O elogio do charuto

O charuto foi-se tornando na ornamentação tristonha de um certo tipo de fumador de classe alta, que tem de ter a sua classe na ponta da boca, sem precisar de falar

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Desmond Boylan/Reuters

Em tempos de vacas magras (e de vitelas gordas, como os números da obesidade juvenil provam) não posso deixar de sentir alguma culpa quando acendo um charuto numa qualquer esplanada lusa naquelas minhas, cada vez mais infrequentes, escapadinhas à metrópole. E não é apenas por um Cuaba "distinguido" custar 25 euros, nada disso. Parece que o charuto foi erradicado de forma total e completa pela nova geração portuguesa de empresários, quadros superiores ou simplesmente "bon-vivants" nas suas interacções sociais! 

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Em tempos de vacas magras (e de vitelas gordas, como os números da obesidade juvenil provam) não posso deixar de sentir alguma culpa quando acendo um charuto numa qualquer esplanada lusa naquelas minhas, cada vez mais infrequentes, escapadinhas à metrópole. E não é apenas por um Cuaba "distinguido" custar 25 euros, nada disso. Parece que o charuto foi erradicado de forma total e completa pela nova geração portuguesa de empresários, quadros superiores ou simplesmente "bon-vivants" nas suas interacções sociais! 

?Nesses encontros com antigos colegas de curso, para pôr a conversa em dia, é vê-los acenderem os seus cigarros em cadência constante e certa enquanto falam das desgraças das Motas, das Sonaes e quejandas empresas públicas, ou a dias de serem nacionalizadas. E eu, pacificamente, vou atacando o meu charuto, rectificando-lhe o saque, cortando a cinza, deixando-o a morrer, trazendo-o à vida, num exercício que tem tanto de irritante como de interessante para os presentes.

??Tenho para mim que compreender esta ausência demográfica de aficionados é compreender a génese da situação actual do país. 

??Para começar, entenda-se que o charuto é, historicamente, um facilitador de conversas entre homens. Mesmo uma minúscula "Petit Corona" requer meia hora a passo de corrida de fio a pavio. Degustar um "Diadema" leva mais de duas horas!

Ora, no mundo dos negócios as conversas nascem em situações de impasse ou de debate mais aguerrido. Em que aqueles 80 milhões são o último impasse num negócio de 2000 milhões. Em que é preciso saber como apresentar o MOU de forma aos termos não parecerem humilhantes para aqueles que estão, de facto, a ser humilhados.

Mas, também, durante a discussão acalorada sobre a localização do Centro de Vendas num projecto de luxo, ou num momento de incerteza sobre as linhas orientadoras de uma "joint-venture". Nessas alturas, parar de falar para puxar umas baforadas acaba por ser o momento anti-climático que nos impede de ir para além do que podemos contribuir para o debate sem que este fique marcado por tons demasiadamente negros. Ora este tipo de conversas requer uma certa proximidade entre as partes, que aumenta a diplomacia e carece dessas longas saunas em salas privadas de restaurantes e bares ou pubs. 

??Já viram negociações demoradas entre partes em Portugal? Em que projectos de milhares de milhões são atribuídos num piscar de olhos, contra recomendações de consultoras, contra o parecer do Tribunal de Contas, contra o senso comum, contra a lei do Estado. Mas, curiosamente, o Ministério Público só se lembra de ir ver o que está mal feito quando o dinheiro já mudou há muito de mãos e os envolvidos já vivem do produto dos seus crimes? E para isso os charutos não são precisos. Porque não há detalhes a aclarar no "middle management", que são historicamente os grande consumidores de charutos, os que levam dentro das estruturas internacionais com o grosso da responsabilidade em apresentar soluções fundamentadas que levem ao processo decisório dos gestores de topo.

Classe ou sem classe?

??Sendo assim, em Portugal o charuto foi-se tornando na ornamentação tristonha de um certo tipo de fumador de classe alta, que tem de ter a sua classe na ponta da boca, sem precisar de falar. É vê-los a puxar baforadas que têm tanto de silenciosas como de furiosas para perceber que estamos longe, mas muito longe, dos emergentes Cigar Clubs das universidades americanas e europeias, onde não só se adestra os noviços para um dulcíssimo "Fonseca", mas onde também há um tema para discutir enquanto se faz do tabaco fumo. 

??A situação chegou ao ponto tão deprimente de permitir que a seguinte cena tomasse lugar no bar de um ilustre hotel de luxo da minha querida cidade do Porto: tendo-me oferecido para ser cicerone e guia de um grupo de amigos qataris, por conveniência de agenda e por estes planearem adquirir algumas propriedades no Douro, foi organizada uma reunião informal com os donos de algumas propriedades interessantes por estarem restauradas e, dadas as dificuldades financeiras destes, estarem em conta.

Chegados ao bar, feitas as apresentações e pedidas as nossas bebidas, todos, portugueses e estrangeiros, começamos a preparar os nossos charutos. Estávamos nós, estrangeiros, a explicar uns aos outros o motivo das nossas escolhas pessoais, que eram tantas quantos nós éramos, quando reparamos que todos os portugueses não só tinham já cortado os seus charutos como já os fumavam a velocidade de cruzeiro.

E mais: faziam-no de forma totalmente indiferente à forma como o charuto se ia desenrolando, dando origem a imensas irregularidades no anel de fogo, a parte do charuto que está a ser queimada, e provocando por conseguinte uma gigantesca nuvem de fumo própria de fumadores juvenis indonésios. Totalmente incivilizados, totalmente irresponsáveis, totalmente afastados do conceito de aficionado. E todos a fumarem exactamente o mesmo item: Cohiba Siglo VI, o favorito do autarca de maior interesse para o Ministério Público. 

??Chegados ao fim nenhum negócio foi feito, o que não me surpreendeu de todo. De facto se nos devemos manter longe de certos prazeres quando concentrados nos negócios não nos devemos furtar à instrução superior escondida nos prazeres dos negócios.

??PNF (Pequena Nota Final): pelos "clubs" de Londres, a moda actual (dado que dura há mais de cinco anos e há menos de 50) é acompanhar os melhores charutos (havanos claro, mas também nicaruagenses e dominicanos) não com um brandy ou um scotch, mas com uma tequilla de anejo. Por mim, era moda que havia de passar a regra: defendo que agave e tabaco são duas almas-gémeas separadas à nascença e unidas pelo santo bom-gosto.