Visões-ficções

Sobre Histórias de Caçadeira, a sua excelente estreia, o cineasta americano Jeff Nichols dizia ser “um filme de Sam Peckinpah sem a violência”. Se fôssemos a seguir essa lógica, Procurem Abrigo seria uma história de Stephen King sem sangue nem criaturas sobrenaturais, porque ao que interessa ao jovem realizador não é trabalhar um género mas sim, de modo quase impressionista, trabalhar a personagem no seu ambiente, contar uma história que não poderia ter lugar noutro sítio. Tal como Histórias de Caçadeira só podia existir no Sul profundo dos EUA que se mantém teimosamente rural e familiar, também a lenta desintegração do mundo de Curtis, bom pai, bom operário, bom marido de um cantinho do Ohio, só podia ter lugar num turbulento corredor de tornados e tempestades da América profunda habitada por gente normal - porque são essas tempestades que alimentam os pesadelos de Curtis.

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Sobre Histórias de Caçadeira, a sua excelente estreia, o cineasta americano Jeff Nichols dizia ser “um filme de Sam Peckinpah sem a violência”. Se fôssemos a seguir essa lógica, Procurem Abrigo seria uma história de Stephen King sem sangue nem criaturas sobrenaturais, porque ao que interessa ao jovem realizador não é trabalhar um género mas sim, de modo quase impressionista, trabalhar a personagem no seu ambiente, contar uma história que não poderia ter lugar noutro sítio. Tal como Histórias de Caçadeira só podia existir no Sul profundo dos EUA que se mantém teimosamente rural e familiar, também a lenta desintegração do mundo de Curtis, bom pai, bom operário, bom marido de um cantinho do Ohio, só podia ter lugar num turbulento corredor de tornados e tempestades da América profunda habitada por gente normal - porque são essas tempestades que alimentam os pesadelos de Curtis.


Mas há também algo em Procurem Abrigo que transcende inevitavelmente esse ruralismo que nos fez “encaixar” Jeff Nichols ao lado de Lance Hammer, Kelly Reichardt, David Gordon Green (entretanto convertido ao cinema de massas) ou do “papa” deles todos que é Terrence Malick. Esse algo é a dimensão onírica, quase psicótica, dos pesadelos meteorológicos de Curtis, que tanto pode ser sintoma de doença mental (herdada da mãe) como de uma crise maior. E é aqui que as coisas se tornam interessantes: essa crise maior tanto pode ser económica como social, mas é sempre metáfora de uma comunidade à deriva, perdida, insegura do seu papel e do seu local. Que o mesmo é dizer, Curtis (uma interpretação de estarrecer, toda em filigrana, de Michael Shannon) é o americano médio confrontado com o apocalipse, quer ele seja a incerteza do pós-11 de Setembro ou o pragmatismo de pôr a comida na mesa e dar o melhor à família com a recessão a bater à porta. E se dar-lhes o melhor implicar arriscar tudo, sem saber se é loucura ou precaução? E aquele final ambíguo, é contágio ou confirmação?

Pouco interessa, porque a questão foi colocada e Jeff Nichols não está necessariamente interessado em dar-lhe uma resposta cabal. Antes em envolver-nos sem darmos por isso neste quotidiano quase trivial e fazer-nos sentir a dúvida metódica que o próprio Curtis sente em relação às suas visões (ficções?). Histórias de Caçadeira era uma estreia inteligente, seguríssima; Procurem Abrigo é um grande passo em frente, um filme tranquilamente inquietante, atento às vibrações mais ínfimas do ser humano. Podemos dizê-lo sem riscos: temos cineasta.