Ninguém pára a mercenária
Porque é que o cinema de acção não pode ser todo assim - fluido, fluente, económico, depurado, reduzido à energia cinética da perseguição, da luta, da emboscada? Porque é que há sempre de ser necessário tentar introduzir motivações, histórias, emoções, personalidades, complicações?
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Porque é que o cinema de acção não pode ser todo assim - fluido, fluente, económico, depurado, reduzido à energia cinética da perseguição, da luta, da emboscada? Porque é que há sempre de ser necessário tentar introduzir motivações, histórias, emoções, personalidades, complicações?
Porque não existe quase nada disso em Uma Traição Fatal. A narrativa está reduzida ao mínimo essencial, e o que há para saber - e não é muito - é revelado no decorrer do filme. As personagens existem num limbo: não sabemos (ou pouco sabemos) de onde vêm, o que fizeram, o que as move. O que interessa é o agora - movimento, velocidade, suspensão, instante. Uma Traição Fatal resume-se a isso: ao espectáculo de acção de uma mercenária falsamente incriminada que não vai parar enquanto não atar as pontas soltas. Uma mercenária que não é actriz de profissão mas sim lutadora de artes marciais (Gina Carano), que tem uma presença física notável para quem nunca fez cinema - e isso basta, porque Uma Traição Fatal não quer ser mais do que uma série B cinética sem subtextos nem segundos sentidos. Ou quer?
Não esquecer: é um filme do imparável e inclassificável Steven Soderbergh. E é perfeitamente possível que o homem só tenha querido fazer uma série B cinética. Ou não, que tenha querido aproveitar essa oportunidade para fazer um comentário irónico sobre o actual estado dos filmes de acção, obesos, inchados, pesadões, cheios de efeitos especiais e montagens epilépticas. Daí que a legibilidade visual clássica de Uma Traição Fatal seja uma coisa quase ofensiva, algo vindo do fundo de outros tempos (dos anos 1970, talvez), de uma altura em que gente como Don Siegel ou Walter Hill filmava assim como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Trabalhando sobre um argumento do seu cúmplice de O Falcão Inglês, Lem Dobbs, mais uma vez assinando a fotografia e a montagem, Soderbergh faz de Uma Traição Fatal uma lição de como filmar acção, revela que o segredo de fazer um divertimento não passa por encher o olho mas sim por saber o que se está a fazer. Soderbergh sabe. Seco, despachado, eficaz, obsessivo, objectivo, não é um filme, é um míssil aerodinâmico, action painting, escultura em movimento. É hora e meia de cinema. Grande cinema. Glorioso cinema. E o seu melhor filme em muito tempo.