A capela de D. João V é mais portuguesa do que pensávamos

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Passaram mais de 260 anos e o esplendor da capela de S. João Baptista parece intacto Rui Gaudêncio

Os turistas italianos que na quinta-feira de manhã visitavam a Igreja de São Roque, em Lisboa, não queriam acreditar que para criar o Pentecostes ou a Anunciação que tinham à sua frente foram precisos milhares e milhares de quadradinhos que fazem lembrar os dos mosaicos da Antiguidade. E ficaram orgulhosos quando a guia lhes disse que tudo aquilo - das colunas aos medalhões das paredes, passando pelo lampadário e os candelabros - tinha sido produzido em Roma, no século XVIII, pelos melhores arquitectos e artífices, alguns deles habituados a trabalhar para o Papa.

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Os turistas italianos que na quinta-feira de manhã visitavam a Igreja de São Roque, em Lisboa, não queriam acreditar que para criar o Pentecostes ou a Anunciação que tinham à sua frente foram precisos milhares e milhares de quadradinhos que fazem lembrar os dos mosaicos da Antiguidade. E ficaram orgulhosos quando a guia lhes disse que tudo aquilo - das colunas aos medalhões das paredes, passando pelo lampadário e os candelabros - tinha sido produzido em Roma, no século XVIII, pelos melhores arquitectos e artífices, alguns deles habituados a trabalhar para o Papa.

Passaram mais de 260 anos e o esplendor da capela de S. João Baptista na Igreja de São Roque, em Lisboa, parece intacto, agora que terminaram os trabalhos de conservação e restauro que começaram em 2010 e envolveram peritos portugueses e estrangeiros durante 17 meses.

Para Teresa Morna, directora do Museu de São Roque, criado em 1905 para mostrar o tesouro de ourivesaria e paramentos que D. João V encomendou em Roma para uso exclusivo na capela, tudo começou muito antes, em 2007, quando os especialistas passaram à análise do estado de conservação dos materiais, primeiro passo para delinear uma estratégia de intervenção.

As pedras e os metais estavam muito sujos, os mosaicos das paredes tinham alterações na cor e os do chão praticamente não se viam, lembra a directora. Hoje os vermelhos, azuis, amarelos, laranjas e rosas quase brilham, tanto na esfera armilar que representa o poder do monarca, como no vestido da Virgem ou no manto de São João, nas margens do Rio Jordão. "Havia até problemas de instabilidade no chão", diz Teresa Morna, reconhecendo que o estado dos mosaicos vítreos, muito invulgares para a época, levantava "grandes preocupações".

Por serem os "únicos do género em Portugal", foi preciso recorrer a um laboratório e a um especialista estrangeiro, Carlo Stefano Salerno, que se associaram a uma vasta equipa multidisciplinar com técnicos e investigadores do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), do Laboratório José de Figueiredo e da Universidade Nova de Lisboa.

"Quisemos que o restauro fosse acompanhado de um estudo aprofundado da capela, do contexto da encomenda à execução, cruzando o que os técnicos iam descobrindo sobre os materiais com o que já sabíamos, ou julgávamos saber, a partir das fontes escritas", acrescenta Morna.

Nesse processo houve novidades e até surpresas.

Belmira Maduro, conservadora do IMC que coordenou os trabalhos na pedra e nos metais, diz, por exemplo, que em laboratório se ficou a saber que os elementos metálicos da decoração não são, como se pensava até aqui, de bronze dourado, mas de latão, e que a equipa identificou 24 variedades de mármore.

"Durante o restauro tivemos ainda o privilégio de observar alguns pormenores que só voltarão a ser olhados numa intervenção futura, como o lagarto que há num dos frisos decorativos do arco do tecto" e as marcas que eram feitas nos metais e nos parafusos para que tudo encaixasse no seu lugar com precisão, explica. Na pedra, muito diversificada (os elementos em lápis-lazúli, semiprecioso, são feitos com placas de apenas 3 mm de espessura), como nos restantes materiais, foi possível identificar os vernizes e ceras que foram aplicados ao longo dos tempos e que, ao envelhecerem, alteraram significativamente o aspecto da capela que D. João V mandou construir - executada entre 1742 e 1747 -, ao mesmo tempo que tinha em curso a grande obra de regime, o Convento de Mafra, e a renovação da Basílica da Patriarcal, no Paço da Ribeira.

"Em termos arquitectónicos e artísticos, com o seu tesouro, podemos seguramente dizer que nesta capela assistimos à apoteose do barroco", diz a directora do Museu de São Roque, que pertence à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Uma apoteose que pareceria, à partida, improvável, segundo Teresa Morna: "É certo que se trata de uma encomenda riquíssima, única, mas os materiais são tantos e tão variados que chega a ser surpreendente que formem um todo tão harmonioso e sóbrio, em que tudo parece imperturbável e no seu devido lugar. E que, em tudo isto, se integre muito bem o tesouro [são hoje 40 peças de ourivesaria e 150 paramentos] é extraordinário."

Encomenda exibicionista

A de São João Baptista é uma das nove capelas laterais da Igreja de São Roque, primeiro templo da Companhia de Jesus em Portugal, ordem a que D. João V estava muito ligado. Até aqui olhada como uma obra importada, totalmente produzida em Roma e consagrada pelo Papa Bento XIV antes de ser transportada para Lisboa em três naus, como se de um kit se tratasse, a capela foi objecto de uma intensa troca de cartas entre o arquitecto-ourives da corte portuguesa, João Frederico Ludovice, e os arquitectos italianos encarregues do projecto, Nicola Salvi e Luigi Vanvitelli, o arquitecto do Papa.

"Esta correspondência é importantíssima porque através dela vemos até que ponto Ludovice e o próprio rei estavam envolvidos no projecto", diz ao PÚBLICO o historiador António Filipe Pimentel, também director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Autor do novo estudo sobre a encomenda e a forma como ela marcou a diplomacia entre Portugal e o Vaticano no século XVIII, que será publicado no próximo ano para coincidir com uma grande exposição que o Museu de São Roque fará em colaboração com o MNAA, Pimentel garante que não podemos olhar para a obra como uma mera importação.

"O rei e Ludovice, que era o grande instrumento da política artística joanina, deram indicações específicas aos arquitectos italianos e sempre que essas indicações não eram respeitadas, havia cartas, por vezes exaltadas, e a vontade de D. João V acabava por prevalecer, como era, aliás, habitual." É por isso que todo o conjunto, defende o historiador, deve ser visto não como uma jóia do barroco italiano, mas sim como uma "obra de arte luso-italiana", já que "a direcção artística do projecto é feita a partir de Lisboa".

Foi D. João V quem escolheu o artista responsável pelas pinturas que os mosaicos viriam a copiar - Agostino Masucci, o seu favorito - e foi também ele que decidiu que deveria ser construída em Roma, não só porque ali estavam os melhores arquitectos e artífices do seu tempo, mas porque a cidade era uma montra para a exibição do seu poder perante todas as cortes da Europa católica.

"Esta capela é um espaço de exaltação régia. A esfera armilar está lá para o provar", continua o historiador. "D. João V serve-se do poder aglutinador da fé e da prática religiosa, exalta a Igreja para se apropriar dela. Esta obra faz certamente parte de um plano estratégico de afirmação internacional da coroa portuguesa."

Para garantir que o rei não é apenas quem encomenda e quem paga, Pimentel lembra uma das cartas de Ludovice, em que o arquitecto de origem alemã, a quem D. João V confiara já Mafra e a Patriarcal, exige aos colegas italianos que evitem "caprichos pitorescos, que não são admissíveis numa capela que se manda fazer, de arquitectura nobre série e rica".

O primado da arquitectura, submetendo todas as outras artes, é uma das características que António Filipe Pimentel destaca para diferenciar o que vemos em São Roque do barroco romano. "Quando Ludovice fala em "pitoresco" refere-se ao lado mais plástico, mais sensual, de verdadeiro gozo dos sentidos, do barroco italiano. O que temos na capela é um classicismo de matriz barroca, em que a arquitectura está lá para reforçar a majestade do poder, o que é comum a monarquias absolutas, como a de Luís XIV."

Quando é finalmente inaugurada, em 1752, D. João V e o seu arquitecto já tinham morrido. A capela, que antes de ser construída já era célebre em toda a Europa, ficou como memória de um rei que, tal como diz a carta em que faz a encomenda para São Roque, quis sempre "o melhor possível".