Arquivos de Michel Foucault com destino incerto

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O espólio do filósofo Michel Foucault (1926-1984, na foto) está à venda e poderá sair de França Foto: DR

Daniel Defert, herdeiro e executor literário de Michel Foucault (1926-1984), um dos mais influentes pensadores da segunda metade do século XX, decidiu vender o arquivo pessoal do autor de As Palavras e as Coisas. Não tendo conseguido chegar a acordo com o Governo francês para a aquisição do espólio, que inclui 37 mil documentos e abarca um período de quatro décadas, Defert, que tem hoje 75 anos e sofre de problemas cardíacos, solicitou permissão para vender os papéis para o estrangeiro. O Ministério da Cultura francês negou o pedido, argumentando que se trata de documentação fundamental "para a compreensão e estudo da obra de Michel Foucalt" e, em meados de Abril, classificou o arquivo como "tesouro nacional".

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Daniel Defert, herdeiro e executor literário de Michel Foucault (1926-1984), um dos mais influentes pensadores da segunda metade do século XX, decidiu vender o arquivo pessoal do autor de As Palavras e as Coisas. Não tendo conseguido chegar a acordo com o Governo francês para a aquisição do espólio, que inclui 37 mil documentos e abarca um período de quatro décadas, Defert, que tem hoje 75 anos e sofre de problemas cardíacos, solicitou permissão para vender os papéis para o estrangeiro. O Ministério da Cultura francês negou o pedido, argumentando que se trata de documentação fundamental "para a compreensão e estudo da obra de Michel Foucalt" e, em meados de Abril, classificou o arquivo como "tesouro nacional".

Defert, companheiro de Foucault desde meados da década de 1960 até à morte do filósofo, em 1984 - o autor de História da Sexualidade foi das primeiras figuras públicas a morrerem de SIDA -, terá agora de aguardar que o Estado lhe faça uma oferta. De acordo com a lei francesa relativa aos "tesouros nacionais", que foi amplamente revista em 2010, o Estado dispõe agora de 30 meses para propor um preço ao proprietário. Se Defert não o aceitar, ambas as partes nomearão um especialista para avaliar o arquivo e, se estes não chegarem a acordo, será nomeado um avalista independente. Se o Estado não cobrir o preço estipulado, os papéis de Foucault poderão ser exportados. Defert sempre disse que preferia que estes ficassem em França, mas também deixou claro que não teria relutância em os deixar ir para os Estados Unidos, onde a obra de Foucault não tem sido menos estudada do que em França. A Universidade da Califórnia, em Berkeley, e as universidades de Yale e de Chicago - todas elas dispõem de um centro de investigação dedicado ao filósofo - já se mostraram interessadas na aquisição.

Há também a possibilidade de que Defert venha a recusar o montante que resultar da avaliação e, nesse caso, o processo volta à estaca zero e o Estado pode novamente recusar a exportação dos documentos, ficando a sua eventual venda restrita ao território francês. Para já, ninguém arrisca um número, mas Pierre Assouline, romancista, jornalista e antigo director da revista Lire, garante, num artigo recente, que o arquivo de Foucault atingirá seguramente um valor mais alto do que o do manuscrito das Memórias de Casanova, que um mecenas anónimo comprou em 2010 por 7 milhões de euros, oferecendo-o depois à Biblioteca Nacional de França (BNF).

A polémica em torno dos papéis de Foucault tem um precedente recente. Em 2009, o Ministério da Cultura francês impediu a venda para uma universidade americana do arquivo do escritor e cineasta francês Guy Debord (1931-1994), autor de A Sociedade do Espectáculo<_28_i>. Também ele classificado como "tesouro nacional", o espólio do fundador da Internacional Situacionista foi adquirido pela BNF, com o recurso ao mecenato, por mais de dois milhões de euros.

Dois candidatos

Bruno Racine, director da BNF, já fez saber que a BNF gostaria de adquirir os documentos de Foucault, e que o próximo jantar anual de mecenato da instituição, no dia 11 de Junho, será dedicado a angariar dinheiro para esse objectivo. A BNF possui já alguns manuscritos importantes do autor, doados por Defert: duas versões da História da Sexualidade e uma primeira versão de A Arqueologia do Saber. E Racine lembra que "se há autor que tenha lugar na BNF, ele é certamente Michel Foucault". O filósofo, diz, "passava os dias" na BNF "a preencher essas mesmas fichas de leitura que agora integram o seu arquivo", e chegou mesmo a conceber a possibilidade de se tornar director da BNF.

Não é por acaso que Racine se esforça por demonstrar a pertinência da incorporação deste fundo documental na instituição que dirige. É que a BNF sabe que, caso o espólio venha a ser adquirido pelo Estado, terá de competir com outro candidato: o Instituto Memória da Edição Contemporânea (IMEC), que é o mais importante centro de investigações sobre a obra de Foucault e possui um importante fundo de documentos, livros e arquivos sonoros relacionados com o autor, além de organizar colóquios, promover exposições e organizar edições.

Em 1986, dois anos após a morte de Foucault, um grupo de amigos, que incluía Daniel Defert, criou a Associação para o Centro Michel Foucault com o objectivo de reunir, estudar e divulgar a obra do filósofo. Compilaram todas as entrevistas que Foucaut dera em França e no estrangeiro, recolheram as gravações sonoras das suas muitas conferências e juntaram uma vasta colecção dos seus ensaios e artigos. Sediado na Biblioteca Saulchoir, em Paris, onde o filósofo trabalhou durante os seus últimos anos de vida, o Centro Michel Foucault foi, até 1998, o lugar ao qual se dirigiam todos os investigadores que trabalhavam na obra do filósofo. A ele se deve ainda a edição póstuma, em quatro volumes, de Dits et Écrits (1994), que inclui boa parte dos documentos que o grupo conseguiu reunir.

Com o acordo da Biblioteca Saulchoir, todo este acervo transitou, em 1998, para o IMEC, que oferecia melhores condições para alojar a colecção e receber os investigadores. Nessa ocasião, Daniel Defert doou ao IMEC um significativo conjunto de materiais, designadamente relativos ao Grupo de Informações sobre as Prisões, que Foucault e outros intelectuais franceses criaram no início dos anos 70 e que exigia que o sistema prisional desse liberdade de expressão aos detidos e permitisse o acesso da imprensa às prisões.

Se o arquivo de Foucault vier a ser disputado pela BNF e o IMEC, não é de excluir que Defert prefira ver os papéis do filósofo no segundo, mas o Estado dificilmente avançará sozinho para a compra, e a BNF, como as recentes compras do espólio de Debord e do manuscrito de Casanova ilustram, pode revelar-se bastante eficaz na angariação de mecenato.