Watergate: a América perdeu a inocência há 40 anos

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Carl Bernstein e Bob Woodward em Washington numa fotografia de 2005: os dois continuam a trabalhar como jornalistas AFP

"O que seria Washington sem um escândalo político?", pergunta a voz expelida pelos altifalantes quando o barco passa diante de um conjunto de edifícios de betão de silhueta arredondada. Contemplar a capital americana a partir do Potomac tem destas coisas: depois de os turistas verem a Washington marmórea e monumental - imaculada, portanto -, o rio leva-os à cena do crime: Watergate.

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"O que seria Washington sem um escândalo político?", pergunta a voz expelida pelos altifalantes quando o barco passa diante de um conjunto de edifícios de betão de silhueta arredondada. Contemplar a capital americana a partir do Potomac tem destas coisas: depois de os turistas verem a Washington marmórea e monumental - imaculada, portanto -, o rio leva-os à cena do crime: Watergate.

A 17 de Junho de 1972, cinco homens de fato e luvas cirúrgicas assaltaram a sede do Partido Democrata em Watergate para instalar aparelhos de escuta. Um segurança detectou fita adesiva na fechadura de uma das portas do edifício e alertou a polícia. Os homens foram detidos. Um deles trabalhava no comité de reeleição do Presidente Richard Nixon. Dois repórteres do Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, começaram a investigar o caso e as suas possíveis ligações à Casa Branca. Foi o começo de um processo de dois anos que expôs a rede de acções criminosas operadas por um Presidente. "Watergate não foi apenas um acontecimento, mas uma série de acontecimentos" que revelaram que "a hostilidade e a espionagem de inimigos eram uma forma de vida na Administração Nixon", disse esta semana Bob Woodward.

Foi um choque. O momento em que o país perdeu a inocência. Como Alicia Shepard, uma jornalista e professora que escreveu um livro recente sobre Woodward e Bernstein, explicava esta semana, num evento comemorativo de Watergate, a ideia de que o Presidente americano pudesse ser um vigarista era inimaginável - para os correspondentes que cobriam a Casa Branca (uma elite de homens brancos de meia-idade) e para os americanos em geral. "Claro que hoje nós partimos do princípio de que o Presidente é um vigarista", disse Shepard, e o auditório no Newseum, um museu de Washington, riu sem contestar. Watergate "transformou os americanos em pessoas cínicas, desconfiadas do governo, dispostas a acreditar o pior possível dos seus líderes", escrevia esta semana o Washington Post. Algumas pessoas diriam: demasiado cínicas, demasiado desconfiadas do governo, demasiado dispostas a acreditar o pior possível dos seus líderes.

Quarenta anos depois, há nostalgia nas memórias de Watergate: se foi um trauma colectivo, também foi um momento em que uma imprensa vigilante funcionou e os partidos políticos puseram o sentido de dever e o bem comum acima das lealdades partidárias. Tanto republicanos como democratas aprovaram a criação de um comité de investigação do caso Watergate e de um Presidente republicano, algo que parece impossível no clima de guerrilha política que domina Washington hoje. E persiste a noção de que a imprensa americana não cumpriu as suas obrigações durante a administração de George W. Bush e a invasão do Iraque.

Nos dias de hoje, só Bob Woodward consegue dizer que ser repórter é a melhor profissão do mundo sem provocar um sonoro "oooooh" na assistência. Aos 69 anos, é uma eminência sem ter nada de pardo. Continua a trabalhar, a aparecer em casa de fontes renitentes sem aviso prévio, a escrever livros sobre presidentes (está a preparar um segundo livro sobre Obama). Para quem tem dificuldade em distinguir Bob Woodward de Carl Bernstein, Woodward é Robert Redford no filme de 1976, Os Homens do Presidente. "Não fazem ideia de quantas mulheres desapontei", disse Woodward no Newseum, falando sobre o facto de ter sido interpretado por Redford. Excesso de humildade ou falsa modéstia: Woodward é um homem bonito. Quando o moderador sugere que ele fez história, Woodward mexe-se na cadeira, como se a ideia o incomodasse. É oposto dos jornalistas-celebridade que se colocam no centro das histórias.

Woodward e Bernstein - e, sobretudo, o filme de 1976 - inspiraram gerações de estudantes de jornalismo. Mas, disse Alicia Shepard, a ideia de que a dupla derrubou Nixon - a única demissão de um Presidente na história americana - é um mito. "As acções do FBI e do Supremo Tribunal foram cruciais."

Watergate aconteceu há 40 anos, antes da Internet e da CNN. Se acontecesse hoje, na era do Twitter e do email, a cobertura seria diferente? "Às vezes falamos com estudantes de jornalismo e eles parecem pensar que a Internet é uma varinha mágica e que basta pesquisar "fundo secreto" [que serviu para pagar o "assalto" ao Watergate] no Google para obter toda a informação necessária", diz Woodward. "As coisas não são assim. Aquilo que é mais importante não está na Internet."

O caso Watergate praticamente desapareceu dos manuais de história dos liceus americanos. Os professores dizem sentir dificuldade em suscitar o interesse dos alunos. "É frustrante, mas os miúdos não se impressionam com Watergate", dizia esta semana um professor de ciências sociais ao Washington Post. "Eles já estão à espera de que o Presidente faça alguma coisa de mal."