Leonardo da Vinci, o anatomista dedicado e moderno
Dissecava corpos à luz de velas, durante horas a fio, com um pedaço de pano a tapar-lhe o nariz e a boca para suportar o cheiro e evitar infecções. Leonardo da Vinci era tão obcecado pelo rigor quando retratava a mulher de um mercador florentino como quando fazia a autópsia a um desconhecido numa universidade para depois lhe desenhar os músculos e os órgãos. O seu grau de exigência era o mesmo, assim como o seu desejo de perfeição.
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Dissecava corpos à luz de velas, durante horas a fio, com um pedaço de pano a tapar-lhe o nariz e a boca para suportar o cheiro e evitar infecções. Leonardo da Vinci era tão obcecado pelo rigor quando retratava a mulher de um mercador florentino como quando fazia a autópsia a um desconhecido numa universidade para depois lhe desenhar os músculos e os órgãos. O seu grau de exigência era o mesmo, assim como o seu desejo de perfeição.
Se hoje o conhecemos mais como pintor do que como cientista, é porque Leonardo (1452-1519) nunca publicou os estudos anatómicos a que dedicou grande parte dos últimos anos. E se estes seus desenhos não tivessem permanecido escondidos durante 400 anos, é bem possível que a medicina tivesse evoluído de forma diferente. É pelo menos esta a convicção do comissário da exposição Leonardo da Vinci: Anatomista, que até 7 de Outubro mostra na galeria do Palácio de Buckingham, em Londres, um dos cadernos de notas do mestre, inteiramente dedicado ao estudo do corpo.
"Leonardo seria visto como um dos grandes cientistas da renascença e um dos grandes anatomistas de todos os tempos. O seu trabalho teria sido a mais importante obra de anatomia jamais publicada", disse Martin Claydon ao diário The Guardian, referindo-se ao caderno de notas que entrou para a colecção real britânica no século XVII e que só viria a ser estudado já no século XX.
Não é a primeira vez que se faz uma exposição com desenhos anatómicos de Leonardo - a Royal Academy organizou uma em 1977, lembrou Alastair Sooke, crítico do jornal The Telegraph - mas esta é a mais completa até hoje. Tirando partido da atenção que a pintura do mestre recebeu recentemente com o blockbuster da National Gallery de Londres e com a bem mais modesta exposição do Museu do Louvre (até 25 de Junho), a Royal Gallery mostra agora 87 folhas de notas e esquissos sobre o corpo humano (com 20 a 30 desenhos cada), das quais 24 páginas nunca foram vistas em público.
"As pessoas têm conhecido Leonardo como o arquétipo do homem da renascença desde que ele morreu, mas no geral vêem-no como um pintor que fazia investigação científica, quase como se fosse um hobby bizarro. O que esta exposição vem mostrar é que, pelo menos nos últimos anos, Leonardo era em primeiro lugar um cientista, que também pintava uns quadros", garante o comissário. E foi da mão desse cientista que saíram as primeiras imagens de um feto no útero materno (feito por volta de 1511 tendo por base a dissecação de uma vaca) e de vários órgãos abdominais. É também Leonardo o pioneiro na descrição das curvaturas da coluna vertebral e de parte do sistema circulatório. É, aliás, o seu conhecimento do funcionamento do coração - em estudos de 1512-13, examina o fluxo de sangue na válvula aórtica, com um detalhe e comentários que só viriam a repetir-se 400 anos mais tarde - que hoje mais espanta os cirurgiões.
"Na maior parte da sua vida Leonardo comportou-se mais como um cientista [...]. E o campo científico em que mais se superou foi o da anatomia humana", escreveu Sooke no Telegraph, explicando que o desenhos anotados se tornaram numa constante na vida do artista a partir dos 30 anos: Leonardo terá preenchido, em média, uma ou duas folhas todos os dias até à sua morte, aos 67 (dessas são conhecidas cerca de sete mil, as estimativas variam).
Nova forma de pensarDois factores terão contribuído, segundo os especialistas, para que Leonardo acabasse por não publicar o seu Tratado de Anatomia, que começou em 1489: a morte de Marcantonio della Torre, o professor de Anatomia das universidades de Pavia e Pádua que lhe dava acesso à dissecação de cadáveres (terá feito 30), e a invasão de Milão, que o obrigou a deixar a cidade.
A exposição da Royal Gallery está organizada cronologicamente em três salas. Na primeira estão folhas da década de 1480, feitas a partir de fontes históricas e não da observação directa de cadáveres, que viria a marcar os anos seguintes. Esta secção, que termina com o desenho de um crânio, dá lugar a outra em que se podem ver os estudos que fez depois de dissecar o corpo de um homem com mais de 100 anos que, a acreditar nas notas do cientista-pintor, terá morrido com uma cirrose.
É o último módulo, com os estudos do útero e do coração, que mostra até que ponto o seu método traduz uma forma de pensar nova, baseada na observação directa, sustentada por testes repetidos e traduzida em desenhos rigorosos e notas breves em que se descreve o órgão ou fenómeno observado. "Leonardo dá-nos um paradigma da mudança profunda que ocorre na renascença, de uma mentalidade medieval para uma sensibilidade moderna", diz o crítico do Telegraph. "Os seus desenhos complexos, mas lúcidos, rodeados de notas precisas, feitas com a mão esquerda e usando o seu método habitual de escrita em "espelho", da direita para a esquerda, estão obviamente perto da perfeição."
O que teria acontecido se o assistente de Leonardo, Francesco Melzi, tivesse publicado o tratado depois da sua morte ninguém sabe ao certo. Os desenhos que chegaram à colecção real, que tem a esmagadora maioria dos estudos anatómicos do mestre, pertencem a um dos cadernos que o escultor Pompeo Leoni compilou entre 1570 e 1590, comprado em Espanha e depois levado para Inglaterra, onde foi um segredo bem guardado durante mais de 200 anos.