Machado de Castro: o escultor apaixonado
Joaquim Machado de Castro acreditava no poder das ideias. Mais: acreditava que o artista era o que concebia a ideia, não necessariamente o que concebia a obra, uma atitude corrente na Itália do Renascimento, mas ainda revolucionária no Portugal do século XVIII. Como se isso não bastasse, criou ainda a primeira aula de escultura, teorizou sobre o desenho e pôs em funcionamento um laboratório que trabalhava num sistema de subcontratações pouco habitual para a época, em que os moldes de cera e barro levavam muitas vezes as peças da cabeça do mestre e dos seus discípulos para as mãos dos artífices que as esculpiam em pedra ou madeira.
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Joaquim Machado de Castro acreditava no poder das ideias. Mais: acreditava que o artista era o que concebia a ideia, não necessariamente o que concebia a obra, uma atitude corrente na Itália do Renascimento, mas ainda revolucionária no Portugal do século XVIII. Como se isso não bastasse, criou ainda a primeira aula de escultura, teorizou sobre o desenho e pôs em funcionamento um laboratório que trabalhava num sistema de subcontratações pouco habitual para a época, em que os moldes de cera e barro levavam muitas vezes as peças da cabeça do mestre e dos seus discípulos para as mãos dos artífices que as esculpiam em pedra ou madeira.
"Um homem inteligente, talentoso, paciente e determinado", que soube gerir influências e atravessar um período marcado por transformações políticas e artísticas - do antigo regime para o liberalismo, do barroco tardio para o neoclassicismo - sem desvirtuar o que pensava da arte ou do poder real, explica Anísio Franco, comissário da exposição O Virtuoso Criador. Joaquim Machado de Castro (1731-1822), que é hoje inaugurada, às 18h, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa. "Mantém-se sempre um homem do absolutismo e do tardo-barroco, nunca foi um neoclássico, embora soubesse que vivia num período de revoluções e que, na Europa, Antonio Canova e os seus seguidores faziam uma escultura muito diferente."
A exposição de Machado de Castro, a primeira desde 1954, faz parte de um programa ambicioso que inclui o restauro da estátua equestre de D. José, "a mais importante obra do mestre" e aquela que lhe garantiu o cargo de escultor da casa real a partir de 1782, uma série de percursos temáticos pela cidade e o colóquio internacional que começa amanhã (Machado de Castro - Da Utilidade da Escultura, 19 e 24 a 26 de Maio), organizado pela Universidade Autónoma de Lisboa.
No MNAA, que hoje e amanhã está aberto até às 24h para festejar o dia e a noite internacional dos museus, o percurso criado pelo conservador de escultura e pela historiadora de arte Ana Duarte Rodrigues, que com ele divide o comissariado, começa precisamente pela estátua que nos habituámos a ver na Praça do Comércio e que, com o arco triunfal da Rua Augusta, forma um dos mais interessantes conjuntos escultóricos da Europa do seu tempo, a que começa a "dessacralizar o espaço público, colocando o rei no centro do "culto"", diz Miguel Figueira de Faria, responsável pelo colóquio.
É na primeira sala que estão expostos os pequenos moldes dourados que Anísio Franco considera "maravilhosos", com D. José a pé, vestido à romana, ou a cavalo. "A estátua de D. José foi o grande empurrão na carreira de Machado de Castro, mesmo se, num primeiro momento, foi o fundidor, o coronel Bartolomeu da Costa, que ficou mais famoso do que o mestre, por ter conseguido concluir o processo de verter o metal para dentro do molde em poucos minutos e com sucesso", diz o comissário. Na estátua equestre, o artesão parece ter ganho ao artista na época, o que teria desagradado profundamente ao escultor que nasceu em Coimbra, recebeu formação em Lisboa e no estaleiro do Convento de Mafra e que toda a vida - morreu aos 91 anos - quis intervir no espaço público. "Machado de Castro sempre quis fazer estátuas e não imagens de devoção. Preocupava-se com deixar uma obra que ficasse aos olhos de toda a gente."
Entre os seus conjuntos mais importantes está a estatuária do Palácio Nacional da Ajuda, no reinado de D. José, a da Basílica da Estrela, no de D. Maria, e a escultura para a quinta real de Caxias ou para o palácio do marquês de Pombal, em Oeiras, todos representados na exposição, nas peças originais ou em moldes, desenhos e gravuras.
A importância do desenhoMuitos conhecem Machado de Castro como um autor de presépios, embora só três lhe possam ser atribuídos sem reservas, e de outras imagens religiosas, como a Nossa Senhora da Encarnação ou o S. João Baptista de Almeirim (ambas na exposição), mas o que o escultor sempre procurou foi fazer obras em grande escala, de preferência em pedra.
"Machado de Castro era um estatuário e não um imaginário", diz Ana Duarte Rodrigues. "Se faz muitas imagens é porque precisa de sobreviver e dar trabalho aos canteiros, discípulos e ajudantes que trabalham com ele no laboratório."
É o laboratório - que Machado de Castro criou tendo por referência os estatutos da Universidade de Coimbra e procurando equiparar o ensino da Arte ao da Física e da Química - que ocupa uma das salas mais importantes da exposição e onde surgem mais novidades na investigação recente que a precedeu.
"Aqui Machado de Castro está no seu esplendor máximo. Já fez a estátua equestre e tem no laboratório uma máquina imensa, que chega a ter 100 pessoas que ele ensina e protege, e que mais tarde [1836] viria a dar origem à Academia de Belas-Artes", explica a historiadora. Para Machado de Castro, a formação é o fundamento da arte, acrescenta Anísio Franco: "Ele é importantíssimo porque é, ao mesmo tempo, o escultor da casa real, o director do laboratório, o professor da primeira escola de escultura portuguesa, onde era obrigatório ter cinco anos de Desenho, e o teórico, o homem que pensa e escreve para poder ensinar. Com ele a escultura atinge um grau de conceptualização que nunca tivera em Portugal e que era prática em Itália desde o Renascimento."
A importância que atribui ao desenho é evidente na sala do laboratório: o escultor, ao contrário dos seus contemporâneos, recusava a palavra oficina porque ela remetia para o primado do trabalho manual em detrimento do intelectual. Nela estão expostos os seus cadernos e o Livro C, um álbum com mais de 100 desenhos do escultor, instrumento de estudo e ensino, diz a comissária, lembrando que Machado de Castro nunca saiu do país: "Os livros que lia e copiava noite fora nas bibliotecas de nobres seus amigos quando não tinha ainda dinheiro eram a sua forma de entrar em contacto com o antigo, que o fascinava. Nunca viu uma escultura de Miguel Ângelo ou de Bernini em Itália, ao vivo - no seu tempo já não havia bolsas como as de D. João V, para os artistas viajarem -, mas estudou a Antiguidade a partir do desenho e, mais tarde, de uma colecção de gessos que mandou vir de Roma."
Processo completoPor toda a exposição, que reúne mais de 100 obras de colecções privadas e públicas (Igreja da Encarnação, Museu da Cidade, Biblioteca Nacional e Câmara Municipal de Oeiras, entre outras), estão espalhados modelos de esculturas em pedra e em madeira, mostrando que a grande originalidade de Machado de Castro passava por criar as imagens destinadas a cultos mais ou menos privados como quem cria a estátua para uma grande praça pública.
Quem percorre as salas pode ver, as várias fases do processo de criação, do desenho à obra final, passando pelo esboceto em 3D, ainda tosco, e o modelo com um acabamento já muito próximo do final. "Ele preocupa-se muito em passar este processo aos seus alunos e discípulos, para quem é uma personagem cativante. São eles, 70 têm direito a nome na parede da exposição, que o transformam num clássico no seu próprio tempo, muito copiado." A exposição quer mostrar que há um excesso de obras atribuídas ao escultor, em especial presépios. "Ele teria detestado ser conhecido como um fazedor de presépios porque gostava era de obras públicas." Um presépio era como a maqueta de uma escultura sempre adiada, "como se o processo tivesse ficado a meio, na fase do modelo".