais participam na digestão e até produzem vitaminas, mas a ideia de que o seu papel extravasa ainda mais o foro digestivo é recente.
Graças aos espectaculares avanços das técnicas de sequenciação genética, que há 12 anos permitiram ler o genoma humano, os cientistas estão agora a estudar o que alguns já chamam o "segundo genoma humano" - o genoma colectivo dos micróbios com os quais convivemos - e a tentar perceber o seu impacto na saúde.
Existem dois grandes projectos de sequenciação do "microbioma" (abreviação de genoma do microbiota) humano: o Projecto Microbioma Humano (HMP), lançado em 2007 pelos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA; e o projecto Metagenómica do Tracto Intestinal Humano (MetaHIT), lançado em 2008 pela Comissão Europeia e a China.
Há pouco mais de uma semana, o HMP publicou 17 artigos (dois na revista Nature e 15 na PLoS Biology) apresentando o primeiro "rascunho" genético desse ecossistema - incluindo um catálogo de cinco milhões de genes de bactérias, vírus, fungos e outros bichinhos -, bem como os primeiros estudos das suas características e das suas relações com doenças humanas. As sequências genéticas foram obtidas a partir de amostras colhidas em vários locais anatómicos - como intestino, pele, nariz, boca, garganta, vagina, fezes - de 242 pessoas saudáveis. Os cientistas afirmam ter assim identificado a maior parte das espécies microbianas comuns que habitam o corpo humano.
Num comentário na Nature a acompanhar as publicações, David Relman, da Universidade de Stanford, EUA, fazia, no entanto, notar que o estudo do microbioma humano tem sido "uma lição de humildade" e que "as funções de todas estas comunidades microbianas permanecem em grande parte desconhecidas". E salientava que a diversidade individual e geográfica do microbioma humano ainda não pode ser avaliada, dado o reduzido número de pessoas estudadas e o facto de elas residirem todas em países desenvolvidos, com estilos de vida semelhantes.
O que se tem tornado cada vez mais claro é que o saudável desenvolvimento do nosso sistema imunitário depende intimamente do microbiota intestinal, sobretudo bacteriano. Só que, até aqui, pensava-se que essas bactérias benéficas eram as mesmas para todos os mamíferos. Mas agora, na última edição da revista Cell, Dennis Kasper e colegas da Universidade de Harvard, EUA, mostram, pela primeira vez, que as bactérias do intestino humano são específicas da nossa espécie e... não funcionam no ratinho.
Os cientistas criaram animais sem flora microbiana própria. A seguir introduziram, num grupo destes roedores, micróbios intestinais habituais dos ratinhos, enquanto noutro grupo colocaram micróbios do intestino humano. Nos dois grupos, as floras intestinais desenvolveram-se de forma aparentemente normal. Porém, essa proliferação não teve efeitos equivalentes: os ratinhos que tinham o intestino colonizado por bactérias humanas apresentavam níveis muito reduzidos de células imunitárias. "Apesar da abundância e da complexidade da comunidade bacteriana", explica Hachung Chung, uma das co-autoras, "era como se os ratinhos não reconhecessem as bactérias humanas - como se, de facto, não tivessem bactérias nenhumas."
Quando repetiram a experiência introduzindo nos ratinhos a flora intestinal habitual dos ratos, o mesmo ocorreu - o que é ainda mais surpreendente porque são duas espécies próximas. E quando infectaram os animais com salmonelas, os ratinhos com flora intestinal humana foram incapazes de lidar com o agressor.
Para os cientistas, os resultados mostram que a as nossas bactérias intestinais evoluíram juntamente connosco e confirmam os potenciais perigos que a sua perda poderia acarretar, dada a nossa utilização intensiva de antibióticos e os nossos ambientes de vida ultra-higiénicos. Para Kasper, "a prevalência actual de doenças auto-imunes - tais como a asma, a esclerose múltipla e as doenças inflamatórias do intestino - poderão ser, pelo menos em parte, a consequência da crescente vulnerabilidade da relação entre humanos e micróbios, fruto da evolução".
O terceiro genoma?As surpresas não acabam aqui. Num artigo ontem publicado online na revista Genome Research, Rotem Sorek e colegas, do Instituto Weizmann de Ciência em Rehovot, Israel, apresentam uma análise daquilo a que se poderia talvez chamar o "terceiro genoma humano": a população de vírus que está constantemente a atacar a nossa comunidade de bactérias benéficas.
Os cientistas utilizaram o facto de as bactérias, para se protegerem desses predadores (um tipo de vírus chamados fagos), serem capazes de lhes "roubar" bocadinhos de ADN e de os integrar em locais específicos do seu próprio genoma.
"No nosso estudo, procurámos esses bocados de ADN de fagos roubados no material genético das bactérias que vivem no intestino humano", diz Sorek. "A seguir, utilizámos essas peças para identificar os fagos que coexistem com as bactérias no intestino humano."
Os resultados mostram que centenas de tipos de vírus infectam repetidamente o nosso microbiota intestinal. "Estes vírus podem matar algumas das nossas bactérias intestinais e é portanto provável que tenham impacto na saúde humana", diz Sorek. Torna-se assim essencial perceber as pressões que os fagos exercem sobre essas bactérias.