“Corrupção” (“The Big Heat”), de Fritz Lang (1953)
Quando se quer que as pessoas se lembrem imediatamente deste filme, dizemos apenas: “Aquele filme em que a Gloria Grahame apanha com o café a ferver”. Mas também é o filme em que num bar alguém toca ao piano “Put the Blame on Mame”
De volta ao filme negro americano, vamos abordar esta semana “The Big Heat”, chamado em Portugal “Corrupção” e estreado no país de origem em 1953 (os espectadores portugueses só o puderam ver nos cinemas dois anos depois). Mais uma vez, é interessante verificar que, independentemente do tema, até mesmo do realizador, há nestes filmes das décadas de 30 a 50 um ingrediente que, do meu ponto de vista, contribui para um tom final de encantamento, que é, além da conjugação de artistas das mais variadas especialidades — muitos deles no seu auge — as soluções encontradas para tratar de temas controversos, incómodos ou proibidos, de forma a poder seguir-se, claramente, o essencial da questão de fundo, enquanto se tenta esticar ou contornar os condicionamentos a que os criadores estavam submetidos no que diz respeito ao que se podia mostrar ao público. Entre essas soluções encontramos o recurso ao simbolismo, a realidades esquemáticas, a elisões, a representações por ocultação de imagem que, no caso da violência, por exemplo, surpreendentemente aumentam a intensidade da experiência do espectador, em vez de a diminuir.
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De volta ao filme negro americano, vamos abordar esta semana “The Big Heat”, chamado em Portugal “Corrupção” e estreado no país de origem em 1953 (os espectadores portugueses só o puderam ver nos cinemas dois anos depois). Mais uma vez, é interessante verificar que, independentemente do tema, até mesmo do realizador, há nestes filmes das décadas de 30 a 50 um ingrediente que, do meu ponto de vista, contribui para um tom final de encantamento, que é, além da conjugação de artistas das mais variadas especialidades — muitos deles no seu auge — as soluções encontradas para tratar de temas controversos, incómodos ou proibidos, de forma a poder seguir-se, claramente, o essencial da questão de fundo, enquanto se tenta esticar ou contornar os condicionamentos a que os criadores estavam submetidos no que diz respeito ao que se podia mostrar ao público. Entre essas soluções encontramos o recurso ao simbolismo, a realidades esquemáticas, a elisões, a representações por ocultação de imagem que, no caso da violência, por exemplo, surpreendentemente aumentam a intensidade da experiência do espectador, em vez de a diminuir.
Este jogo de “gato e rato” de bastidores adequa-se perfeitamente a outro jogo que se lhe assemelha, o da investigação e perseguição policial aos fomentadores e beneficiários da corrupção, infelizmente sempre actual, “tomando sempre novas qualidades”. É aqui que entra o sargento Bannion (Glenn Ford), do Departamento de Homicídios da polícia, cujas diligências encetadas a propósito do suicídio de um colega se vão desenvolvendo de modo a proporcionar aos espectadores uma visão clara da teia de corrupção local, enquanto o detective Bannion na mesma se enreda mais e mais.
É tudo simples e esquemático: a vida pacata e económica do casal Bannion, os testemunhos simbólicos da sua comunhão — dividem o mesmo cigarro, a mesma cerveja, a comida do mesmo prato —, o amor pela filha pequena; a rede de influências e interdependências que, por contraponto, primeiro ameaça e depois desfaz este “idilicamente natural” viver. A investigação de Bannion às movimentações da rede de corrupção que tem no seu topo Mike Lagana — que controla o comissário da polícia, que, por seu turno, controla o tenente que comanda a esquadra em que Bannion trabalha — acabam por lhe custar a perda da mulher (Jocelyn Brando, irmã de Marlon Brando). A sua reacção a esta perda e a revolta de Debby (Gloria Grahame), namorada de Vince (Lee Marvin), um dos membros do bando de Lagana, são as frentes externa e interna, respectivamente, da guerra que derrota o grupo.
Embora Glenn Ford não seja um dos meus actores preferidos, por sentir que lhe falta qualquer coisa que, por exemplo, William Holden poderá ter mais à mão, e de achar que a sua melhor interpretação é em “Gilda”, que já tratámos aqui, há uma construção de felicidade conjugal ideal que raramente se encontra tão bem representada e que me traz a memória essa outra que encontramos em “Panic in the Streets”, da responsabilidade do realizador Elia Kazan e dos actores Richard Widmark e Barbara Bel Geddes. Já quanto a Gloria Grahame, que também não está na constelação dos grandes de Hollywood, actriz que encontrámos em “In a Lonely Place”, contracenando com Humphrey Bogart, poderá ser este papel em “Corrupção” a sua melhor interpretação. E é certamente a mais famosa. Tão famosa, de facto, que muitas vezes quando se quer que as pessoas com quem conversamos se lembrem imediatamente do filme de que estamos a falar, dizemos apenas: “Aquele filme em que a Gloria Grahame apanha com o café a ferver”. Mas também poderíamos dizer, se as pessoas memorizassem com a mesma facilidade, que é o filme em que num bar alguém toca ao piano a canção “Put the Blame on Mame”, emblemática de “Gilda”, que tinha no papel principal o mesmo Glenn Ford que está em cena. Uma gracinha num ambiente violento...