"Guernica" está a fazer um check-up
O piso térreo está cheio de sol vindo do jardim. Às nove da manhã o museu ainda não abriu e os corredores estão desertos. Só se ouvem vozes numa das salas da colecção permanente, a que tem exposta "Guernica", a grande tela que Picasso pintou em 1937 para o Pavilhão de Espanha na Exposição Internacional de Paris e que rapidamente se tornou num ícone da resistência antifascista, poderoso manifesto contra a guerra que marcou a história da arte do século XX e o imaginário de várias gerações. É à frente desta obra que estão a trabalhar três técnicos do departamento de conservação e restauro do Museu Rainha Sofia, incluindo o seu director, Jorge García Gómez-Tejedor.
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O piso térreo está cheio de sol vindo do jardim. Às nove da manhã o museu ainda não abriu e os corredores estão desertos. Só se ouvem vozes numa das salas da colecção permanente, a que tem exposta "Guernica", a grande tela que Picasso pintou em 1937 para o Pavilhão de Espanha na Exposição Internacional de Paris e que rapidamente se tornou num ícone da resistência antifascista, poderoso manifesto contra a guerra que marcou a história da arte do século XX e o imaginário de várias gerações. É à frente desta obra que estão a trabalhar três técnicos do departamento de conservação e restauro do Museu Rainha Sofia, incluindo o seu director, Jorge García Gómez-Tejedor.
"O robot foi concebido para este projecto e há muita coisa que estamos a testar pela primeira vez, o que levanta muitas dúvidas", diz ao PÚBLICO Gómez-Tejedor, junto a uma estrutura metálica com 3,5 metros de altura, nove de largura e que pesa 1500 quilos. Até Junho, esta estrutura vai separar os visitantes da pintura de Pablo Picasso (1881-1973), uma das mais importantes da colecção do museu, seguramente a mais procurada pelo grande público.
"As pessoas têm uma ligação especial a Guernica, e mesmo eu, que estou aqui ao computador a ver cada imagem ao detalhe, me deixo emocionar às vezes", admite Humberto Duran, especialista em fotografia e imagem digital, um dos principais responsáveis pelo trabalho do robot que foi desenvolvido por uma empresa privada, em colaboração com a equipa do museu e especialistas do Departamento de Óptica da Universidade Complutense de Madrid.
Duran e o director fazem parte do "motor" do projecto Viagem ao Interior de Guernica, lançado em 2009 com o objectivo de fazer o estudo completo desta grande pintura (3,5 metros de altura por 7,7 de largura), identificando todos os seus problemas de conservação, mas sem pensar, pelo menos para já, numa intervenção de restauro, garante Gómez-Tejedor. Um gestor cultural, um químico e dois restauradores completam a equipa. "O que queremos com este robot é fazer uma espécie de check-up à obra: vamos estudar os materiais, o estado em que se encontram as alterações que o quadro sofreu, vamos avaliar e quantificar a extensão dos danos provocados pelas viagens sucessivas que fez. Queremos perceber como está a envelhecer, criando um corpo de dados para futuras comparações." Até aqui, a análise técnica mais completa da obra, a de 1998, identificara 129 imperfeições, como fendas, vincos, marcas e manchas. O museu espera agora encontrar mais, graças ao avanço tecnológico dos meios de diagnóstico.
O robot, que trabalha com cinco câmaras (uma de cada vez) para recolher imagens em altíssima definição, desliga-se mal haja uma falha de energia, por motivos de segurança, explica o director de conservação, enquanto acompanha o braço mecânico que permite à máquina fotográfica aproximar-se da tela. O sistema varre toda a superfície da tela, fazendo fotografias, com diferentes tipos de luz - primeiro visível, depois ultravioleta, seguindo-se os infravermelhos, para, com a reflectografia, aceder ao desenho subjacente. A precisão, explica ainda o director de conservação, é "muitíssimo grande": 25 micrómetros, o que equivale a uma resolução de 0,025mm.
Na manhã em que o PÚBLICO assistiu ao funcionamento de Pablito - nome que a equipa deu ao robot -, estava a ser feito um levantamento que resultaria em 20.400 imagens. O trabalho da equipa, que passará também por um estudo de cor e de temperaturas, tem igualmente em vista a construção de um modelo 3D da obra, tarefa que será entregue a uma empresa alemã.
"É a primeira vez que tiramos macrofotografias tão pequenas de um quadro inteiro e as "cosemos" para formar uma megaimagem. Neste processo de zoom vamos mostrar o que o olho humano é incapaz de ver", acrescenta Humberto Duran.
Apesar da ambição do trabalho a realizar, Gómez-Tejedor não acredita que venham a descobrir algo "absolutamente novo". "Não me parece que seja possível encontrar uma assinatura", diz a rir. "Mas já identificámos, por exemplo, vestígios da tinta de spray vermelha com que o quadro foi vandalizado por um activista anti-Vietname, nos anos 70; e da fita-cola que Picasso terá usado para fazer as várias interpretações da obra, recorrendo a papel de parede que depois sobrepunha à pintura", num processo documentado pela série de fotografias de Dora Maar - artista, mulher e musa do pintor - exposta na parede em frente.
A "emoção" que o técnico Humberto Duran sente ao olhar para "Guernica" é partilhada por muitos dos visitantes do museu - 2,7 milhões em 2011. Para além do impacto visual da obra, defende o director de conservação, há a ter em conta o contexto em que foi criada e aquilo em que se transformou.
História atribuladaEncomendada já depois de ter começado a Guerra Civil de Espanha, que opunha republicanos e nacionalistas, "Guernica" teve como ponto de partida o bombardeamento da cidade basca com o mesmo nome por aviões nazis (Legião Condor), aliados do general Francisco Franco, na tarde de 26 de Abril de 1937, dia de mercado. Picasso pintou-o em tempo-recorde no seu estúdio da Rua des Grands Augustins, em Paris, e insistiu que não queria receber dinheiro algum por ele - a obra, um hino contra a guerra total, seria o seu contributo para a causa republicana. Para que não restassem dúvidas quanto ao facto de o Estado ser dono da obra, os republicanos acabaram por pagar-lhe 150 mil francos.
Instalada na Exposição Internacional de Paris, "Guernica" tornou-se num instrumento de propaganda, chamando a atenção do mundo para a violência da guerra que varria Espanha. "Guernica é mais impressionante como design gráfico - um poster gigantesco, complexo, mas bem urdido, legível até de relance - do que como expressão simbólica. É um cartoon sobre a atrocidade no abstracto", escreveu o crítico Peter Schjeldahl na revista New Yorker em Junho de 2006, quando os museus do Prado e Rainha Sofia inauguraram uma grande retrospectiva de Picasso.
Pertencente a um tempo em que a pintura não perdera ainda para a fotografia a sua capacidade de agarrar a realidade, nem fora ultrapassada pelo cinema na ficção histórica, ainda segundo Schjeldahl, "Guernica" regressou ao estúdio do pintor depois da Exposição de Paris, mas, como já era famosa, começou a contribuir para os esforços de guerra com uma intensa digressão. Escandinávia, Inglaterra e depois a costa Oeste dos Estados Unidos. Em Manchester, em 1939, lembrava a revista Tiempo (Novembro de 2008), os visitantes deixaram ainda junto ao quadro sapatos para os combatentes republicanos.
Entretanto estalou a Segunda Guerra Mundial e Picasso, com a França ocupada, decidiu que a obra seria confiada ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), apesar de continuar a viajar. Em 1953 foi exposta em Itália e depois no Brasil; dois anos mais tarde faria outra tournée por sete países europeus. Os especialistas estimam que em 20 anos tenha sido enrolada cerca de 50 vezes. "Foi o que provocou os danos mais sérios à pintura", explica Gómez-Tejedor. "O próprio Picasso preocupou-se muito com o seu estado de conservação e aplicou um fixador sobre a camada pictórica e uma cera resinosa no verso. Este tratamento estabilizou o quadro, mas modificou o seu aspecto e o seu comportamento - o suporte [uma tela de linho e cânhamo] tornou-se mais rígido e, por isso, mais sensível às vibrações."
"Guernica" ficou no MoMA mais de 40 anos. Chegou a Espanha em 1981, quatro anos depois das primeiras eleições democráticas. Nos jornais o então ministro da Cultura, Íñigo Cavero, falava do "regresso a casa" do "último exilado", apesar de a obra nunca antes ter estado no país. O El País de 11 de Setembro contava em detalhe a "operação de resgate" que levara a pintura do MoMA para o Casón del Buen Retiro, edifício junto ao Prado, onde passou a estar exposta numa vitrina climatizada e à prova de bala, permanentemente protegida pela Guarda Civil: veículos escoltados pela polícia de Nova Iorque nas ruas de Manhattan; sete horas de voo a bordo do 747 Lope de Vega, a que o comandante da Iberia passou a chamar "Guernica II"; agentes à paisana entre os passageiros...
"Guernica" está no Museu Rainha Sofia desde 1992, depois de um percurso atribulado que até pôs Picasso a escrever cartas ao MoMA, no final dos anos 60, em que deixava bem claro que a obra só devia ser enviada para Espanha quando fossem restauradas as "liberdades públicas".
Hoje, a obra que pintou, frenético, depois de um bombardeamento no País Basco, está a ser meticulosamente fotografada por um robot que, segundo o El País, terá custado 400 mil euros (o mecenas, a Telefónica, não revela custos). O touro, o cavalo e a mulher que chora estão sob uma "lupa" gigante.