Na sopa dos pobres
A minha prima Marieta, que é solidária e capaz de uma generosidade heróica, venceu os preconceitos, abeirou-se do pobre homem, pôs-lhe a mão no ombro e sussurrou-lhe, decidida: “Ó senhor Torquemada, não se apoquente que eu não digo a ninguém!”
A minha prima Marieta encontrou o vizinho Torquemada disfarçado com um bigode louro na fila da sopa dos pobres, avançando a custo entre uma legião de necessitados. Não há ninguém que a engane, a ela, mulher ensinada pela vida, muito menos o anafado condómino que caminha com os pés desavindos qual Charlot, balouçando, além do mais, como marinheiro em noite de temporal no convés de navio ébrio.
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A minha prima Marieta encontrou o vizinho Torquemada disfarçado com um bigode louro na fila da sopa dos pobres, avançando a custo entre uma legião de necessitados. Não há ninguém que a engane, a ela, mulher ensinada pela vida, muito menos o anafado condómino que caminha com os pés desavindos qual Charlot, balouçando, além do mais, como marinheiro em noite de temporal no convés de navio ébrio.
O pobre homem bem tentou enganá-la, primeiro cofiando os bigodes, para que o pormenor a pudesse distrair do todo da sua pouca escultórica barriga, depois furando com o nariz um "Correio da Manhã" antigo, com umas mamas descomunais na primeira página, acto que só piorou a situação, porque dele se abeiraram três famintos desafortunados.
Marieta não queria acreditar. Ainda se lembra dos idos anos noventa, em que Torquemada a recebeu no átrio do orgulhoso prédio de classe média ascendente: “Bem-vinda ao nosso condomínio, Senhora Dona Marieta, vai ser feliz, tenho a certeza, na Quinta dos Marqueses!”. A minha prima, presenteada com a oleada oratória de Torquemada, ouviu os seus projectos galopantes, como administrador do condomínio, para instalar umas plantas exóticas no jardim de entrada, um sofisticado sistema de som que transmitiria música ambiente “até no elevador”, um tigre de porcelana em cada andar e, cereja em cima de requintado bolo, um “vigilante”. “Sim, um vigilante”, vociferava Torquemada, “de início um turno nocturno, mas aos poucos, com a contribuição de todos, poderemos ter um pequeno exército de, digamos, três soldados, para afugentar a vadiagem, a ciganada e a piolheira do bairro ali de baixo, essa canalha do rendimento mínimo”, dizia apontando a aguçada barriga para um conjunto habitacional de casas degradadas e escuras. “Já encomendei arame farpado”, sorria mostrando com despudor o dente cariado envolto em capa de fino ouro. Olhou para o relógio, como o Coelho de Alice no País das Maravilhas e soltou um “Ohhhh”, “perdoe-me feliz contemplada com o nosso condomínio, mas tenho de ir à secção do partido porque hoje temos reunião e vai lá estar o senhor ministro!”.
Torquemada, amigo das palavras fartas, chegou a ser falado para candidato a Presidente da Junta, mas nos últimos anos esmoreceu, há quem diga que perdeu o emprego, outros afiançam que o fisco lhe penhorou os bens e o certo é que, depois da monumental algazarra em que, bêbado e ofegante, insultou o senhor primeiro-ministro da varanda do seu apartamento confiscado de onde saiu em voo trôpego, até se estatelar em mil fragmentos, um orgulhoso tigre de porcelana, anda cabisbaixo, namora a própria sombra e quase não pia.
A minha prima Marieta, que é solidária e capaz de uma generosidade heróica, venceu os preconceitos, abeirou-se do pobre homem, pôs-lhe a mão no ombro e sussurrou-lhe, decidida: “Ó senhor Torquemada, não se apoquente que eu não digo a ninguém!”.