Esta glória que é um concerto de Bruce Springsteen

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Os James fizeram uma viagem nostálgica, deixaram recados ao “Coelhinho” que governa Portugal (a expressão é do baixista Saul Davies) e com “Sometimes” ou “Sit down” deixaram um sorriso estampado na cara de toda a gente.

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Os James fizeram uma viagem nostálgica, deixaram recados ao “Coelhinho” que governa Portugal (a expressão é do baixista Saul Davies) e com “Sometimes” ou “Sit down” deixaram um sorriso estampado na cara de toda a gente.

Os Xutos & Pontapés foram os Xutos & Pontapés: dezenas de milhar cantaram em coro, saltaram quando o ritmo acelerou e sentiram-se em casa com “a breve história dos Xutos” (como explicou Tim no início) que foi o concerto.

Mas no último dia do Rock In Rio Lisboa de 2012, todas as atenções dos 81 mil presentes (números da organização) estavam centradas no homem que subiria a palco quando o relógio já ultrapassava a meia-noite. As próprias bandas que tocaram ao longo do dia foram dando voz a essa evidência. Com reverência os James: Tim Booth contou como percebeu verdadeiramente o que interessava na música quando se viu num concerto de Bruce Springsteen para o qual fora arrastado por amigos - não o admirava particularmente, mas bastou um par de canções para mudar drasticamente de opinião. Com humor os Pontos Negros, muito entusiasmantes no seu rock'n'roll deveras enérgico e bem oleado, que exclamaram a meio da actuação, “nós somos os Bruce Springsteen!”. E no mesmo palco, o da Vodafone, os americanos Crystal Antlers, que acentuaram “We were born in the USA”. Terra do Boss, naturalmente. Que é de todos nós, como o comprovaram as duas horas e meia de concerto.

Numa conferência de imprensa realizada durante a tarde, o promotor do festival, Roberto Medina, confirmou nova edição para 2014 e acentuou que o Rock In Rio só sairá de Lisboa se for expulso da cidade. O presidente da Câmara da capital portuguesa, que declarou ser do interesse do município mantê-lo por cá, certamente não o fará. Quanto ao público, parece certo que quererá continuar a tê-lo no Parque da Cidade – ao longo dos cinco dias de festival, acolheu cerca de 346 mil espectadores.

É inegável que o Rock In Rio é um acontecimento. Tanto quanto, como sabe quem o conhece, que nele a música é apenas uma componente do seu sucesso, concorrendo com as atracções disponíveis no recinto pela mão dos omnipresentes patrocinadores. Ainda que assim seja, se o festival deixa algo de marcante são momentos como, na sua primeira edição, em 2004, a actuação de um inspiradíssimo Paul McCartney. Ou nesta que agora terminou, a passagem pelo palco Mundo de uma lenda da soul como Stevie Wonder – aconteceu sábado – ou, ontem, de alguém da dimensão musical, cultural, simbólica e social de Springsteen, mais que provável autor do melhor concerto do festival.

À tarde vimos os Kaiser Chiefs aquecerem o povo com uma súmula de pop rock britânico que atravessa décadas com a ligeireza de quem nada mais pretende que dar alegria aos donos das mãos que erguem cervejas e fazê-los juntarem a sua voz a canções como “Everyday I love less and less”, “I predict a riot” ou “My God”. Ricky Wilson , o vocalista, não se cansou de saltar e de falar muito rápido e muito enérgico. Tanto que acabou por protagonizar o momento mais surpreendente do dia: desapareceu durante o concerto, reapareceu no topo do “slide” e lançou-se no ar, percorrendo-o enquanto cantava. O público aplaudiu-o mais que no final de qualquer uma das canções interpretadas.

Pouco depois, ao início da noite, os James de Tim Booth deram-nos a provar o doce sabor da nostalgia e deleitaram o público com as canções de “Seven” e “Laid” e com a declaração do baixista Saul Davies, residente no norte do país, denunciando os cortes financeiros operados pelo actual governo - “porquê é que os velhotes no norte de Portugal não têm dinheiro para pagar a conta da luz?”, questionou. No final, a inevitável “Sit down”, com Tim Booth a fazer dançar o seu corpo magro e o público a cantar-lhe cada palavra e a dançar como melhor sabia. Isto sem esquecer que o palco da Vodafone voltou a ser um porto seguro para o melómano de vistas e ouvidos cansados da ausência de risco e de presente nas propostas do palco principal – por lá passaram ontem os Lacraus, Poppers, Pontos Negros ou Samuel Úria, este último com um concerto extraordinário que lhe exige que edite rapidamente o seu segundo álbum, e os americanos Crystal Antlers. Do pequeno palco da Vodafone ao imenso palco principal não são “oito horas de distância”, como cantaram os Xutos & Pontapés, totalistas do Rock In Rio que fizeram toda a gente feliz com um alinhamento composto inteiramente de clássicos. “Contentores”, “Maria”, “Remar remar”, “Dia de São Receber” ou “Não sou o único” foram algumas das canções que o público cantou e dançou fervorosamente perante o olhar curioso e surpreendido dos estrangeiros vindos de Espanha, Holanda ou Inglaterra que aguardavam a chegada do prato principal da noite.

Estamos vivos

É irresistível a visão de Bruce Springsteen e da sua imensa família, ou seja, as quase duas dezenas de músicos da E Street Band, em palco. Porque se sente o prazer evidente que têm em estar ali, porque Springsteen tem um sentido lúdico que cativa imediatamente, porque nas suas canções brilha intensamente a história da música popular americana. E porque a sua música não é simplesmente um encadeamento de acordes e um amontoar de palavras. Há um contexto que lhes amplifica o sentido e isso ficou explícito logo a início, com “We take care of our own”, do último “Wrecking ball”.

Caso houvesse dúvidas, elas seriam desfeitas quando, na entrada para a recta final do concerto, apoiado na guitarra acústica, Springsteen explica que a canção que se seguirá surgiu quando procurava a forma correcta de abordar os tempos que vivemos e as pessoas que perderam os seus empregos nos Estados Unidos - “e aqui”, em Portugal, particularizou. O resultado foi escrever sobre como a história se repete em tempos e circunstâncias diferentes. O resultado, “We're alive”, é tipicamente Springsteen: uma canção de vitória contra todas as adversidades, morte incluída, com a força da sua voz sobressaindo sobre aquele arranjo de sopros mariachi que cita “Ring of fire”, de Johnny Cash. Essa canção foi o corolário do “comunicado” do Boss ao presente. Sobreviveremos sempre. Celebremos, portanto. E então chegaram “Thunder Road”, chegou “Born in the USA”, “Born to run”, “Glory days” ou “Dancing in the dark”. Clássicos efusivos e congregadores, mesmo quando as suas letras escondem desencanto (também isso é tipicamente Springsteen) e que encerraram o concerto com o Parque da Bela Vista repleto de corpos em movimento e vozes que se juntavam às vindas de palco - foram fogo-de-artifício antes do fogo-de-artifício que assinalou o final desta edição de Rock In Rio.

Cerca de duas horas e meia antes, Bruce Springsteen pisava pela segunda vez um palco português. Estavam já distantes os anos 1990, a sua década perdida, em que estivera no Estádio de Alvalade. Nessa altura sem a E Street Band, o que faz toda a diferença. Porque cada um dos seus elementos é verdadeiramente uma personagem, do extraordinário baterista Max Weinberg, incrivelmente preciso na sua batida tonitruante, ao guitarrista Steven “Soprano” Van Zandt, passando por outro guitarrista, Nils Lofgren, um dos Crazy Horse de Neil Young antes de se juntar a Springsteen. E já não está lá o imenso saxofonista Clarence Clemons, falecido em 2011, mas o seu espírito sobrevive em Jake Clemons, o sobrinho que The Boss convocou para a banda. Com esta E Street Band onde ouvimos secção de sopros, teclista e acordeonista, violinista ou coros apontando aos céus gospel, Bruce Springsteen começou pelo presente de “Wrecking ball”. “Hard times come and hard times go”, frase da canção que dá título ao álbum, é como que o mote.

Com uma energia invejável, com um sentido de missão que passa por nos dar “o poder, a glória, o divertimento” - e por “estimular os órgãos sexuais com a força do rock'n'roll” -, Springsteen, 62 anos, correu o palco todo, desceu ao público e de lá foi saindo regularmente com cartazes onde estavam inscritos títulos de canções - como “She's the one”, de “Born To Run”. Liderou a banda nessa “Death to my hometown” que, violino rodopiando, poderia servir para dueto com os Pogues ou numa arrepiante “My city of ruins” insuflada de soul power – e Springsteen no púlpito, incitando: “c'mon rise up!”

De uma intimidade tão sincera quanto pouco habitual em músicos da sua dimensão (histórica e comercial), The Boss arranhou muito convincentemente o português – para comunicar, por exemplo, que a mulher Patti Scialfa “ficou em casa com as crianças e manda cumprimentos” - e chamou uma criança a palco para cantar uns versos de “Waiting on a sunny day”. Pelo meio ouviu-se “Because the night”, a canção também popularizada por Patti Smith, e essa portentosa viagem pessoal pela country que é “I'm on fire”.

Ouviu-se a harmónica e o talento de contador de histórias em “The river”, ouviu-se uma voz que, aos 62 anos, não perdeu nada da sua rouca expressividade. As canções sucediam-se, ternas como romances juvenis, poderosas como o gospel que aspira redenção da alma, eléctricas como o rock'n'roll exige, esperançadas mesmo quando todas as evidências apontam o desespero como inevitável. Bruce Springsteen regressou a Portugal 19 anos depois e foi nada menos que um privilégio reencontrá-lo. “We are alive”. Depois destas duas horas e meia, não temos dúvidas.