América Latina, somos todos ouvidos
Na semana passada, Andrew Casillas fez as malas e seguiu, como quase todos os sites a Norte do Rio Grande, para o festival South by Southwest, em Austin, Texas. Partia com a missão de fazer a reportagem para o Club Fonograma - site celebratório da pop iberoamericana. Enquanto a maioria da imprensa apostava de olhos fechados em Skrillex, Alabama Shakes ou Howler, o Fonograma salivava com Bam Bam, Natalia Lafourcade, Andrea Balency, Ximena Sariñana, Alex Andwandter e Javiera Mena. "Sem esquecer que um de nós pode até ir espreitar o concerto de Juanes no W Hotel", gracejava Casillas.
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Na semana passada, Andrew Casillas fez as malas e seguiu, como quase todos os sites a Norte do Rio Grande, para o festival South by Southwest, em Austin, Texas. Partia com a missão de fazer a reportagem para o Club Fonograma - site celebratório da pop iberoamericana. Enquanto a maioria da imprensa apostava de olhos fechados em Skrillex, Alabama Shakes ou Howler, o Fonograma salivava com Bam Bam, Natalia Lafourcade, Andrea Balency, Ximena Sariñana, Alex Andwandter e Javiera Mena. "Sem esquecer que um de nós pode até ir espreitar o concerto de Juanes no W Hotel", gracejava Casillas.
Provocação fácil, ou talvez não seja só isso. Juanes joga a uma escala de estrela pop global e alimenta a ambição evidente de se tornar o próximo Ricky Martin. Mas, por alguma razão, mantém uma obsessão com o público mais alternativo. Sue Steward, colaboradora da revista de world music Songlines e autora de vários livros sobre música latino-americana, diz-se "chocada por Juanes não ser uma estrela internacional" - justificando o facto de não ser uma Shakira com calças pela razão de que não abdica do castelhano.
Por detrás desta cortina de fumo, desta música que implica um bronzeado impecável, roupas curtas ou justas e um estereótipo de sensualidade escaldante, ou até para lá de um circuito estabelecido que tranca a música latina naquela classificação de world music que tudo achata e vende com a palavra "exotismo" exibida em néons, há uma outra música fervilhante que colhe os seus modelos nos exemplos mais populares da música independente anglo-saxónica mas preserva um sabor fatalmente local - não sabe existir de outra maneira. Ao mesmo tempo, as posições políticas também tropeçam na engrenagem de mastigação fácil da pop que luta pelos tops. "Sempre pensei que os Calle 13 viessem a tornar-se um grande nome na música de dança britânica", espanta-se Steward. "O que os afasta das tabelas ocidentais? A política, claro, porque cantar sobre Porto Rico ou a sua independência não tem qualquer impacto em Londres".
Curiosamente, Londres foi um dos primeiros sítios onde Ana Tijoux apresentou o seu segundo álbum, La Bala. A jovem rapper chilena, tida como uma voz autorizada do contestatário movimento estudantil que reclama um ensino universitário gratuito, nasceu em França, país escolhido pelos pais para o exílio forçado durante a ditadura de Pinochet. Shock, primeiro single de La Bala, não fala de outra coisa - colando-se milimetricamente à descrição da morte do estudante Manuel Gutiérrez Reinoso, numa manifestação em 2011 - e há quem clame já pela sua inclusão nos clássicos da música de intervenção latino-americana. Depois de versar o exílio, a repressão e a pertença no primeiro álbum, desta vez quis ocupar-se dos estudantes chilenos, dos indignados espanhóis, dos falidos gregos e dos occupy norte-americanos. Com um aliciante ao seu dispor, disse em entrevista à National Public Radio (NPR): "Adoro rappar numa língua que me permite ir ao México ou ao Panamá e ser compreendida".
O pleno dos AstroAo mesmo tempo que Casillas embalava a trouxa, o Club Fonograma partia igualmente para a cobertura do Festival Nrmal, enquanto Jasmine Garsd, do programa Alt Latino, que semanalmente mostra na NPR tudo o que de mais excitante se vai ouvindo na música independente latino-americana, se preparava para uma ausência de duas semanas - SXSW, depois Vive Latino. A definição do programa sintetiza tudo aquilo de que por aqui falamos: "Não são apenas os géneros tradicionais latinos, nem tão-pouco é o hip-hop, o indie ou o rock americano; as fronteiras não nos dizem nada. A música alternativa latina é um pouco de tudo, de todo o lado, misturado numa nova paisagem sonora latina".
Alt Latino começou a ser emitido em Junho de 2010 como extensão das conversas entre Jasmine Garsd e Felix Contreras junto à máquina do café. A ligação de Jasmine à música que hoje a América Latina produz começou a latejar em simultâneo com a típica necessidade de sentir-se mais perto de casa depois de ter deixado a Argentina e emigrado para os EUA. A integração na comunidade latina de Washington DC levou-a a conhecer a música de Peru, Colômbia, Equador, El Salvador, Cuba, México, etc. "Isso mudou-me a vida", conta-nos. Até porque na casa da sua adolescência a música pouco entrava. Foram a puberdade e o colapso económico de 2001 a mostrar-lhe o punk rock.
Dos muitos nomes que Garsd dá a conhecer todas as semanas, um acalenta-lhe a esperança de poder vir a alcançar o mesmo culto das brasileiras CSS: os chilenos Astro. Este ano, os Astro, fizeram o pleno dos festivais - SXSW, Nrmal e Vive Latino. Como tantas outras lendas nos compêndios do rock, esta arrancou quase ao mesmo tempo que o carro a caminho do primeiro concerto. Na altura, Andrés e Octavio não tinham reportório algum. "Num par de dias fizemos umas cinco canções e preparámos versões de Gary Numan e The Knife. Algumas caíram no esquecimento, outras viveram para sempre". Uma dessas canções apontadas à eternidade, Maestro distorsión, acendeu rapidamente o rastilho de um sucesso que lhes permitiu tocar por toda a América Latina já com Zeta e Lego a bordo - depois de se terem cruzado numa festa em que os outros tocavam e eles eram os DJ de serviço.
Agora partem para uma digressão norte-americana e levam consigo um álbum homónimo e maravilhosas canções de pop electrónica como Ciervos e Colombo - onde se canta o deslumbramento alucinogénico de ver coelhos a dançar. Num país sem tradição de pop electrónica, os Astro dizem-se mais devedores do folk-rock de Los Blops do que dos Los Prisioneiros, uns A-ha com letras políticas que deixaram marcas em nomes actuais como Los Dënver ou Javiera Mena. "Mas a cena alternativa chilena está muito activa", afirmam. "Mas dispendemos um tão grande esforço em autogestão que nos tira alguma energia para fazer música". Ao espelho, definem-se como "speed metal tropical sound", embora o metal não compareça e estejam mais próximos de outros heróis musicais como MGMT, Grizzly Bear e Los Amparito. Quem? Parágrafo seguinte, por favor.
Pelo SXSW andou também há um par de anos Carlos Pesina, transformando em banda as canções mexicanas "à Animal Collective" fabricadas no quarto. Mas Pesina, o criador de Los Amparito, é homem de pouco protagonismo e quando lhe cheirou que o grupo estava a ganhar notoriedade rapidamente o recolheu e se dedicou a Pepepe e Francisco y Madero. O seu trajecto é paradigmático de uma geração que dispensa a paciência necessária para aprender a tocar instrumentos. "Comecei a fazer colagens com cassetes, depois ocorreu-me fazê-lo com um gravador do Windows e ao procurar sons na Internet descobri software para fazer música".
Este momento de descoberta de mundos on-line coincide com a passagem, aos 13 anos, da música clássica para Aphex Twin e outros que tais, referências transformadas depois na "electrónica caseira" de Los Amparito. "Procuro uma linguagem distinta aproveitando a música que me rodeia e que é ignorada por muitos músicos hoje em dia", responde-nos por email. E aquilo que o rodeia é, em parte, a música mariachi, samplada, estraçalhada e reconvertida em matéria chillwave. Por isso, Pesina não vende a música que produz. "Há anos que não compro CD e organizar a música em álbuns parece-me um hábito do passado. E como a música que tenho feito se baseia em fragmentos de outros autores, não a vendo".
O icebergueTamanha ética artística indicia que Pesina, de 23 anos, não conta com a música para lhe pagar a electricidade gasta a construí-la. Ao contrário de Gaby Moreno, cantautora guatemalteca que emigrou para os EUA à procura de oportunidades. No fundo, regressou ao ponto de partida: tinha 13 anos quando visitou Nova Iorque e à saída do musical Les Misérables ouviu uma senhora na rua a cantar. Ficou siderada. "O que é isso que está a cantar?", perguntou-lhe. "Nunca ouviste falar de blues?!". Resultado: os dias seguintes foram passados em lojas a comprar aquilo que a carteira permitia; os anos seguintes foram passados a sorver John Lee Hooker, Nina Simone ou Robert Johnson e a verter tudo isso para as suas canções.
Ao contrário de Pesina, Gaby Moreno quis o sonho da carreira convencional. E ao contrário de Pesina aplicou-se a aprender a tocar. Em terras americanas, rapidamente percebeu que dava mais frutos prescindir do inglês que adoptara com os blues em favor do castelhano. Foi então que começou a dar nas vistas, conquistando a rádio KCRW, ganhando a bênção de Ani DiFranco e Van Dyke Parks, e sendo escolhida para autora do tema da série televisiva Parks and Recreation.
Gaby Moreno, Los Amparito, Ana Tijoux e Astro são, no entanto, a ínfima ponta de um gigantesco icebergue latino-americano onde se encontra de tudo: folk transfronteiriça (Y la Bamba), indie pop (Ximena Sarinãna, Francisca Valenzuela), pop electrónica (Lido Pimienta, Algodón Egipcio, Rita Indiana), armadas rock femininas (Le Butcheretes, Las Robertas, Las Kelly), rock versão Arctic Monkeys (La Vida Boheme) ou psicadélico (Bam Bam) e até os "Ramones em tango" Conjunto Falopa (que cantam contra o uso de lingerie e a favor do sexo e do jogging). Ou Mati Zundel e Matanza, que juntam electrónica cosmopolita a sons indígenas e acordeões sacados à cumbia, juntando-se ao movimento generalizado da cumbia digital.
Pierre Lestruhaut, um dos redactores do Club Fonograma, fala-nos de várias cenas musicais distintas na América Latina, definidas pela gravitação em torno de um país ou mesmo de uma cidade. "No México dá-se muita atenção ao movimento do ruidosón, liderado por músicos de Tijuana (María y José ou Los Macuanos), surgido como resposta contra a violência na região e que tem uma forte inclinação pela redescoberta da música tradicional juntamente com a electrónica norte-americana e europeia". Pensar em: Buraka Som Sistema versão mexicana. "No Chile", prossegue Lestruhaut, "há uma importante onda pop com influências disco (Javiera Mena, Dënver, Alex Andwandter), enquanto na Argentina e no Uruguai continuam a surgir muitas bandas twee/indie pop (La Ola que Quería Ser Chau, Escuela de Trance, Carmen Santiago). Falar de uma cena de toda a América Latina é difícil, mas há blogues como o Club Fonograma ou festivais como o Nrmal, em Monterrey, que dão uma certa ideia de coesão a uma tão grande variedade. Há um movimento de música independente a acontecer neste momento na América Latina". O sentimento, garante, é que está a ocorrer uma pequena mudança, palpável na presença latina cada vez mais forte no SXSW mas também em alguns meios atentos, como o site Pitchfork.
Jasmine Garsd defende que a progressiva "hispanização" dos EUA está a escancarar cada vez mais as portas aos artistas latino-americanos. "Na era da Internet, as fronteiras culturais são muito porosas" e até o mercado dá uma ajuda involuntária: "Alguém que compre um disco de world music hoje está mais aberto a ouvir uma excelente banda de garage rock porto-riquenha amanhã". De facto, é só destapar um bocadinho - as ligações são intermináveis e há todo um mundo vibrante a explodir. Basta usar as palavras certas no motor de busca.